domingo, 31 de dezembro de 2017

Balanço anual

      Chegado ao final do primeiro ano deste meu novo blog, devo prestar contas sobre ele sem escolhas dos melhores do ano, como prometi na abertura.
      Em termos de projecto e propostas, Some like it hot ficou aquém do esperado, com mais casuística e menos questões gerais do que o pretendido. Em termos de quantidade este blog teve pouco mais de 6.000 visitas no seu primeiro ano, contra cerca de 9.000 visitas a Some like it cool depois de encerrado há um ano
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        Mesmo que encerrar o anterior blog em plena expansão possa ter sido errado, o apelo do novo modelo em outro blog impôs-se e vai continuar a prevalecer, na expectativa de que haja maior divulgação do que até agora deste Some like it hot.
        Neste momento quero apesar de tudo destacar o mais importante acontecimento artístico e cultural do ano, a exposição "Vermeer et les maîtres de la peinture de genre", que esteve entre 22 de Fevereiro e 22 de Maio no Museu do Louvre, em Paris, e depois seguiu para outras grandes cidades.
         Sem me pronunciar sobre mais nada, agradeço aos meus leitores e desejo a todos um Feliz e Próspero Ano Novo de 2018, em que possa contar convosco para isto e para o mais que aí vier, que aqui oportunamente anunciarei. E passem a palavra.       

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Uma questão bizarra

     Uma  escritora conhecida, Delphine Dayrieux/Emannuelle Seigner, vê o seu espaço e a sua pessoa invadidos por uma estranha, Elle/Eva Green, escritora-sombra de celebridades. A primeira, em impasse de escrita e com o marido, François/Vincent Perez, jornalista televisivo, em viagem, vai gradualmente cedendo terreno, apesar de a partir de certo momento começar a ficar alerta - a visita em sua vez a um liceu que afinal não se fizera.
    Depois de Delphine ter partido uma perna numa queda vão para a casa de campo do marido dela e então aí as coisas rapidamente se esclarecem. O final é um bocado trapalhão ao querer ir demasiado longe depois da tentativa de envenenamento seguida de tentativa de atropelamento.
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       A partir de argumento do realizador e de Olivier Assayas baseado em romance de Delphine de Vigan, "A Partir de uma História Verdadeira"/"D'après une histoire vraie" é o mais recente filme de Roman Polanski (2017), que tem o seu melhor ao mostrar o mal em acção a partir do ponto de vista da vítima, como em Hitchcock, para o qual explicitamente remete.
      É bom ver Elisabeth Quin como jornalista de France-Culture, Noémie Lvovsky como directora de galeria num filme sobre a usurpação da personalidade até à literária, que apesar de demasiado óbvio não deixa de ser convincente.
      Duas grandes actrizes elevam o nível deste filme, que está à altura do paradigma em questões como esta tratadas entre o policiário e o anedótico, estabelecido por Claude Chabrol, embora o próprio Polanski já tenha feito melhor.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Uma brincadeira

    "O Meu Belo Sol Interior"/"Un beaux soleil intérieur", o mais recente filme de Claire Denis (2017), é uma comédia passada entre artistas e galeristas em Paris, com algumas personagens exteriores ao meio.
     A protagonista, Isabelle/Juliette Binoche, vive em círculo com os seus homens que a fazem andar às voltas, de um para outro, até voltar à casa de partida para depois continuar, sempre em circuito fechado. Cada caso é efémero e como tal não pode continuar, desde o primeiro ao último, por razões diferentes. 
                      https://www.ecranlarge.com/uploads/image/000/999/un-beau-soleil-interieur-photo-999628.jpg
     Com actores muito bons e diálogos a preceito - tem argumento da realizadora e de  Christine Angot - este é filme original e insólito numa obra pautada pela exigência como a de Claire Denis é. Em jeito de comédia, como uma brincadeira, que qualquer grande cineasta se permite. Um pouco "la femme qui aimait les hommes", brincando com Truffaut.
     O final entre a Binoche e Gérard Dépardieu como vidente confirma-o, remetendo para uma leveza interior e uma disponibilidade em que ele a convida a procurar, no entre-dois, o seu belo sol interior. 
     É curto para aquilo a que a cineasta nos habituou mas está bem feito e é para ser tomado por aquilo que é: um retrato de mulher de hoje interpretada por uma grande actriz numa bela cidade, Paris, que está bem filmada. E é tudo.

domingo, 24 de dezembro de 2017

Psicodrama

      Depois da trilogia "Tony Maanero" (2008), "Post Mortem" (2010) e "Não"/"No" (2012), e antes de "Neruda" e "Jackie"  (2016), o chileno Pablo Larrain dirigiu "O Clube"/"El club" (2015), um filme muito falado e premiado no Festival de Berlim com o Grande Prémio do Júri. Só agora o consegui  ver.
      Quatro padres vivem numa residência próximo do mar acompanhados por uma freira. Depois de um novo hóspede ter morrido por sua própria mão, chega um outro para inquirir sobre eles com o intuito de fechar a casa.
      Cada um deles tem a sua própria história pessoal, de pedofilia, homossexuialidade, confissão de militares (a partir da ditadura) e o último cala-se quando começa a contar a sua história. A freira também tem um passado seu. Mas há sobretudo o habitante local que os conhece e os desafia.  
                                   https://i.pinimg.com/originals/36/d2/c7/36d2c79926a3c9f84570ce1171b6617d.jpg
      Encenado como um psicodrama em poucos espaços, sem sair da mesma vila, este é um filme corajoso e muito bom sobre questões sensíveis na actualidade no interior da religião católica, agarradas de forma clara e frontal apesar do local retirado e por causa dele, com argumento de Guillermo Calderón, Daniel Villalobos e do realizador.
    Pablo Larrain filma as entrevistas do inquiridor frontalmente, o que torna mais visível o desconforto dos inquiridos, e o filme termina de forma inesperada mas que acaba por se explicar por si própria, embora se coloque a questão de saber se aquela é a melhor solução para aquele caso. 
    Sério e sem contemplações, como o conhecemos dos seus filmes anteriores, o cineasta consegue um filme perturbador sobre questões que causam desconforto sem fazer um "filme de tese" e sem procurar moralizar. Cada um que tire as suas próprias ilações sobretudo sobre onde está a ética e a falta dela.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Leite e mel

    A actriz israelita Natalie Portman realizou em 2015 "Uma História de Amor e Trevas"/"A Tale of Love and Darkness", baseado no romance homónimo do seu compatriota Amos Oz. Tratando-se de um dos melhores livros de um dos melhores escritores da actualidade interessou-me vê-lo.
    Nascido em 1939, o escritor situa o livro autobiográfico na sua infância no pós-guerra em Israel, por altura  do seu reconhecimento internacional como Estado independente. No filme Amos é interpretado por Amir Tessler, a sua mãe, Fania, por Natalie Portman e o seu pai, Arieh, por Glad  Kahana, estando a voz e a figura de Amos velho a cargo de dois actores.
    Tudo decorre na relação do protagonista com os  pais, em especial com a mãe, e com o meio, narrado pelo Amos adulto e filmado do ponto de vista dele quando criança. Ora esta questão do ponto de vista é plenamente respeitada pala realizadora, também argumentista, o que contribui decisivamente para o sucesso do filme.
                                       https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/thumb/1/12/A_tale-of-love-and-darkness-poster.jpg/220px-A_tale-of-love-and-darkness-poster.jpg
      Mas além do próprio narrador e por sua causa interessa a personagem da mãe dele, com problemas pessoais difíceis que se revelam através das suas histórias de juventude, na Polónia, mas com um grande amor pelo filho, que este lhe retribui - Fania é muito bem interpretada por Natalie Portman, Sem descer a todos os pormenores da narrativa literária, a narrativa fílmica está bem estruturada e bem interpretada numa leitura feliz do original. A questão da preservação da inocência de que a mãe fala ao filho e a conclusão do narrador já adulto de que a realização dos sonhos na "terra do leite e do mel" é uma desilusão são excelentes.
    Com fotografia de Slavomir Idziac, música de Nicholas Britell e montagem de Andrew Mondshein, sem acrescentar nada ao livro, publicado entre nós pela ASA, antes respeitando-o escrupulosamente, Natalie Portman consegue um bom primeiro filme de longa-metragem, que faz justiça ao original que não pretende sequer exceder, antes dar figuração concreta às suas personagens, o que é conseguido. 
      Em termos autobiográficos, ao nível deste livro de Amos Oz só conheço "Istambul - Memórias de Uma Cidade", do turco Orhan Pamuk, editado em português pela Presença.   

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O reverso

    "O Nascimento de uma Nação"/"The Birth of a Nation" é a resposta de Nate Parker (2016) ao filme do mesmo nome de David W. Griffith (1915) que, tendo sido fundador da linguagem e da arte do cinema, era racista. Temos por isso agora o ponto de vista dos escravos negros.
     Assim Nat Turner/Nate Parker, pregador, é levado, com apoio do seu  senhor, Samuel Turner/Armie Hammer, a sermonear para outros escravos em favor da obediência. Casa-se com Elizabeth/Penelope Ann Miller, e a partir daí a escalada de violência dos esclavagistas do Sul dos Estados Unidos levam-o a tomar consciência e perceber que a Bíblia permite uma leitura diferente.
   Não poupando nos excessos mais graves, com espancamento, violações, mortes violentas, enforcados, que justificam a revolta dos escravos negros, não tem o last minute rescue de Griffith e acaba numa alusão celeste na morte do protagonista. Compreensível embora, é manifestamente pouco em termos cinematográficos em comparação com o filme original, pelo que  sobre boas intenções estamos conversados. 
                       http://cdn2-www.comingsoon.net/assets/uploads/2016/05/birthofanation.jpg
      Baseado em factos reais da segunda metade do século XIX, tem argumento do realizador, também co-produtor, com base em história sua e de Jean McGianni Celestian, fotografia de Elliot Davis, música de Henry Jackman e montagem de Steven Rosenblum.
       Com boa realização e boas interpretações, este é um filme seguro e bem feito sem mais, que choca na sua violência e pretende edificar, enquanto o filme de há 100 anos era, no seu racismo, um grande monumento da história do cinema, que marcou decisivamente.
      Tanto quanto sei, o filme de Nate Parker teve boa recepção nos Estados Unidos e esta era uma resposta que se impunha de há muito. Os Cahiers du Cinéma dedicaram o seu número de Novembro passado a uma história dos cineastas negros americanos, com uma entrevista a Jordan Peele ("Get Out"), um dossier oportuno e interessante que aqui vos aconselho.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Não venhas tarde

    O mais recente filme de Woody Allen, "Roda  Gigante"/"Wonder Wheel" (2017), é um melodrama dos anos 50 passado nos anos 50 do século XX. Que seja plenamente conseguido não deixa de ser um feito notável.
   Um casal em impasse como tal, Humpty/Jim Belushi e Ginny/Kate Winslet, ela com um filho pequeno pirómano, Richie/Jack Gore, ele com uma filha adulta, Carolina/Juno Temple, que surge de repente no início em fuga do marido gangster que denunciou, entra em maior turbulência por causa do vigia do posto 7 da praia de Coney Island, o letrado Mickey/JustinTimberlake, que é o narrador do filme.
    Primeiro cai Ginny, depois Carolina perante o salva-vidas e, enquanto Humpty vive entre o seu trabalho no carrocel e o restaurante e continua a ir à pesca, Ginny encontra a solução desesperada em elipse no final do filme. Mulheres que tropeçam em homens que tropeçam em mulheres, mulheres que se atropelam e homens que estabelecem a confusão. E a idade conta, embora a mais nova repita os argumentos da mais velha quando tinha a sua idade; o amor.
                      https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/wp-content/uploads/2017/10/roda-gigante.jpg
   Com interpretações excepcionais de Kate Winslet e Jim Belushi, "Roda Gigante" é uma obra-prima de Woody Allen, para o que a excepcional fotografia de Vittorio Storaro contribui de forma importante. Mas decisiva é a realização do cineasta, também argumentista, que aqui revela uma qualidade superior para além da rotina em que às vezes se deixa embalar e nos embala.
   O cartaz que se vê ao fundo da imagem é do filme "Winchester 73", de Anthony Mann (1950), o que permite uma localização temporal precisa em New York sem necessitar de mais do que uma referência de passagem a Greenwich Village. "Não venhas tarde" diz o pai à a filha na noite fatal em que ela resolve regressar a pé a casa.
   Pouco falado a não ser quando cheira a escândalo, Woody Allen continua uma obra do maior relevo no cinema contemporâneo, que por vezes atinge picos como o deste filme absolutamente extraordinários. Um destes dias os Cahiers du Cinéma e a Cinemateca Portuguesa vão ter mais uma epifania

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Os 4 ases

     John Ford terá começado no cinema em 1914, como assistente do seu irmão Frank, e Raoul Walsh iniciou-se com David W. Griffith - interpretou mesmo o assassino de Abraham Lincoln, John Wilkes Booth, em "O Nascimennto de uma Nação"/"The Birth of a Nation"  (1915). Os dois fizeram os seus primeiros filmes ainda nos anos 10 do século XX, enquanto King Vidor se estreou na realização cinematográfica em 1919 e Howard Hawks, que começara a trabalhar  no cinema em 1917, dirigiu o seu primeiro filme em 1926. Junto-os aqui por terem sido os quatro os grandes pioneiros e fundadores de um cinema clássico americano desde o cinema mudo e depois do advento do sonoro. Breves palavras sobre cada um deles.
    Assinando Jack Ford, o primeiro privilegiou desde o início, em 1917, o western, género americano por excelência como escreveu André Bazin, de que se tornou o grande mestre pelo menos desde "O Cavalo de Ferro"/"The Iron Horse" (1924), mais tarde a partir de "Cavalgada Heróica"/"Stagecoach" (1939). Praticou outros géneros, como o melodrama e a comédia, mesmo o filme de guerra e o filme histórico - "A Grande Esperança"/"Young Mr. Lincoln" (1939) -, mas se pode ser considerado o melhor cineasta americano de sempre e um dos melhores do mundo é sem dúvida graças aos seus westerns, sete deles situados em Monument Valley.
     Nos anos 30 tinha feito "O Denunciante"7"The Informer" com Victor McLaglen a partir de romance de Liam O'Flaherty (1935) e "Mary Stuart, Rainha da Escócia"/"Mary of Scotland" com Katharine Hepburne a partir de peça de Maxwell Anderson (1936), e iniciou os 40 com adaptações John Steinbeck em "The Grapes of Wrath" (1940) e Erskine Caldwell em "Tobacco Road" (1941).
                       
    Fez até aos anos 60 filmes admiráveis de sabedoria a partir das suas raízes irlandesas e católicas e veio a encerrar a época áurea do western com "O Homem que Matou Liberty Valance"/"The Man Who Shot Liberty Valance" (1962), depois do qual fez ainda "O Grande Combate"/"Cheyenne Automn" (1964), para se despedir com "Sete Mulheres"/"Seven Women" (1966), ainda em jeito de western. Mas o seu melhor filme terá sido "A Desaparecida"/"The Searchers" (1956), que alguns consideram o melhor filme de sempre. O seu actor emblemático foi John Wayne, embora com ele tenham também trabalhado Henry Fonda nos anos 40 ("A Paixão dos Fortes"/"My Darling Clementine", 1946) e James Stewart nos 60 ("Terra Bruta"/"Two Rode Together", 1961).
    Raoul Walsh tinha-se estreado como realizador quatro anos antes de Ford, em 1913, e teve o seu primeiro grande sucesso em "O Ladrão de Bagdad"("The Thief of Bagdad" (1924) e o seus primeiros grandes westerns com "In Old Arizona" (1929) e "A Pista dos Gigantes"/"The Big Trail" (1930), ele que dedicou o melhor da sua obra a este género e ao filme de gangsters, de que foi também pioneiro. Efectivamente, não só foi o grande responsável pela descoberta e o lançamento de Humphrey Bogart, como chegou a fazer com este um filme de gangsters, "Último Refúgio/""High Sierra" (1941), de que veio a fazer na mesma década o remake em western,  "Golpe de Misericórdia"/"Colorado Territory" (1949).
     Entre os seus westerns destacam-se "A Caminho da Forca"/"Along the Great  Divide" com Kirk  Douglas e "As Aventuras do Capitão Wyatt"/Distant Drums" com Gary Cooper, ambos de 1951, "Duelo de Ambições"/"The Tall Men" com Claark Gable e Robert Ryan (1955), precedidos pelo célebre "Todos Morreram Calçados"/"They Died With Their Boots On" com Errol Flynn (1941/. Mas também fez filmes de guerra, como "Objectivo: Burma"/Objective, Burma" (1944) e até filmes de piratas, como "Barba Negra o Pirata"/"Blackbeard the Pirate" (1952).
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    Movendo-se por vezes na zona da série B, Walsh foi um outro grande clássico do cinema americano, possuídor de um estilo e uma temática próprios que fizeram a sua grandeza desde o tempo do cinema mudo. Entre os seus melhores filmes contam-se dois filmes de gangsters, "Heróis Esquecidos"/"The Roaring Twenties" (1939) e "Fúria Sanguinária"/"White Heat" (1949) com o emblemático James Cagney  Também trabalhou no melodrama e na comédia mas foi entre o filme de gangsters e o western que conseguiu atingir o seu melhor. Despediu-se em 1964 com um western surpreendente, "A Carga da Brigada Azul"/"A Distant Trumpet", ele que tinha feito o primeiro western  psicológico, "Núpcias Trágicas"/"Pursued" (1947).
      King Vidor é talvez o menos conhecido dos quatro, mas teve os seus primeiros grandes filmes no tempo do cinema mudo, "A Grande Parada"/"The Big Parade" (1925) e "A Multidão"/"The Crowd" (1928), seguidos "Aleluia!"/"Halleluiah!" (1929) e "O Vingador"/"Billy the Kid" (1930), já sonoros, mais tarde "O Pão Nosso de Cada Dia"/"Our Daily Bread" (1934), e "O Pecado das Mães"/"Stella Dallas" (1937). Depois de excelentes filmes tornou-se mais pessoal com "Duelo ao Sol"/"Duel in the Sun" (1946), o grande western naturalista que precede e antecipa "As Portas de Paraíiso"/"Heaven's Gate", de Michael Cimino (1980), um género a que voltou com "Homem sem Rumo"/"Man Without a Star" (1955).
    Entre os seus filmes mais famosos contam-se ainda "A Passagem do Noroeste"/"Norwest Passage" (1940), que introduziu a crueldade na sua obra, "An American Romance" (1944) e "Vontade  Indómita"/"Th Fountaihead" (1949), que também chama a atenção para a importância da arquitectura na sua obra. Trabalhou com grandes actores, como Spencer Tracy, Gregory Peck, Gary Cooper e Kirk Douglas.
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      Mas "Duelo ao Sol" tinha introduzido a actriz que iria acompanhar o cineasta no seu afastamento de Hollywood, Jennifer Jones, que viria a estar no centro de "A Filha de Satanás"/"Beyond the Forest" (1949) e "A Fúria do Desejo"/"Ruby Gentry" (1952), os filmes de King Vidor que se movem já no campo da imagem-pulsão, segundo Gilles Deleuze, e que lhe valem um lugar à parte no cinema clássico americano. Despediu-se com memoráveis superproduções, "Guerra e Paz"/"War and Peace" (1956) e "Salomão e a Rainha do Sabá/"Salomon and Sheba" (1959), que explicita a influência bíblica que nele  esteve sempre presente, mas ficou como um cineasta sério e inabalável na sua abordagem da América.
       Howard Hawks rivalizou com John Ford como o melhor cineasta clássico americano e foi o mais versátil de todos pois praticou  todos os géneros ao mais alto nível, pioneiro no filme de gangsters, no filme de aventuras, na screwball comedy, no policial e mesmo, embora mais tardio, no western. Os seus melhores filmes são sobre gangsters, como "Scarface, o Homem da Cicatriz"/"Scarface" (1932), o grupo profissional, como "Paraíso Infernal"/"Only Angels Have Wings" (1939), comédias como "As Duas Feras"/"Bringing Up Baby" (1938), filmes de guerra como "O Sargento York"/"Seargent York" )1941), policiais como "À Beira do Abismo"/"The Big Sleep" (1946), westerns como "Rio Vermelho"/"Red River" (1948) e "Rio Bravo" (1959), comédia musical em "Os Homens Preferem as Louras"/"Gentlemen Prefer Blondes" (1953) e filme histórico em "A Terra dos Faraós"/"Land of the Pharaohs" (1955).
        Homem culto e desembaraçado, Hawks fez também filmes de aviação que quadravam com a sua formação de piloto aviador, como "A Patrulha da Alvorada"/"The Dawn Patrol" (1930), teve como argumentista em diversos filmes William Faulkner, que adaptou mesmo um conto seu em "A Vida é o Dia de Hoje"/"Today We Live" (1933), levou ao cinema Ernest Hemingway em "Ter ou Não Ter"/"To Have and Have Not" (1944) e O. Henry em "The Ransom of Red Chief", episódio de "O. Henry's Full House" (1952).
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     Estilista notável, e nesse sentido o melhor realizador americano de sempre e um dos melhores do mundo, fez do cumprimento do dever profissional no grupo e da ridicularização do homem perante a mulher os seus temas favorito. Entre esses dois pólos definiu o herói americano, superiormente interpretado por grandes actores como Cary Grant, Gary Cooper, Humphrey Bogart e John Wayne. Tão bom como ele houve John Ford, melhor do que ele, ninguém, E aqui não arrisco a escolha do seu melhor filme, porque todos eles se contam entre os melhores do género respectivo.
    Foi com este quarteto que tiveram que lidar os emigrados da Europa, Ernst Lubitsch e Friedrich W. Murnau primeiro Fritz Lang, Alfred Hitchcock e Jean Renoir depois (ver "Entre dois o terceiro", de 17/5/2017). No seu tempo estiveram à altura deles Ceccil B De Mille, Allan Dwan, mais série B, Henry King e William Wellman. No western, que todos praticaram, tiveram continuadores à altura em Anthony Mann, Delmer Daves, John Sturges, Budd Boetticher, Sam Pechinpah e Clint Eastwood, Sergio Leone na Europa. No filme de gangsters é mais complicado porque surgiu primeiro o filme negro nos anos 40, com particular relevo na série B com Juseph H, Lewis, Anhony Mann, Sam Fuller e Don Siegel, e o género só entra em nova fase a partir da década de 70, na Nova Hollywood, com Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, mais tarde Quentin Tarantino, Michael Mann e James Gray.
     Mas no corpus homogéneo do cinema clássico americano, de que Erich von Stroheim primeiro, Charles Chaplin depois vieram a ser excluídos, estes quatro foram os cineastas que mais se destacaram no seu tempo e em influências futuras. Por exemplo Orson Welles dizia que antes de fazer ""O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941) tinha visto "Cavalgada Heróica" dezenas de vezes. E uma conjugação de génios como esta não voltou a ocorrer no cinema americano, que eles fizeram rivalizar com as grandes correntes artísticas vanguardistas dos anos 20 do século XX no cinema europeu.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

O filho do Doc

      Em 2003, um veterano da Guerra do Vietname, Larry ´Doc´ Shepherd/Steve Carell, procura dois antigos companheiros de armas, Sal Nealon/Bryan Cranston e o Rev. Richard Mueller/Laurence Fishburne, para o acompanharem na recepção do corpo do seu filho, Larry como ele, morto em combate em Bagdad, até ao respectivo funeral. Em resumo é disto que trata "Derradeira Viagem"/"Last Flag Flying" (2017), o mais recente filme do texano Richard Linklater, já responsável por filmes apreciáveis de que destaco "Antes do Amanhecer"/"Before Sunrise" (1995), "Antes do Anoitecer"/"Before Sunset" (2014), "Antes da Meia-Noite"/"Before Midnight" (2013) e "Boyhood: Momentos de uma Vida"/"Boyhood" (2014).
      Sem o preciosismo formal e estético dos seus filmes anteriores, o cineasta vai direito ao seu assunto e ao que vivem as suas personagens, em andanças com o caixão que às tantas se lhes adianta porque, depois da recusa paterna da inumação oficial em Arlington, na passagem por New York os três perdem o comboio em que ele é transportado .
      Muito centrado no diálogo, o filme desenrola-se sem concessões nas questiúnculas entre os três amigos, com especial ênfase nas que opõem Sal e o clérigo, sem esquecer o problema pessoal do Doc. Mas a viagem é pretexto para o relato das verdadeiras circunstâncias da morte do filho deste feito pelo seu amigo Washington/J. Quinton Johnson, que esteve presente nesse momento, e para recordações penosas do Vietname que os três partilham.
                       http://cinemametropolis.com/media/k2/items/cache/21af8e4730dd4e14142c6fc7f3cea199_L.jpg
      Bem firmado na articulação entre o presente e os diferentes passados, "Derradeira Viagem" faz de passagem a crítica de guerra e, no fundo, o louvor da amizade, o que, a partir de personagens bem desenhadas na sua época, constitui o essencial de um filme simples mas tocante em que o passado só é convocado por palavras, não mostrado.
       Com argumento de Richard Linklater, também co-produtor, e Darryl Ponicsan  a partir de novela do segundo, este é um filme que sabe preservar o humor naquela situação fúnebre graças ao excelente trabalho dos actores, com destaque para Bryan Cranston. Num filme de características clássicas, com fotografia de Shane F. Kelly e música de Graham Reynolds, Richard Linklater volta a mostrar que é um cineasta com o qual se deve contar no melhor do actual cinema americano.
       Muitas palavras, alguma acrimónia, muita complacência no final, em tom de melodrama. Mas aguenta-se. Com base noutro romance do mesmo escritor com as personagens correspondentes no Vietname tinha sido realizado "O Último Dever"/"The Last Detail", de Hal Hashby (1973), com argumento de Robert Towne.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Com um sorriso

   Num dos últimos filmes que interpretou, "Lucky" de John Carroll Lynch (2017), o actor Harry Dean Stanton (ver 17/9/2017) assume a sua longevidade numa personagem da sua idade que, após uma queda, se coloca os problemas próprios dessa idade.
   Assim, fundamentalmente ele recorda episódios do seu passado e questiona o futuro, enquanto no presente continua a fazer a sua vida normal entre casa e o bar, com muito exercício e muito tabaco. No bar, cúmplice, surge David Lynch, o pai do realizador, como Howard, que tem uma tartaruga, perdão um cágado chamado Presidente Roosevelt.
                         https://gds.portal5g-media.com/contentFiles/image/2017/11/MOV/thumbnail/6648_w380h235_1512050481lucky-a.jpg    
     Com a ajuda da música, as alusões ao western são claras no cenário do deserto em que o protagonista caminha repetidamente, com ostensiva piscadela de olho a certo filme de John Ford. Mas Lucky também sonha, toca harmónica de boca e até canta em espanhol, depois de ter confidenciado que tem medo.
     Esta uma bela homenagem e uma bela despedida do actor, no final com um sorriso para nós antes de se perder no deserto enquanto a tartaruga, perdão, o cágado, com longevidade prevista para 200 anos, entra mais próximo no plano fixo. 
     O grande segredo deste filme, com argumento de Logan Sparks e Drago Sumonja, é, sob os traços do homem velho, surpreender a fisionomia do actor de "Paris, Texas" de Wim Wenders (1984) e "Uma História Simples"/"The Straight Story" de David Lynch (1999) quando novo.  Mas também a ironia grave com que o actor encara a sua idade e a sua vida.

Um ídolo

   No essencial um grande cantor rock, conhecido como "o Elvis francês", Johnny Hallyday (1943-2017) foi muito especial nas suas vocalizações e na sua figura, marcando várias gerações de franceses e europeus com canções que fizeram a sua popularidade em todo o mundo.
                      https://chazzw.files.wordpress.com/2011/03/vengeance-hallyday.jpg
    No cinema destaco aqui a sua participação em "Déctetive", de Jean-Luc Godard (1985) e em "Vingança"/Fuk sau", de Johnnie To (2009) no meio de um grande número de filmes populares.
   Aqui me despeço de um ídolo da música e do espectáculo de que lembro desde a minha juventude e desde aí acompanhei.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A tragédia das crianças

   "Les enfants-loups"/"Wolfskinder" é a primeira longa-metragem do alemão Rick Ostermann (2013) e um filme de rara qualidade e pertinência sobre uma questão pouco conhecida.
   Corre o  Verão de 1946 quando os dois irmãos Hans e Fritz partem da Prússia Oriental depois da morte da sua mãe e, de acordo com as instruções dela, dirigem-se para leste, rumo à Lituânia, atravessando para isso zonas ocupadas pelas tropas soviéticas, vencedoras da II Grande Guerra e ocupantes depois dela, que disparam sobre eles e os perseguem.
  Pelo caminho os dois irmãos vão encontrando outros pares de crianças que passam a acompanhá-los, ocasionalmente acolhidos por famílias de lavradores. Enfrentam o frio e a fome, alimentando-se escassamente de carne crua, sem tempo para mais do que tentar sobreviver, escapando aos seus perseguidores
                      http://2015.hraff.org.au/wp-content/uploads/2015/03/wolfskinder3-1200-1200x560.jpg
    Na esplêndida paisagem das margens do Báltico, o percurso é feito entre florestas e com a travessia de rios. Separados, os dois irmãos, depois de outras baixas verificadas no grupo, umas mostradas outras não, vêm a reencontrar-se.
    Rick Ostermann é sempre justo na maneira como aborda as crianças em fuga e como trata o espaço, a natureza mas também as ocasionais habitações. Também em termos sonoros, com o ruído das armas alternando com os ruídos da natureza
    Baseado em factos reais, pois cerca 25.000 crianças empreenderam este tipo de fuga na época e muitas aí morreram, "Les enfants-loups" tem argumento do próprio realizador, fotografia de Leah Striker, e música de Christoph M. Kaiser e Julian Maas. Passou esta semana no Arte.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Artistas no seu tempo

    Auguste Rodin (1840-1917) e Paul Gauguin (1848-1903) foram dos mais importantes artistas franceses do final do século XIX e do início do século XX. Muito diferentes um do outro, contam-se entre os nomes maiores da história da arte. Também tiveram vidas e sucessos muito diferentes, do que nos dão conta dois filmes franceses deste ano de 2017.
    "Rodin" de Jacques Doillon, com Vincent Lindon no papel do protagonista, é um filme trabalhado e dominado sobre a vida do grande escultor a partir da sua primeira encomenda do Estado francês. Muito bem dividido em partes que correspondem a obras de referência do artista, com argumento do próprio cineasta inclui a inevitável Camille Claudel/Izia Higelin mas também personagens de artistas e escritores fundamentais da época com os quais ele conviveu: Victor Hugo/Bernard Verley, Claude Monet/Olivier Cadiot, Paul Cézanne/Arthur Nauzyciel, Octave Mirbeau/Laurent Poitreneaux.
     A fotografia de Christophe Beaucarne trabalha as sombras e o escuro ao captar momentos de uma vida de artista atribulada mas finalmente bem sucedida, com referências à Antiguidade grega e ao Renascimento mas também à Catedral de Chartres, que Rodin explica a Rainer Maria Rilke/Anders Danielsen Lie ter sido, com as árvores, a sua grande influência e fonte de inspiração.  
                       https://ingresso-a.akamaihd.net/img/cinema/cartaz/19483-destaque.jpg
     Vida difícil a do artista em todo o caso, dividido entre Camille, Rose/Séverine Caneele e as suas modelos e com as apreciações críticas das suas obras que o obrigaram, por exemplo, a "vestir" Balzac. Gigante da arte que Vincent Lindon, depois de Gérard  Depardieu em "Camille Claudel", de Bruno Nuytten (1988), interpreta superiormente ao pormenor em toda a pujança do seu génio criador. A música de Philippe Sarde é utilizada ocasionalmente.
      Rodin procurou o movimento e a expressão do torso humano. Na época tratado como "mestre", a sua obra, visível no Musée Rodin, em Paris, que participou no filme, ficou para o futuro depois de, com a personalidade dele, ter marcado o seu tempo e todos aqueles que o conheceram. Este filme constitui uma bela homenagem no centenário da sua morte.
      O "Gauguin"/"Gauguin - Voyage de Tahiti" de Edouard Deluc é um filme diferente em função do protagonista, interpretado por Vincent Cassel, que no final do mesmo século XIX resolveu abandonar Paris e a França para viver e trabalhar numa ilha da Polinésia francesa.
      Centrado no protagonista de quem traça um retrato de vida muito difícil, miserável mesmo, este é um filme mais imediatista do que o anterior, menos trabalhado cinematograficamente mas que alcança o tom justo para um artista de vida e sucessos especialmente difíceis, sujeito ao choque com uma cultura diferente, o que está muito bem dado no cruzamento da cultura indígena com a europeia e especialmente na relação de Gauguin com Tehura/Tuhei Adams - os mitos primordiais, as tradições locais e o cristianismo. 
                       http://www.magazine-hd.com/apps/wp/wp-content/uploads/2017/09/gauguin-.jpg
     Contando também com boa fotografia de Pierre Cottereau, passa-se mais em exteriores e apoia-se mais na música, de Warren Ellis, que o filme de Doillon utiliza parcimoniosamente. Mas a personagem do "artista maldito", que saiu de Paris sem a família como estivador e como estivador teve de trabalhar na Polinésia, está excelentemente restituída na interpretação interiorizada de Vincent Cassel.
     A dimensão do génio, incompreendido no seu tempo, de Gauguin, com dificuldades de convívio e sem ninguém que lhe chamasse "mestre" mas convencido de ser uma "natureza de artista" que havia que pôr a trabalhar, está muito bem devolvida na narrativa do período mais problemático da sua vida. Conta com argumento de Etienne Comar, Thomas Lilti, Sarah Kaminsky e do realizador sobre o livro do próprio pintor.
     Permito-me chamar a vossa atenção para a curta-metragem de Alain Resnais "Gauguin" (1950) mas também para a outra curta, "Chartres" de Jean Grémillon (1923). Os franceses mostram-se vivaços no cinema ao dedicarem filmes muito bons e importantes a grandes figuras da história da arte francesa. Agora Jacques Doillon é um dos mais destacados cineastas franceses, que cria um filme muito bom e não académico, clássico nos seus "encadeados a negro", enquanto Edouard Deluc vai na sua segunda longa-metragem, mais ingénua e menos perfeita mas em que cumpre bem, o que explica outra diferença entre os dois filmes.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Acreditar ou não acreditar

    "O Dia Seguinte"/"Gen-hu", o mais recente filme do sul-coreano Hong Sang-soo ((2017), geralmente considerado como um dos melhores cineastas da actualidade, é mais um excelente filme com argumento e realização sua que o vem confirmar como tal.
     Num surpeendente preto e branco, Bongwar/Kwon Hae-kyo, dono de uma editora e casado, despede-se de uma assistente com quem tem um affaire, Changsook Lee/Kim Sae-byeok, e acolhe uma nova assistente, Areum Song/Kim Min-hee. Tudo se passa entre a editora, o restaurante e a rua neste filme rohmeriano.
     A grande questão do filme é colocada no primeiro diálogo no restaurante entre a nova assistente e o  patrão: ela acredita, ele não, cada um deles com os seus argumentos. Ela chama-lhe cobarde. A remissão para o Ocidente europeu está presente nas imagens na sala da editora, visíveis aqui. 
                    http://leopardofilmes.com/images/pictures/homegallery/1689odiaseguinte.jpg
      A questão filosófica, a que Gilles Deleuze respondeu em 1985 em "L'image-temps", assume rapidamente contornos práticos: irá a mulher de Bongwar acreditar nas sucessivas explicações dele, uma verdadeira sobre a nova assistente, a outra falsa sobre a antiga? Quando, depois de dispensada em favor de Changsook, Aerum regressa, ele, que começa por não a reconhecer, explica-lhe o que aconteceu até ser levado a viver sozinho com a filha.
    Os planos longos dos diálogos com um quadro visual preenchido permitem às personagens explicarem-se detidamente e dão uma ideia precisa do espaço. Na maior simplicidade a maior clareza num assunto recorrente na obra do cineasta: um homem mais velho e mulheres mais novas. De quem é a voz que vem do fora de campo no final, quem entra a seguir com a refeição fica dependente daquilo em que cada espectador quiser acreditar, moral rohmeriana deste filme de elipses justas e surpreendentes.
     O que falta à Estação Meteorológica de António Guerreiro no Ipsilon desta semana, O mundo é um filme, que como sempre aconselho, é perceber que há muito o cinema é uma realidade póstuma -  e não apenas pelas razões que aduz - que só nestas margens em que se movem Hong Sang-soo e alguns outros subsiste e apresenta ainda interesse. O resto é um negócio que se reconverte e metamorfoseia sob qualquer denominação, imagem proliferante e visível em qualquer lugar para  que aponta o "expanded cinema" de Gene Youngblood desde 1970.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Mítico

    O Zé Pedro dos Xutos & Pontapés, que agora nos deixou (1956-2017), atingiu no punk rock português o estatuto de verdadeiro mito de uma geração e de um tipo de música que o coloca ao lado dos grandes nomes míticos do rock e do punk de todo o mundo.
                                 https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgHLLVgNOxUSgFO_2YJr2J-6xtj-f-VmUY_AKBXVkPBhicDzlgtB_RttUFam10E9VQcRCRtnuZe41VYdP9T-w6MFIUvp-RtHUhgiyvGq3jH6jXM9nFW5Df3czLh_yqTXcsPKobU3Who3CMx/s1600/66666.jpg
    De tal maneira grande foi o seu mito que terá sido mesmo o maior da geração de 80 do século XX em qualquer sector do espectáculo em Portugal. Até eu, que  pertenço a uma geração anterior que na música portuguesa teve outros ídolos (Zeca, Adriano), devo reconhecer que, depois deles, foi o Zé Pedro com os Xutos quem mais se aproximou do seu nível.
    Partilho assim o luto de toda uma geração quando aqui o recordo e homenageio como grande artista e homem de bem, que soube ser popular na afirmação da autenticidade do seu talento pessoal de músico punk rock.                       

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Lendário

      Como se fora pouco ter criado um império empresarial de grande dimensão, Belmiro de Azevedo (1938-2017), um homem que criou a sua própria lenda de empresário e de senhor de uma grande fortuna, foi também o criador do jornal Público que, a breve trecho, a partir do início dos anos 90 do século passado se tornou no melhor jornal diário português, respeitado pela sua qualidade e independência.
                        http://www.iol.pt/multimedia/oratvi/multimedia/imagem/id/13585475/800
    Inteligente e culto, bem preparado, dinâmico e determinado soube pensar a sua actividade em termos de futuro, o que fez dele um visionário de olhos abertos, sem dar tréguas nem aos adversários nem à mediocridade reinante. Por isso se destacou onde outros soçobraram.
      A sua visão para a imprensa impôs-se e o jornal que fundou tem feito o seu caminho como referência central da imprensa e da comunicação social portuguesa. Ele nunca deveu nada a ninguém mas todos lhe ficamos a dever pelo menos isso. À família, à Fundação Belmiro de Azevedo e ao jornal Público expresso sentido pesar.

sábado, 25 de novembro de 2017

Confiar ou não confiar

    Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, "O Quadrado"/"The Square" do sueco Ruben Östlund (2017) é um filme desconcertante e provocatório desde o seu início.
    Por motivos pessoais que não vão deixar de o atormentar, Christian/Claes Bang é retirado do seu conforto profissional como curador de um museu: em plena rua é despojado, sem dar por isso, da carteira, do telemóvel e dos botões de punho que lhe tinham sido deixados pelo avô.
     Tenta reagir através da localização do telemóvel, o que acaba por lhe devolver o que lhe tinha sido roubado mas lhe traz também a ameaça do caos, que se vai insinuando mesmo independentemente dele com a americana Anne/Elisabeth Moss que se intromete na sua vida e com o performer que excede o que era suposto fazer.
    Sozinho a maior parte do tempo, o protagonista tem de lidar também com as suas duas filhas pequenas - admirável o momento em que as perde no shopping e tem de pedir ajuda que só um mendigo lhe dá - e com os especialistas de comunicação e marketing do museu, que vão precipitar os acontecimentos.
                      
        Mas o desconforto de Christian e da audiência no filme contagia o espectador do filme na sequência da performance do homem-animal. Sequência central que vem questionar a existência do animal por baixo do homem dito civilizado - tinha havido antes o espectador com a síndrome de Tourette e o chimpamzé em casa de Anne, inexplicado.
         Centrado no protagonista, habilmente "O Quadrado" remete para o fora de campo, como se permanentemente deslocasse da instalação com aquele nome a atenção. Mas acaba por ser o completo domínio do tempo de cada plano e de cada sequência que impõe a mestria da realização.
      Deste modo, a inquietação provocada no espectador é insidiosa e vai atingir a partilha do medo do protagonista, que quer estabelecer um espaço de solidariedade e concórdia com a sua instalação, ao longo do filme e a partilha do medo dos espectadores na sequência do homem-animal, turvado por um irrepressível júbilo numa mistura a que chamarei "angústia".
        Inteligente e astuto, Ruben Östlund, de quem conhecíamos "Força Maior"/"Turist" (2014), é devedor de Lars von Trier e de Michael Haneke e surge como um cineasta inquieto e desassossegador que sabe lidar com tudo o que faz um filme, incluindo uma banda sonora musical rica e variada que torna assistir a "O Quadrado" uma experiência especialmente perturbadora.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Melancolia e nuvens

    "Frost"/"Serksnas" é o mais recente filme do lituano Sharunas Bartas (2017), o primeiro depois da retrospectiva e homenagem que o Centro Georges Pompidou, em Paris, lhe dedicou em 2015. De um cineasta de que temos a melhor impressão dos quatro primeiros filmes - "Três Dias"/"Trys Dienos" (1992), "Corredor"/"Koridorius" (1994), "Few of Us"/"Musum Nedaug" (1996) e "A Casa"/"Namai" (1997) - os últimos não nos têm chegado, pelo que foi no Lisbon & Sintra Film Festval que o consegui ver.
     Acompanhado pela namorada, Inga/Lyja Maknavicinte, Rokas/Mantas Janciauskas parte da Lituânia para a Ucrânia em substituição de um amigo, como voluntário em missão humanitára. Depois de uma noite num hotel em Kiev, em que discutem a guerra e se questionam sobre si próprios, sobre o amor que ele considera acompanhado pela tristeza, seguem para o seu destino.
                                  
      Nesse percurso encontram sucessivos militares e sinais de guerra - um comboio de tanques, um avião - e vai ser em conversa com os militares, enquanto se aproxima da frente de combate, que o protagonista vai ficar a saber qual a natureza da guerra antes de no final a experimentar por si próprio sem que a experiência lhe aproveite já.
   No prosseguimento de uma estética pessoal, Bartas filma sistematicamente as personagens em primeiro plano e tem uma atenção especial com os objectos e com o enquadramento da natureza, enquanto os longos diálogos alternam com longos silêncios, o que tudo estabelece a beleza e o encanto do filme, percorrido pela melancolia e com nuvens no céu.
     Noto que frost significa congelação mas também fiasco em inglês a propósito deste belo filme, uma co-produção lituana, francesa, ucraniana e polaca, assinalada pela presença dos polacos Andrzey Chyra e Weronika Rosati, da francesa Vanessa Paradis e do ucranianio Boris Abramov, que tem argumento do cineasta e de Anna Cohen-Yanay, fotografia de tons carregados de Eitvydas Doskus e em que a música surge só, de passagem, no final.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Único e famoso

    "Um Crime no Expresso do Oriente"/"Murder on the Orient Express", de Kenneth Branagh (2017), revisita o clássico de Agatha Christie, "o Shakespeare do romance policial", já levado ao cinema por Sidney Lumet (1974). A mim interessa-me especialmente por ser realizado e interpretado pelo homem que foi Kurt Wallender na série televisiva que lhe foi dedicada a partir dos romances de Henning Mankell.
    Com a realização limpa e hábil a que nos habituou, nomeadamente nas suas leituras cinematográficas de William Shakespeare, Branagh reserva para si o suculento papel do inefável, o único e famoso Hercule Poirot, no centro de um grupo muito apreciável de actores e actrizes, como já acontecia no filme anterior em que era interpretado por Albert Finney. E são os actores que voltam a fazer no cinema o livro de Agatha Christie, autora que deu ao género literário as suas "cartas de nobreza" ao tornar cada uma das suas obras um cadinho das paixões humanas.
   Revê-se e revive-se o misterioso assassinato no interior do Expresso do Oriente e, com carisma que rivaliza com o dos do filme anterior, todos os actores e actrizes impõem respeito: Michelle Pfeifer, Johnny Depp, Judi Dench, Penélope Cruz, Willem Dafoe em especial. O próprio realizador exagera um tanto os traços do protagonista, o que se compreende e não está mal visto, embora o Poirot de referência continue a ser Peter Ustinov.
                      
   Este romance de Agatha Christie em especial tornou-se agora uma "peça de programa" no cinema, com este filme em que Kenneth Branagh pratica algumas piruetas de câmara (os plongés sobre o interior do comboio) de que não se sai mal dada a dimensão e a forma do espaço envolvido, as personagens reduzidas a pouco mais do que marionetas.
   Com argumento de Michael Green, fotografia de Haris Zamlarloukos e música de Patrick Doyle, este um filme que apetece ver e de que se sai satisfeito. Com traços de grande cinema, impõe-se pela narrativa, pelas interpretações e pelo tratamento fílmico.
     De facto, como espectáculo "Um Crime no Expresso do Oriente" tem todos os elementos para se fazer notar, cotando-se acima da média das produções actuais. E a leitura cinematográfica do romance original está engenhosamente construída em termos fílmicos, fazendo sobressair o lado de construção artificial - as miniaturas, a minorização das personagens - para melhor destacar no drama factício a tragédia.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O demónio da pazmânia

 Com produção executiva de Martin Scorsese, o homem de "O Touro Enraivecido"/"Raging Bull" (1980) que é hoje considerado um dos melhores filmes da história do cinema, faz sentido "Bleed for This - A Força de um Campeão"/"Bleed for This", de Ben Younger (2016), também autor do argumento e da história em que este se baseia, co-Pippa Bianca e Angelo Pizzo. 
  O filme ocupa-se de Vinny Pazienza/Milles Teller, campeão mundial de boxe que depois de um grave acidente de viação tem de se submenter a uma intervanção cirúrgica melindrosa na cabeça.
  Contra todos os prognósticos e conselhos médicos, depois de retirados a sangue frio os quatro grossos parafusos colocados na sua cabeça, com a ajuda do seu treinador, Kevin Barney/Aaron Eckhart, ele recupera até poder, com maior peso, concorrer ao título mundial de uma categoria superior, replicando assim o que tinha feito antes. O pai e a mãe de Vinny, Angelo/Ciesáer Hinds e Louise/Katey Sagal, sofrem, ele tenta opor-se sem êxito e acaba por afastar-se.
                     
   Bem ambientado numa família italiana e católica, este filme ganha todo o seu interesse com a força de vontade e a persistência do protagonista, que se auto-denomina "o demónio da pasmânia", em fazer tudo para regressar ao combate de boxe ao mais alto nível a partir de uma situação que aparentemente de todo o inibe de o fazer. E esse percurso torna-se fundamental. 
   De realização clássica, sem rasgos mas correcto, este é mais um bom filme sobre a "nobre arte" a partir de factos reais. No final Vinny explica a uma repórter que foi simples, bastou contrariar o que lhe diziam para não fazer. E com o genérico de fim surge, como agora é hábito, a personagem real. 
  "Bleed for This - A Força de um Campeão" é um filme tipicamente americano e scorsesiano que vale a pena ver.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

A romã

    "Ana Hatherly e o Barroco. Um Jardim Feito de Tinta" é uma exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que recorda e homenageia a grande artista plástica, poetisa e ensaísta que, no seu trabalho como professora e a partir dele, redescobriu para nós no final do século XX o Barroco como época fundamental na arte e na cultura.
   Numa casa a que esteve muito ligada, a presente exposição recorda todas as actividades da artista e poetisa, mesmo como artista visual além de pintora, com peças pessoais suas - os quadros, diaporamas, filmes e manuscritos - mas também com peças que eles convocam no seu trabalho de investigação, de uma "estela do escriba de Irir" da XVIII dinastia, 1.300 anos A. C., a Josefa de Óbidos num quadro famoso, passando por uma gravura de Utamaro num dos muitos livros.
                                     
  Para que não caia no esquecimento uma grande figura das artes e das letras portuguesas, ligada ao modernismo dos anos 50 com a poesia experimental e concreta, rilkeana com certeza. 
   Muito pertinentemente dividida em cinco partes, esta exposição começa assim: "A incorporação do passado no presente é uma acção subversiva, porque um dos efeitos mais surpreendentes da acção do tempo é transformar o usual em estranho, o conhecido em desconhecido, o ordinário em exótico." 
  Nas delicadas e complexas linhas e cores saídas da mão de Ana Hatherly, nomeadamente em "A romã" de 1971/72, redescubro-me e abismo-me no infinito, na finalidade sem fim da arte de que fala Jean-Luc Nancy na esteira de Kant.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Cinema poético

   Decorre a partir de hoje até ao próximo dia 19 de Novembro na Fundação de Serralves, no Porto, a mostra "Jonas Mekas. Cinema na Linha de Fogo", programada por António Preto, que vai apresentar alguns filmes da longa filmografia do cineasta lituano.
  Tendo partido do seu país em 1944, ainda durante a II Guerra Mundial, só cinco anos depois chegou com o seu irmão Adolfas à América, onde se radicou. Aí começou como crítico de cinema, continuou como poeta e se tornou cineasta oficialmente a partir de 1961, o que o torna um homem multifacetado e de uma vasta panóplia de interesses.
                      
   Figura fundadora e cimeira da Film Culture, do New American Cinema, da Film-Makers Cooperative e dos Anthology Film Archives em New York, Jonas Mekas, que manteve contacto com os grandes artistas e figuras da cena artística e cultural norte-americana dos anos 50 e 60 do século XX, tem ocupado desde então um lugar central no cinema independente, de vanguarda e underground americano, com uma obra extensa e muito importante, em larga medida de carácter auto-biográfico e diarístico, extremamente marcante e influente.
  Para quem não conhecer os seus filmes esta é uma oportunidade rara e fantástica para ficar a conhecer pelo menos 10 dos melhores trabalhos de uma das grandes figuras do cinema contemporâneo, autor de um cinema poético, memorialista, que na expressão radicalmente pessoal encontra a sua grandeza. Um horizonte diferente e fascinante a descobrir.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um bom início

   "Party Girl", o primeiro e até agora único filme de Samuel Theis (2014), co-realizado com Marie Amachoukeri e Claire Burger à saída da FEMIS, é um belo filme, inspirado e feliz, com argumento dos três baseado na vida da mãe do próprio jovem cineasta.
  Movendo-se entre a ficção e o documentário, com actores profissionais e não-profissionais, trata dos tempos de perplexidade de Angélique/Angélique Litzenburger, sexagenária acompanhante de cabaret na fronteira entre a França e a Alemanha e mãe de quatro filhos, que hesita perante o assédio de um cliente, Michel Henrich/Joseph Bour, que quer casar com ela.
                                 
    Com grande à-vontade e prevalência dos corpos e rostos dos actores, com fotografia de Julien Poupard o filme descreve os percursos, os dilemas e os dias de uma mulher que está habituada ao seu trabalho e ao que ele implica, recupera uma filha, reúne a família e acaba por, relutante, aceitar a proposta de casamento.
    Resolvido contra o "final feliz" convencional porque Angélique segue a sua natureza e o seu instinto, este é um filme muito bom e promissor, com planificação justa e excelentes actores, em especial os que interpretam os dois protagonistas, feito com uma grande compreensão e uma grande ternura sobre o mundo actual visto numa perspectiva pouco comum.
   Câmara de Ouro da secção Un certain regard para o primeiro filme no Festival de Cannes, passou esta semana no Arte. Aplauso.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A mobilização dos sonhos

  No âmbito das comemorações do centenário da Revolução de Outubro, o Arte apresentou esta semana uma versão inédita, encontrada em Berlim, de "O Couraçado Potemkin", "Panzerkreuzer Potemkine", datada de 1930, colorizada (a famosa bandeira vermelha) e sonorizada, com nova música e falada em alemão.
   Com duração muito inferior ao original, 48 minutos contra 75, e por isso com menos imagens, tem mesmo assim imagens não incluídas na montagem final oficial do filme que permitem melhor entender o seu sentido revolucionário no cinema. 
                       
    Mais seca, esta versão é também mais dura e mais directa, por isso mais eficiente em termos propagandísticos embora menos calibrada artística e cinematograficamente que a original. Mais realista e menos moderna, a sua autoria continua a ser atribuída a Sergei Eisenstein, cujo génio, que depois da sua passagem pelos Estados Unidos e pelo México iria cair em desgraça nos anos 30 no seu país, permanece aqui intacto.
    Neste precioso trabalho de arqueologia do cinema, de recuperação e restauro de um dos melhores filmes da história do cinema numa versão inédita, é fundamental o trabalho da investigação no cinema. Neste caso o restauro foi feito pela Fundação Friedrich Murnau sob a supervisão de Enno Patalas, que aqui felicito por mais este feito notável.

Também no documentário

   Comemora-se este ano o centésimo aniversário do nascimento de Jean Rouch, o genial criador do documentário moderno e do cinéma-vérité, assinalado em França na Cinemathèque Française e na Bibliothéque nationale. O último número dos Cahiers du Cinéma fala extensamente sobre ele pela pena de gerações diferentes.
    Os seus documentários iniciais, feitos no pós-guerra em África, não acompanhavam só o ritual que os motivava, que era precedido pela apresentação individual de cada um dos intervenientes. O seu filme mais conhecido e citado dessa época é "Les maîtres fous" (1955), embora todos tenham sido importantes. Mesmo assim discutido pelos seus pares no Museu do Homem, em Paris, com a acusação de "paternalismo", nunca se furtou ao diálogo.
    Com esses filmes inaugurais dos anos 40 e 50 Jean Rouch ajudou ao nascimento do cinema africano, mesmo se discutido pelos cineastas locais, que com ele aprenderam a fazer filmes. E também o hábito saudável de não ter medo do que filmar nem de se expor, de criar em cinema uma realidade africana original nova.
                      
       Depois de ter usado o comentário off em voice over, em 1960 com "Chronique d'un été", co-realizado com o sociólogo Edgar Morin, impôs a entrevista em directo com microfone portátil e exposição do entrevistador, no final a discussão dos participantes e a dos próprios realizadores. Tendo filmado brancos em África e negros em Paris, enveredou, depois de experiências singulares como "Gare du Nord", segmento de "Paris vu par..." (1965), pela ligação do documentário e de alguma ficção, sem abandonar os rituais e o modo de vida dos africanos.
      Precedeu a nouvelle vague francesa, que depois acompanhou. No reconhecimento de uma influência, a de "Douro, Faina Fluvial" (1931), Jean Rouch esteve em Portugal para filmar no Douro com Manoel de Oliveira "En une poignée de mains amies" (1996), um filme pouco visto e que mercia uma outra divulgação. Tornou-se ainda em vida uma referência do documentário e do modo de o cinema lidar com o real.
    Frederick Wiseman estreou-se no cinema quando Rouch já levava 20 anos de actividade e pratica desde o início um documentário de obervação pura, em que a intervenção do cineasta está por regra ausente em benefício do acompanhamente de uma actividade e dos que a desenvolvem.
    Desse modo, desde "Titicut Follies" (1967) fez a crónica detida das instituições americanas e algumas europeias, revelando ao mundo aspectos menos conhecidos, uns controversos outros não, da vida da sua sociedade de origem e de outras no seu tempo. Sem querer ter nada a ver com o cinéma-vérité, que Rouch inaugurou, praticando antes um cinema directo.
                      
        Nada interessado em palhaçadas mediáticas, Wiseman prossegue o seu trabalho há 50 anos com uma pertinácia e uma pertinência notáveis, que fazem dele uma lenda viva do cinema e do documentário. Longe de Hollywood, de que nunca precisou e com que nunca teve nada a ver, com a sua própria produtora e distribuidora, a Zipporah Films, continua a trabalhar intensamente.
        Com filmes por vezes muito longos em especial nos úitimos 25 anos, o cinema de Fred Wiseman ajuda-nos a reconhecer a realidade social norte-americana em todas as suas facetas, objectivamente já que ele se limita a filmar sem interferir no que tem diante de si e da sua câmara, num exemplar exercício de ver e captar para mostrar o que acontece. O seu segredo está na escolha do tema de cada filme, na filmagem e depois na montagem precisa, com grande sentido do ritmo, das correspondências e da simetria. Ainda não pude ver "Ex Libris: New York Public Library" (2017), o seu último e muito longo filme, que espero estreie em Portugal depois de ter passado no Doclisboa.
       Mais experimental Rouch, mais clássico Wiseman, eles replicaram à distância os fundadores do documentário no cinema, Dziga Vertov mais experimental, Robert Flaherty mais próximo de um modelo clássico. E no entanto o cinema vérité de um vem de Flaherty enquanto o cinema directo do outro vem de Vertov, num muito curioso cruzamento de referências.

sábado, 4 de novembro de 2017

Os trabalhos e os perigos

  O filme "Peregrinação" de João Botelho (2017), agora estreado, não é uma obra simples nem linear pelo que deve ser encarado em todos os seus níveis e implicações.
   Crónica de viagens ao Extremo Oriente no século XVI, o livro de Fernão Mendes Pinto é uma obra fundamental da literatura portuguesa da época e de sempre. Desse modo se compreende a abordagem textual, do livro e da língua portuguesa neste filme como um motivo fundamental e fundador. Ora esta questão implica, a meu ver, uma certa austeridade da linguagem do cinema que o filme só parcialmente pratica.
   De facto, com a preocupação de dar um estímulo aos portugueses na actualidade, o cineasta faz o espectáculo das navegações portuguesas mais do que a sua crónica vívida, utilizando para isso o canto a capella das canções de Fausto Bordalo Dias, que surgindo a propósito no espectáculo não têm directamente a ver com a crónica da época, que no filme comentam.       
   Com a voz off do narrador, que se compreende por existir tal figura no original, tudo contribui para que se esteja perante um espectáculo cinematográfico actual que até suaviza certas passagens mais cruas do original para dar a ideia de um périplo acidentado mas exótico dos aventureiros portugueses de quinhentos pelo Oriente.
                    
   Mas não se deve esquecer que este filme vem depois de outras abordagens da literatura portuguesa pelo cineasta nos seus filmes anteriores, em "O Filme do Desassossego" (2010) e "Os Maias" (2014), e tendo-o em consideração a trajectória é descendente, pois "Peregrinação" fica-se nas meias-tintas do duplo ou triplo registo, indeciso entre as palavras ditas/lidas, as imagens e as palavras cantadas, descomprometido e sem uma linha de rumo definida que não seja a do filme de aventuras em cenários exóticos.
   Eu percebo o interesse deste como dos filmes anteriores do cineasta para a "educação nacional" mas, apesar de trabalhar sobre argumento seu, o rasgo criador original está cada vez mais ao serviço de uma mensagem e de destinatários que olhem boquiabertos e agradecidos para o grande espectáculo que em filme lhes é proporcionado por um grande artista
   Onde seria de esperar exigência encontra-se condescendência pelos nossos honrados antepassados, apresentados como vítimas dos selvagens e cujas tropelias são largamente minimizadas ou ignoradas. De resto, os actores estão bem, com Cláudio da Silva de novo num duplo papel, Catarina Wallenstein, Jani Zhao e Cassiano Carneiro, a fotografia de Luís Branquinho e João Ribeiro, o guarda roupa de Silvia Garbowski e os cenários de João Mendes Ribeiro cumprem, a música, com arranjos de Daniel Bernardes e Luís Bragança Gil, embora deslocada compreende-se. 
    Apesar da assinatura inconfundível de João Botelho, este filme passa ao lado e à distância do grande filme que poderia ter sido nas mão de Paulo Rocha, que o teve como projecto que não pôde concretizar.