quarta-feira, 31 de maio de 2017

O que se esconde

    "O Sentido do Fim"/"The Sense of an Ending" (2017) é a segunda longa-metragem do indiano Ritesh Batra, depois de "A Lancheira"/""Dabba" (2013). Baseado no romance homónimo de Julian Barnes, um dos melhores escritores da actualidade editado em Portugal pela Quetzal, Man Booker Prize em 2011 com este livro.
    Num país em que o cinema inglês é tratado "abaixo de cão" pela generalidade dos "cinéfilos iluminados", devo chamar a atenção para este filme de uma grande sobriedade e com uma narrativa superior que vem da sua origem literária. De facto, nele nada é o que parece, o que num momento temos por certo vem depois, logo a seguir ou mais tarde, a ser posto em causa.
    Tudo parte da velhice de Tony Westner/Jim Broadbend, divorciado de Margaret/Harriet Walter, cuja filha Susie/Michelle Dockery está no final da gravidez. Na juventude, Tony/Billy Howle teve uma namorada, Veronica Ford/Freya Mavor, que acabou por casar com um seu amigo, Adrian Finn/Joe Alwyn, que acaba de morrer.
                                      O Sentido do Fim Poster
     Passado cerca de uma hora em que o filme embrulha a narrativa entre o passado e o presente, Tony vai ao encontro dos seus amigos de juventude e acaba por ser procurado por Veronica/Charlotte Rampling, que começara por se negar a encontrá-lo ou a ceder-lhe o que Adrian terá deixado para ele.
    Claro que o mérito da narrativa, que é o melhor do filme, está no original, como já disse, mas mesmo com algum excesso Ritesh Batra, trabalhando sobre adaptação e argumento de Nick Payne, constrói um filme aparentemente monótono, em que parece pouco acontecer mas que dá conta de várias vidas com correcção e exigência, em planos geralmente fixos, o que lhe fica bem - com fotografia de Christopher Ross, pouca música de Max Richter e uma montagem expressiva de John F. Lyons.
    "O Sentido do Fim" é, em termos cinematográficos um melodrama sem excessos que na sua secura deliberada diz mais que os grandes e espectaculares melodramas cinematográficos e televisivos. Um pouco na tradição de David Lean mas com menos espectáculo. Vindo do país de Harry Potter isto interessa-me mais.
     Fruto acidental da ciência e da técnica no final do século XIX, posteriormente sujeito a múltiplas transformações, o cinema continua a firmar-se em outras artes e formas de expressão mais antigas, que mesmo se nem sempre enriquece pelo menos lhe servem, como neste caso, para se exprimir melhor e para elas chama a atenção (leiam Julian Barnes). Aqui o mérito de Ritesh Batra é de ter sabido aproveitar, sem a estragar, a sua fonte literária declarada.  
    Por sua vez, "Cameraperson" de Kirsten Johnson (2016) é um documentário que recolhe excertos de documentários feitos ao longo de 20 anos em que ela participou na fotografia, excertos esquecidos em filmes que passam e caem, eles também, no esquecimento.
     É ao que se esconde em filmes passados, rodados ao longo do globo - Bósnia-Herzgovina, Afeganistão, diversos países africanos, Iemen, Darfur, mas também nos Estados Unidos -, que a documentarista aqui dá vida e torna presente de novo, com o cuidado de regressar aos mesmos locais e filmes. Passa assim em revista conflitos graves através daqueles que neles mais sofreram, mas também inclui excertos privados da família e dos amigos da cineasta. 
                      Cameraperson Movie Review
    Ora, ao fazê-lo Kirsten Johnson não se limita a um "exercício de estilo" ou a uma mera "experiência", já que nos excertos seleccionados vida à sua própria câmara de filmar, sempre nas suas mãos e com a sua própria voz gravada em directo, por vezes também a sua própria imagem, o que permite equacionar o papel da câmara, da sua presença aberta, naqueles que filma.
      E aqui é a altura de percebermos todas as virtualidades do cinema e o seu aproveitamento fora dos circuitos de exibição comercial como elemento de mostração em que a presença da câmara não é indiferente no que de outro modo escaparia aos olhos públicos. Ao mostrar o que filmou de forma próxima e empática, "a mulher da câmara de filmar" levanta questões e rasga horizontes ao documentarismo.
     Recuperar excertos de filmes passados em "Cameraperson" serve a Kirsten Johnson, que entre nós é conhecida apenas pela sua participação na fotografia de "Citizenfour", de Laura Poitras (2014), para nos recordar, tirando-o do esquecimento, todo o sofrimento do mundo em tempos recentes e os que viram, e em muitos casos continuam a ver os seus direitos humanos brutalmente violados. Visto no mesmo dia que o anterior, no Arte, evidentemente. 

sábado, 27 de maio de 2017

Amar e sofrer

    A nova temporada da série "Twin Peaks" de David Lynch, com 18 episódios (2017), é um acontecimento maior no panorama televisivo do ano corrente. Porque se trata de uma série de culto e grande sucesso e por ser de novo realizada por David Lynch, que se encarregara dela nas suas duas anteriores temporadas, em 1990/1991.
    Este é um nome cuja importância como cineasta parece aumentar com o decorrer do tempo sem novos filmes realizados depois de "Inland Empire" (2006) salvo curtas e vídeos. Mas a série teve no seu início também um filme, "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer"/"Twin Peaks: Fire Walk with Me" (1992), que teve uma edição especial, "Twin Peaks: The Missing Pieces" (2014), que não dei por que nos tenha chegado.
  Como no cinema, onde se estreou na longa-metragem com "No Céu Tudo É Perfeito"/"Eraserhead" (1977) e para o qual fez "Mulholland Drive" (2001), a sua obra-prima, também na televisão Lynch constrói o seu trabalho em filme como um mistério que se trata de tentar desvendar e cuja investigação revela uma verdade desconhecida sobre as personagens e o seu meio. Só que em "Twin Peaks" é toda uma comunidade perdida no Noroeste dos Estados Unidos que se revela e, ao fazê-lo, revela uma parte da verdade de um país e de um tempo.
                    
    Criada por David Lynch e Mark Frost e com argumento de ambos, a série que agora regressa - amanhã, Domingo, 28 de Maio, às 22H 00M no TVSéries - vai mergulhar-nos de novo no mistério criado especialmente para ela, a partir da imaginação dos seus criadores e do talento dos seus actores e técnicos. Agora para uma audiência globalizada, excede muito do que de melhor se faz todos os anos para o cinema e rivaliza com qualquer outra das melhores séries televisivas como a melhor de sempre
    O trabalho em cenários naturais (e o proveito deles retirado) bem como o audácia da composição sonora aumentam a qualidade e também a influência deste pedaço de televisão absolutamente imperdível, encantatório e fantástico, ao trazer-nos um outro mundo, superiormente tratado, como parte do nosso, uma outra vida como semelhante à nossa.
    Para amar e sofrer, uma série mítica de um realizador mítico que se conta entre os nomes mais destacados do cinema contemporâneo.

O feiticeiro de Oz

    José Manuel Castello Lopes (1931-2017), que agora morreu, foi uma figura fulcral do cinema em Portugal ao dirigir a distribuidora Filmes Castello-Lopes, que com o seu irmão, o fotógrafo Gérard Castello-Lopes (1925-2011), herdara do seu pai, desde a década de 50 do século XX e ao fundar com o irmão a sala do Cinema Londres, na Avenida de Roma, em Lisboa, em 1972.
    A sua iniciativa como distribuidor e o seu bom gosto como programador permitiram-nos ficar a conhecer em tempo próprio um vasto catálogo de filmes marcantes da história do cinema. A sala fechou e ele agora partiu deixando entre todos os amantes do cinema as melhores recordações.                      
                              
     Fundamental com a Filmes Castello-Lopes na minha formação no melhor do cinema, no fundo a era do cinema em Portugal que ele assinalou com a sua intervenção esclarecida já tinha começado a acabar há muito.
     Era Membro  Honorário da Academia Portuguesa de Cinema, que lhe atribuiu em 2013 o Prémio Sophia de Carreira. 
     Aqui lhe presto a minha homenagem sentida.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Defeito e feitio

    Desde "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life" (2011), o seu último grande filme, que Terrence Malick, um dos nomes maiores do cinema americano, tem entrado em trajectória descendente, de que "Música a Música"/"Song to Song" (2017) é o ponto mais baixo.
    Trabalhando embora, como sempre, sobre argumento seu, o cineasta perde-se nos labirintos de personagens cifradas. Percebe-se o esforço experimental mas não basta hoje fazer à maneira do que Michelangelo Antonioni, Alain Resnais ou Jean-Luc Godard há mais de 50 anos faziam, nem encher o peito com a reprodução de uma fotografia icónica de Arthur Rimbaud.
    Mesmo acompanhando o filme detidamente, e especialmente fazendo-o, percebe-se que o próprio recurso à "subjectiva indirecta livre" de um "cinema de poesia" teorizado por Pier Palo Pasolini e Gilles Deleuze é já algo muito ténue e oportunista, presente como monólogo interior apenas para fazer valer esse ponto como estilo.
     Contudo, a mistura audiovisual variada aproxima-se do vídeo-clip em vários momentos - no que talvez seja o conceito de musical do cineasta -, os movimentos de câmara que associam travelling e panorâmica são exagerados e as personagens navegam livremente sobre si próprias valendo mais pelo que mostram do que pelo que são, já que carecem de qualquer densidade.
                    
     Além disso, anoto a total ausência de personagens que não sejam brancos e a total ausência de humor declarado, um aspecto que costuma aproximar o cinema americano do seu público - talvez por intransigência do cineasta. Considerando-o embora, haverá que notar que aquelas personagens e os seus problemas, que se reduzem a triângulos amorosos, podem ser típicos dos americanos brancos católicos do Texas na actualidade.
     Não rejeito, assim, sem mais este filme de um cineasta que prezo e que aqui quer de novo exibir a sua qualidade artística. Vistos em perspectiva daqui a uns anos, "A Essência do Amor"/"To the Wonder" (2012), "Cavaleiro de Copas"/"Knight of Cups" (2015) e este "Música a Música" poderão vir a formar uma trilogia importante na obra de Malick, mas mais do que os anteriores o seu último filme mostra mais os defeitos que o feitio de uma "maneira" tida como "estilo".
     Percebe-se que naquele timbre aquela música possa estabelecer com o seu instrumento as variações que quiser. Com mérito inegável, os grandes actores - Michael Fassbender, Natalie Portman, Ryan Gosling, Rooney Mara, Cate Blanchett, Holly Hunter - limitam-se a sinalizar e caucionar o "grande filme" do "grande cineasta. O que agora, se de trilogia se tratar, se impunha era sair do "círculo vicioso", agora manifestamente esgotado.
     Na sua seriedade como "autor" num tempo e num espaço que a eles não são favoráveis, Terrence Malick é um cineasta que continua a interessar-me fora do "fogo de artifício" da actualidade, do box office e da crítica. 

Caminhar

    Com argumento em que as actrizes participaram num "trabalho de campo" prévio, "Fátima" de João Canijo" (2017) é um filme surpreendente de um dos mais destacados cineastas portugueses. Um filme de risco que se aguenta menos mal nos objectivos que se tinha traçado.
    Uma peregrinação a Fátima - conhecido santuário mariano devido a "aparições" a três humildes pastorinhos que ali terão ocorrido cumprem-se agora cem anos - a partir de Vinhais, distrito de Bragança, em Trás-os-Montes. A pé, como manda a devoção dos portugueses.
    Sem ceder a facilidades, Canijo constrói com as suas actrizes um filme seco que pretende assemelhar-se a um documentário raconstituído que inclui a ficção minimal possível. Persistentes todos, realizador, equipa técnica e actrizes, o filme consegue com isso construir-se como apologia da fé de que capta os aspectos humanos nos pequenos episódios do percurso. 
    São exactamente os pequenos pormenores que no convívio entre mulheres - pois trata-se de um grupo constituído exclusivamente por mulheres - se estabelecem que pontuam e assinalam um filme que vale fundamentalmente por elas e com elas. "Fátima" de João Canijo é um filme longo que se pode tornar fastidioso para quem não entrar na sua lógica de percurso descrito em conjunto. Quem o acompanhar até ao fim fica enriquecido por um feito cinematográfico sobre um assunto de que o cinema português já se tinha ocupado há muitos anos, agora encarado de forma original e diferente.
                     
   
    Com um grupo de actrizes à altura e diálogos por vezes saborosos entre mulheres, o espectador acredita no que vê, na determinação e nas escaramuças, nos percalços e nos incidentes, o último dos quais envolve um homem e está bem resolvido em termos cinematográficos, sem abusar da credulidade do espectador.
     Num elenco em que se destacam Rita Blanco e Ana Moreira e em que é bom rever Márcia Breia e Teresa Madruga, todas as caracterizações cumprem e estão à altura numa planificação segura e variada, embora se perceba uma desigualdade das pronúncias locais, que umas actrizes procuram cumprir - e cumprem menos mal - e outras não no que é um artifício sensível que o documentário declarado evitaria.
    Muito à sua maneira, Canijo constrói este seu mais recente filme com mulheres e sobre elas por acumulação, aqui justificada pelo espaço percorrido e pelo tempo levado a percorrê-lo a pé. Embora conseguido em parte, o filme ressente-se também de uma montagem audiovisual por vezes dispersa e dispersiva - a peregrinação como espectáculo, o que é o mais discutível como registo - que obsta ao seu mais completo sucesso. 
   Chamo a este respeito a atenção para a exposição "Madonna - Tesouros dos Museus do Vaticano", patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, até 10 de Setembro próximo.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

As imagens hoje

    As imagens em todos os suportes e em todos os ecrãs adquiriram hoje em dia uma tal difusão e importância que cada uma invade sem problemas os espaços que a outras estava anteriormente dedicado.
   Resultado da condição tecnológica da imagem, artesanal, técnica ou digital, mais que a uma hibridação a situação actual leva a uma invasão de territórios e à consequente confusão. Não falo das simples evoluções de suporte, como o vídeo ou o dvd, mas daquilo que se passa com e por força da internet
    Tecnologia hoje em dia banalizada, ela apresenta evidentes vantagens, como a visita gratuita aos principais museus do mundo ou a difusão gratuita de obras de referência do cinema de outro modo inacessíveis. 
    Dou-vos a minha situação numa noite comum da semana passada: sentado diante da televisão, em que no Arte passava um filme que não me interessava sobremaneira, enquanto no computador tinha um filme que não tinha visto, "O Clube de Dallas"/"Dallas Buyers Club", de Jean-Marc Vallée (2013), oscarizado e tudo. Ao mesmo tempo lia um livro no meu sofá.   
                       Tilda Swinton and Jake Gyllenhall'Okja' photocall,
      Pergunto: nesta situação de excesso, a que dava eu mais atenção? Ao livro, evidentemente, embora muito grato a quem me permitia o acesso aos filmes.
       Contudo, o problema não surge só quando a visita on-line é paga mas sobretudo quando a rede se apresenta como exclusiva. Estou a falar do netflix, como é evidente, o problema que se discute neste momento, nomeadamente em Cannes.
       Compreendo as boas intenções que levam Tilda Swinton. a dizer que "há espaço espaço para todos" mas quando os filmes são exclusivo do netflix estão a apoucar o cinema quando são feitos para cinema e estão a privar-se e a privar-nos do contacto do cinema em sala ou mesmo em dvd.
       Eu que continuo a ir todas as semanas ao cinema não sou contra o cinema na internet, sou contra o cinema só na internet. Há filmes para cinema, filmes para a televisão, filmes para a internet e filmes de cinema ou séries televisivas para a internet. Pelo menos o autor do filme, o realizador, deve poder escolher o meio de difusão a utilizar.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Bom começo

   Jordan Peele, mais conhecido como actor cómico, resolveu ele também afoitar-se à realização em "Foge"/"Get Out" (2017) que, com argumento seu, é um surpeendente bom primeiro filme.
   Preenchendo os requisitos do filme de terror, tem uma realização tensa e precisa, que varia apropriadamente o seu ponto de vista por forma a acompanhar com a maior secura as tribulações de um jovem negro, Chris Washington/Daniel Kaluuya, durante o fim de semana em casa dos pais da namorada branca, Rose Armitage/Allison Williams.
   Os pais desta, Missy/Catherine Keener e Dean Armitage/Bradley Whitford, são suficientemente assustadores nos seus actos (o hipnotismo) e nas suas palavras para porem o protagonista se sobreaviso quanto às suas intenções, mas tarde demais no decurso da festa anual da família com os seus amigos, em que avulta Andrew Logan King/Lakeith Stanfield, também negro que acompanha uma branca mais velha.
  Com todos os conjurados na casa e redondezas, os empregados Georgina/Betty Gabriel e Walter/Marcus Henderson encarnam o projecto e o que espera Chris. Mas parte importante do interesse do filme passa pelos diálogos não-convencionais a que há que estar atento.
                     get-out2
    Chris safa-se no último instante porque tem um amigo que lhe ficara em casa com o cão, Rod Williams/LilRel Howery. Mas o percurso até aí chegar, repleto de pequenos episódios muito bem tratados, com suspense, está muito bem descrito e definido.
    A referência a "Adivinha Quem Vem Jantar"/"Guess Who's Coming to Dinner", de Stanley Kramer (1967), o clássico "bem comportado" sobre o problema racial americano, figura para ser completamente dinamitada. Os tempos são outros e é preciso desmontar os clichés sobre ele construídos.
   Percebe-se uma certa ingenuidade conceptual e a vontade de fazer de acordo com o gosto dominante, mas "Foge" é um filme de género bem esgalhado que funciona muito bem, com subtexto racial incluído, como primeira obra. Atenção a Jordan Peele mas também ao produtor Jason Blum.
   Com a vantagem de não se alongar excessivamente, é um primeiro filme promissor que não se deve perder.
   Visto na mesma semana em que o Arte (quem senão ele...) mostrou uma preciosidade muda, "Within Our Gates" de Oskar Micheaux, argumentista, produtor e ralizador negro (1919), um dos primeiros filmes americanos interpretados por actores negros e uma réplica a "O Nascimento de Uma Nação"/"The Birth of A Nation" de David W. Griffith (1915) que causou escândalo na época (por causa da violência).   

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Entre dois o terceiro

   Houve um tempo em que a discussão do melhor cineasta de sempre passou pelos nomes de Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Colocada nestes termos, que estão longe de ser errados, a questão é de resposta duvidosa e difícil.
    De facto, ambos começaram no tempo do cinema mudo e ambos foram para os Estados Unidos durante os anos 30 por razões diferentes e aí receberam consagração internacional. Quer um quer o outro excederam-se em qualidade cinematográfica, um com a ideia do suspense, o outro com a imposição de uma perspectiva ética.
   Grandes directores de actores, Hitchcock e Lang construíram filme a filme obras poderosas, fascinantes e superiores - e esta perspectiva da obra no seu todo é aqui fundamental -, de modo a tornarem-se e torná-los, aos filmes, parte integrante e maior da história do cinema - quem não os conhecer não pode dizer que conhece bem o cinema.
   Ambos enfrentaram também os tempos da II Guerra Mundial e os seus dilemas, as suas personagens sórdidas e grandiosas, sem complacência e agarrando de frente os seus pontos de fractura histórica - Hitchcock em "Correspondente de Guerra"/"Foreing Correspondente", "Sabotagem"/"Saboteur" e "A Corda"/"The Rope", Lang em "Feras Homanas"/"Man Hunt", "Os carrascos também morrem/"Hangmen Also Die", com a participação de Bertolt Brecht, e "Guerrilheiros nas Filipinas"/"American Guerrilla in the Philippines".  
                      http://www.tasteofcinema.com/wp-content/uploads/2013/12/french-cancan.jpg               
    Mas Fritz Lang tinha ocupado um lugar central no expressionismo alemão nos anos 20, pelo que talvez seja ainda hoje mais conhecido, enquanto nessa época Hitchcock se limitava a iniciar e experimentar a sua temática e o seu estilo que haviam de lhe dar um lugar único e superior no cinema. No final das suas vidas ambos regressaram às origens, Lang para o díptico indiano e "O Diabólico Dr. Mabuse"/"Die 1000 Augen des Dr. Mabuse", Hitchcock para "Frenzy".
    Há assim um notório equilíbrio no trabalho cinematográfico de ambos que os torna ainda mais comparáveis. Mas no seu tempo trabalhou também o francês Jean Renoir, como eles com inícios no cinema no tempo do mudo, que como eles foi para a América durante II Guerra Mundial e como eles regressou às origens nos anos finais, na década de 50.
    Com a sua visão carnal e psicológica, que acolheu a cultura francesa que herdou do seu pai, o pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir, possuídor de um universo pessoal muito próprio em que as mulheres sempre ocuparam lugar central e em que os homens surgiam como dominados ("La chienne", com remake de Fritz Lang em "Almas Perveersas"/"Scarlett Street"), como iguais ("A Regra do Jogo"/"La règle du jeu") ou como dominantes ("French Cancan"), na sua sabedoria imensa e na sua estética superior que desde o início do sonoro antecipou pelo menos a "profundidade de campo", entre os dois maiores Jean Renoir é a minha terceira escolha como melhor cineasta de sempre.
     Fritz Lang dizia que ele se adaptara mal em Hollywood por falar mal inglês mas o certo é que o que ele fez antes - "Madame Bovary", "Toni", "O Crime do Sr. Lange"/"Le crime de Monsieur Lange", "Passeio ao campo"/"Partie de campagne" sobre Maupassant, "Les bas fonds" a partir de Gorki, "A  Grande Ilusão"/"La grande illusion", "A Fera Humana"/"La bête humaine" a partir de Zola - e depois da sua estadia americana - "O Rio Sagrado"/"The River", "A Comédia e a Vida"/"Le carrosse d'or", "Helena e os Homens"/"Elena et les hommes", "O Testamento do Médico e do Monstro"/"Le testament do docteur Cordelier", "Le déjeuner sur l'herbe", "O Cabo de Guerra"/"Le caporal épinglé" - justifica amplamente o título do melhor cineasta de sempre. Ninguém como ele viu a vida, o mundo e o cinema do seu tempo como ele, que foi também dos cineastas mais influentes no futuro - Truffaut e Chabrol em especial, entre mutos outros que ecoaram "A Grande Ilusão" e "A Regra do Jogo".
    Ao ascetismo de Robert Bresson, tão amado por tantos e que admiro, sempre com Claude Chabrol preferi a sua sensualidade e o seu humanismo profundo, que não dispensava o humor e a ironia franceses, sem peias de qualquer espécie. Nunca houve nem haverá outro cineasta como ele. Nem John Ford? Nem ele. Nem Orson Welles? Nem ele. Nem Kenji Mizoguchi? Bem, aí talvez...

domingo, 14 de maio de 2017

Fim de semana alucinante

   Num fim de semana alucinante, a vitória de Portugal no Festival da Eurovisão, merecida na voz e na presença de Salvador Sobral, é um acontecimento importante mas menor.
   De facto, a visita a Fátima do Papa Francisco, personalidade maior da actualidade, por motivo canónico, trouxe sobre o país uma atenção especial que incrementa o seu bom nome em termos internacionais. Na sua simplicidade e nas suas palavras francas e abertas, na sua presença Bergoglio trouxe-nos luz a todos a partir de Fátima.
   Por sua vez, a tomada de posse do novo Presidente da República de França, Emmanuel Macron, trouxe ventos de mudança e novas esperanças para o seu país, a Europa e o mundo num momento muito difícil. Ficamos todos à espera de que cumpra as suas promessas numa eleição vencida sem ambiguidade nem alternativa.
                      http://www.promipool.de/var/promipool/storage/images/media/images/salvador-sobral/3774161-1-ger-DE/salvador-sobral.jpg
     Num fim de semana em que acabaram os grandes campeonatos europeus de futebol, que não me interessam, a vitória de Portugal no Festival da Eurovisão é um mero episódio que mesmo assim atrai sobre o país as atenções gerais pelas melhores razões, pois a canção vencedora, "Amar pelos dois", não desmerece da tradição da balada portuguesa e era a única a concurso que não cedia à imposição de um modelo internacional anónimo e indiferente no seu espectáculo.
   Sou pelo Papa Francisco e por Emmanuel Macron como figuras fulcrais em termos internacionais, portadoras de palavras de verdade e de esperança. Quanto ao canto-cantor português felicito-o por ter imposto uma verdade local em termos artísticos contra os estereótipos tidos como "modernos": foi contemporâneo nos termos de Agamben, que vêm de Nietzsche, de ser "extemporâneo".
     O mundo começou a mudar, como tantas vezes tem acontecido, vamos a ver se para melhor. Amanhã é outro dia em que o papel da segurança pessoal continua a ser fundamental. "O primeiro dia do resto das nossas vidas", como cantava no seu tempo o Sérgio Godinho. E Portugal está decididamente na moda pelas melhores razões.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Uma referência literária e ética

    Armando Baptista-Bastos (1934-2017) foi em tudo aquilo que escreveu e fez uma referência ética desde os anos 50, a fase final do Estado Novo.
    Grande senhor da escrita literária e jornalística - e o jornalismo deu uma característica singular e superior à sua escrita -, esteve onde foi preciso estar no combate ao fascismo, que muito claramente o perseguiu e prejudicou. 
    Também esteve na escrita sobre cinema, como cinéfilo que era, na polémica do tempo. Destaco aqui "O Filme e o Realismo" (Lisboa. Arcádia, 1962), um livro esclarecido e bem informado, também revelador de bom gosto. Mas destaco sobretudo a sua participação intelectual e física, criativa, em "Belarmino", de Fernando Lopes (1964), filme seminal do cinema novo português.
                       https://dasculturas.files.wordpress.com/2014/06/baptistabastos2013.jpg?w=545
   Amigo fiel e leal dos seus amigos, honra lhe seja, e adversário temível em polémicas históricas - foi além de um grande escritor e jornalista um grande polemista -, ocupou um lugar que não pode ser esquecido, porque memorável na cultura portuguesa.
   Tornado personagem controversa com a sua chegada à televisão, em que já só esporadicamente o acompanhei, permanece para mim no momento muito triste do seu passamento um homem corajoso, íntegro e vertical naquilo que fez e escreveu. E na escrita foi um grande estilista da língua portuguesa, na esteira de Ramalho, Eça e Aquilino.
   Portugal, onde nasceu, passou por ele e ele permaneceu parte indeclinável sua. Depois de de Dinis Machado e Herberto Helder, é uma personalidade fundametal da cultura portuguesa da segunda metade do século XX que se vai. Aqui lhe presto a minha respeitosa e sentida  homenagem.
    

sábado, 6 de maio de 2017

O explorador

    Sinto-me feliz por ter podido assistir ao mais recente filme de James Gray, "A Cidade Perdida de Z"/"The Lost City of Z" (2016), pois trata-se de mais um daquele que considero o melhor cineasta americano da actualidade.
    A narrativa verídica de um inglês, Percy Fawcett/Charlie Hunnam, que no início do século XX por três vezes, a última acompanhado pelo seu filho mais velho, Jack/Tom Holland, parte para a Amazónia, na fronteira entre a Bolívia e o Brasil, primeiro para cartografar fronteiras por incumbência da Sociedade de Geografia Britânica, depois para encontrar uma cidade mítica e desconhecida a que chamou Z, tem os motivos de interesse que o vulgar filme de aventuras não tem.
   Mas é o próprio trabalho fílmico de James Gray que neste filme me interessa, com uma planificação rigorosa sobre as personagens que plano a plano reúne e separa, aproxima e afasta segundo regras tipicamente cinematográficas. Contra a rigidez da sociedade inglesa, a grande aventura no desconhecido impõe-se ao protagonista como um projecto conradiano num continente diferente. 
                     The Lost City Of Z
     Quer em termos espaciais - no interior do grupo de exploradores, no cerco pelos indígenas - quer em termos temporais - o entrecortar das expedições pelo regresso a Inglaterra, com os novos filhos do casal e a passagem pela frente da Guerra Mundial - "A Cidade Perdida de Oz" de James Gray está muito bem trabalhado e resolvido até ao fim. Com produção e argumento do cineasta baseado em livro de David Green, o filme explica o que é explicável sem se dispensar de deixar a sua parte ao mistério. 
     Sienna Miller como Nina Fawcett e um irreconhecível Robert Pattinson como Henry Costin dão excelente réplica num filme que vale por uma mise en scène segura, leve e cerrada, revelando influências da banda desenhada. A fotografia de Darius Khondji é muito boa e a música de Christopher Spelman sempre justa, enquanto a reconstituição de época está sempre certa, com os exteriores da selva e do rio rodados na Colômbia.
    Ter compreendido a originalidade e a precedência das culturas que encontrou foi fundamental para este explorador pioneiro da Amazónia, ao ponto de aí ter resolvido, quanto se sabe, ficar. E lembro que por esta época Robert Flaherty trabalhava ele também de forma pioneira na Baía do Hudson para o seu pioneiro documentário "Nannok of the North" (1922), um filme cheio de peripécias que o tornaram muito difícil de concluir.
    Claro que a este seu melhor nível o cinema americano continua a ser muito bom. O seu problema actual é, contra o que acontecia na "era dourada" dos estúdios, salvo esporadicamente nos géneros ter uma produção média muito fraca. Agora anuncia-se para breve o mais recente filme de Terrence Malick, "Música a Música"/"Song to Song" (2017), que será de novo do melhor do cinema americano.

terça-feira, 2 de maio de 2017

A miséria do mundo

  O Arte mostrou no início desta semana "I Pay for Your Story" (2017), o último filme do documentarista de origem polaca Lech Kowalski, um filme precedido de referências críticas muito elogiosas. 
  Rodado em Utica, a 4H 30M de carro a norte de New York, onde cresceu, é um documento impressionante sobre gente marginalizada numa sociedade deprimida. Com a promessa de lhes pagar por contarem para a câmara a sua história, o cineasta mostra e ouve neste documentário uma série de gente que vive entre o desemprego, a violência, as drogas duras (consumo e tráfico) e estadias sucessivas na prisão. De ambos os sexos e na sua maioria afro-americanos .
   Impõem-se nesses depoimentos as comparações com o que a cidade foi 30 anos antes, quando era um centro industrial, e o espírito de resistência de quem afirma hoje sobreviver e lutar por uma vida melhor para os seus filhos sem ter desistido da sua própria vida. Com um jeito descontraído, sem mostrar o interior das habitações mas permitindo a evocação dos estabelecimentos locais outrora mais famosos, o realizador reúne cada grupo familiar ou de amigos para os ouvir, um de cada vez. 
                   
     A imagem de "terra da grande promessa" que temos da América sofre aqui um forte desmentido com o apresentar de uma sua outra face, nada apelativa e muito deprimente. Que no país tido por o mais rico do mundo gente viva daquela maneira naquele meio é um choque para que o filme nos convida e a que devemos submeter-nos.
    Não se trata do simples trabalhador vítima de uma crise profunda, mas de quem não encontrou um lugar que seja seu numa sociedade que seja sua. Alguns lutam ainda por ele, embora se perceba que manter o "sonho americano" naquelas condições seja muito difícil. Mas a reacção mostrada, de não desistir, não baixar os braços nem se deixar abater, é exemplar.
    Um lado de improviso e uma grande empatia fazem deste documentário interactivo, em que no final o cineasta fala sobre si próprio, uma obra preciosa e muito esclarecedora. É urgente conhecer esta outra face do sonho. É urgente conhecer estes desconhecidos que não ficam na história embora dela façam parte. 
    O filme passa na edição deste ano do IndieLisboa, a 14ª, que começa amanhã, dia 3 de Maio.