sexta-feira, 30 de junho de 2017

Ao negro

      "Mãe Rosa"/"Ma' Rosa" do filipino Brillante Mendoza (2016) significa um regresso do cineasta ao seu melhor, de que esteve afastado nos seus filmes imediatamente anteriores desde "Cativos"/"Captive" (2012).
    Com argumento de Troy Espiritu, o filme ocupa-se de Rosa/Jaclyn Jose, casada com Nestor/Julio Diaz e com quatro filhos, presa com o marido por posse de drogas para mais do que consumo num segmento vivo e bem encenado. Segue-se o tempo na esquadra de polícia com a exigência de dinheiro, o que a leva a denunciar quem era o seu "fornecedor" - enquanto mais tarde um dos filhos é informado de quem a denunciou a ela para libertar um irmão.                          
     A questão alarga-se aos filhos quando eles têm de arranjar o dinheiro que ainda falta, no que cada um deles dá o seu melhor - um deles chega a prostituir-se para obter mais algum. Por fim vai ser a protagonista a arranjar o dinheiro que falta e o plano final dá conta do seu triunfo.
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   Com uma câmara muito móvel de Odyssey Flores e uma música escassa mas berrante de Tereza Barroso, "Mãe Rosa" traça um retrato pungente das Filipinas numa área muito sensível. Um retrato em que a coesão familiar lida com uma cadeia de denúncias tidas como normais no meio, com um esquema de corrupção estabelecido na polícia.  
    Numa situação negra Brillante Mendoza adopta uma estratégia de Série B para desenvolver um trabalho intransigente cinematográfica e narrativamente. Tudo é negro naquela realidade do tráfico de droga e do seu combate, uma realidade que não é apenas das Filipinas, embora a figura da protagonista, que concentra as atenções sem as monopolizar, consiga juntar as pontas para, com ajuda dos filhos, sair do impasse e do cerco que lhe foi montado, a ela e aos seus.
   Há uma espontaneidade nas interpretações naturalistas que valoriza o filme e o impõe como objecto especialmente interessante e significativo. Destaque para Jaclyn Jose, justamente distinguida em Cannes. 
    Sem distanciamento, "Mãe Rosa" de Brillante Mendonza funciona como um choque, um choque saudável de uma ficção que não esconde a realidade, antes a desvela e desperta para a gravidade do problema e para a necessidade de lhe fazer frente, tirando-o do negro.  

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Um com o outro

          David Lynch é mais velho do que Quentin Tarantino e começou no cinema antes dele, mas entre os dois eles partilham o maior destaque no cinema americano contemporâneo, que corresponde ao chamado (em tempos) "capitalismo tardio".
         Iniciando-se no cinema nos anos 70 ainda, Lynch rapidamente atingiu o sucesso e a fama nos anos 80, sobretudo devido a "O Homem Elefante"/The Elephant Man" (1980), o discutível "Dune" (1984) e "Veludo Azul"/"Blue Velvet" (1986). A partir de "Coração Selvagem"/"Wild at Heart" (1990), e incluindo "Twin Peaks" série (1990, 1991) e filme (1991), sucedem-se os (poucos) grandes filmes.
         Com traços surrealistas, a sua obra desdobra-se em renovada forma cinematográfica, sempre com grande exigência artística, até atingir o seu cume, depois de "Estrada Perdida"/"Lost Highway" (1997), em "Mulholland Dr." (2001) e "Inland Empire" (2006), após o que tem trabalhado especialmente em vídeo e na curta-metragem.
        No seu cinema da inquietação, David Lynch impôs um estilo e temáticas que se mostraram de grande pertinência e actualidade, desafiando o espectador com o qual cada filme seu contava e jogava para que ele fizesse a sua parte completando-o.
                      http://www.tvovermind.com/wp-content/uploads/2017/05/Lynch.jpg
       Tarantino, formado pelas cassetes-vídeo que vendia na loja onde começou por trabalhar, impôs-se no topo com "Cães Danados"/"Reservoir Dogs" (1992), conheceu novos sucessos com "Pulp Fiction" (1994) e a ideia original de "Natural Born Killers", de Oliver Stone (1994), seguidos de "Kill Bill" (2003, 2004).
       Voltado para a violência exacerbada e para o neo noir, o seu exagero em dispêndio de adrenalina passou como fantasia romanesca por uma parte importante do melhor (e também do pior) do cinema americano contemporâneo.
        Determinante numa nova dinâmica cinematográfica, jogou com o passado do cinema sem rebuço enquanto para ele rasgava de forma pessoal novos horizontes, por vezes com o seu amigo Roberto Rodriguez como em "Sin City: Cidade do Pecado"/"Sin City" (2005), como realizador convidado, e "Grindhouse" (2007).
         Ambos atravessaram assim a barreira da revolução digital, de que cada um a seu modo tirou proveito. Mais voltado Lynch para uma realidade normal subvertida pelo inesperado e para a construção temporal, excepto em "Um Homem Simples"/"A Simple Man" (1999), Tarantino enfrentou mais directamente os géneros, nomeadamente o film noir mas também o filme de guerra em "Sacanas Sem Lei"/"Inglorious Basterds" (2009) e o western em "Django Libertado"/"Django Unchained" (2012) e "Os Oito Odiados"/"The Hateful Eight" (2012), de forma que os subverteu a todos.                                                    
                     
         Ambos argumentistas dos seus filmes, e portanto autores totais, um trabalha raramente para o cinema, enquanto o outro diz ir só até aos dez filmes. Um mais do lado da imaginação, o outro mais do lado de um realismo transfigurado, os dois trabalharam para cinema e para televisão e arriscaram sempre tudo em cada filme ou série. 
     Foram e continuam a ser homens do seu tempo, modernos ou pós-modernos e contemporâneos, sem se deixarem minimizar nem banalizar pela produção cinematográfica ou televisiva correntes mas jogando com elas. 
       Assombrados cada um deles pela sua própria visão do cinema, não ficaram parados nem trabalharam para a história, antes, pioneiros imprevisíveis, avançaram sempre por novos e inesperados territórios. E foram reconhecidos: Lynch foi Palma de Ouro em Cannes em 1991 por "Coração Selvagem", melhor realizador em 2001 por "Mulholland Dr." no mesmo festival, Leão de Ouro Honorário em Veneza em 2006; Tarantino Palma de Ouro em Cannes em 1994 por "Pulp Fiction", Oscar do melhor argumento original em 1994 pelo mesmo filme e em 2012 por "Django Libertado".
       Melhor do que eles só os Coen às vezes, Jim Jarmush e James Gray sempre. Mas para compreender o cinema contemporâneo é preciso conhecê-los bem aos dois. Um com o outro, cada um deles usando sempre a primeira pessoa do singular.

sábado, 24 de junho de 2017

Ganhar e perder

   "O Dia Mais Feliz na Vida de Olli Mäki"/"Hymyilevä mies" (2016), a segunda longa-metragem do finlandês Juho Kuosmanen e o seu primeiro filme a chegar-nos, é um filme muito curioso na sua aparente e deliberada modéstia.
   A partir de argumento do realizador e de Mikko Myllylahti, com uma exigente fotografia a preto e branco de Jani-Petteri Passi, narra a preparação da persoangem do título, Olli Mäki/Jarkko Lahti, para o combate de boxe de pesos pluma para o título mundial, a disputar em 17 de Agosto de 1962. Acompanham-no o seu manager, Elis Ask/Eero Milonoff e, intermitentemente, Raija Mäki/Oona Airola, porquem está apaixonado. 
                       http://almanaquevirtual.com.br/wp-content/uploads/2016/10/20161017-hymyilevamies_800e.jpg
   Numa preparação em que também deve emagrecer, ele tem de tentar compatibilizar os treinos com os seus amores, o que se revela difícil, tanto mais quanto é acossado pela imprensa e por uma equipa que quer fazer um documentário. A fragilidade psicológica assim revelada não podia levar a outro resultado senão aquele ko ao segundo assalto.
   Terá tido uma vida feliz depois do dia mais feliz dela, uma vez que se trata de história de uma personagem real. Dos fracos não reza a história do boxe mas cada um faz as suas escolhas e este não foi o fim da sua carreira que com apreciáveis triunfos durou até 1973.
   Olli Mäki revela uma simplicidade encantadora e o filme está muito bem feito e equilibrado. Gosto muito do cinema finlandês, nomeadamente dos irmãos Mika e Aki Kaurismäki, de que Juho Kuosmanen se mostra neste filme perfeitamente à altura.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Dignidade e respeito

   A anunciada retirada de Daniel Day-Lewis do cinema, onde trabalhou como actor ao longo de mais de 30 anos com o maior brilhantismo, é uma notícia triste embora compreensível. Várias vezes premiado com as maiores distinções do cinema, ele foi o melhor actor do seu tempo.
                      Daniel Day-Lewis is hotly tipped to win an Oscar for Lincoln
   Como fizeram outros grandes nomes do cinema - Ingmar Bergman, por exemplo -, ele retira-se no seu apogeu, deixando-nos um legado de extraordinárias interpretações em filmes de grandes realizadores, como Stephen Frears - A Minha Bela Lavandaria"/"My Beautiful Laundrette" (1985) -, James Ivory - "Quarto com Vista Sobre a Cidade"/"Room With a View" (1985) -, Jim Sheridan - "O Meu Pé Esquerdo"/"My Left Foot" (1989), Oscar do melhor a actor, "Em nome do Pai"/"In the Name of the Father" (1993) e "O Boxeur"/"The Boxer"(1997) -, Michael Mann - "O último dos Moicanos"/"The Last of the Mohicans" (1992) -, Martin Scorsese - "A Idade da Inocência"/"The Age of Innocence" (1993) e "Gangs de Nova Iorque"/"Gangs of New York" (2002) -, Paul Thomas Anderson - "Haverá Sangue"/"There Will Be Blood" (2007), Oscar do melhor actor, e "Phantom Thread" (2017), inédito -, Steven Spielberg - "Lincoln" (2012), Oscar do melhor actor.
    Aqui lhe deixo neste momento a homenagem da minha admiração e do meu respeito, desejando que uma vez por outra interrompa o afastamento que agora anunciou para nos brindar de novo com o seu excepcional talento.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

No caos

   "Argent amer"/"Bitter Money/"Qu Qian" (2016) é o mais recente filme do documentarista chinês Wang Bing e passou na segunda-feira à noite na rubrica "Lucarne" do Arte. Trata-se do grande documentarista cinematográfico da actualidade e a passagem deste seu último filme explica porque vejo o Arte todos os dias.
   Estamos no sudeste da China, na zona de Shanghai, para onde convergem trabalhadores do interior em procura de trabalho que nas sua terras não têm. De uma forma plenamente equilibrada, o filme começa com os que chegam, esperançados, e termina com os que partem, desiludidos. O filme foi rodado entre 2014 e 2016.
   O que se passa entretanto são discussões familiares e discussões sobre o trabalho, filmadas nos locais, as habitações e as fabriquetas texteis onde lhes é possível trabalhar. Pormenorizados excertos dão-nos o trabalho nas máquinas mas a maior parte do filme decorre a acompanhar trabalhadores que sobem e descem escadas, discutem o presente e o futuro, convivem e se embriagam.
                     BITTER
    E é a vida real que assim mais uma vez nos chega num filme de Wang Bing, a vida dos mais desprotegidos porque entre o desemprego e um trabalho precário que procuram longe de casa, que tentam não se deixar enganar nem roubar por aqueles que os empregam, que se debatem também eles com dificuldades.
    Ao devolver-nos fielmente esse quotidiano, filmado por vezes com dificuldades e envolvendo pelo menos uma vez perguntas feitas de trás da câmara às personagens, Wang Bing cumpre mais um passo decisivo numa obra fundamental e de referência. Percebem-se as dificuldades de manter em cada momento a câmara com o melhor quadro, a melhor composição do plano-sequência, se possível com profundidade de campo, dificuldades próprias do documentário mas aqui especialmente notórias devido à agitação do meio envolvente. 
   A cidade com os seus edifícios, a sua vida, os seus ruídos, as suas luzes na noite está, omnipresente, por todos os lados daqueles pequenos seres, na maioria jovens, que no filme se agigantam por momentos - os de uma caminhada, os de uma discussão, os de uma bebedeira - para no seu final desaparecerem como nós, espectadores.
   Wang Bing é um dos maiores cineastas actuais, de quem vale a pena conhecer tudo, o que continua a mover-me como no passado me moveu com os clássicos e os modernos de todo o mundo. 

domingo, 11 de junho de 2017

O livro de Rose

    "Escritos Secretos"/"The Secret Scripture" é o mais recente filme de Jim Sheridan (2016), o mais conhecido irlandês do cinema internacional na actualidade, um cineasta sério de talento relativo - apesar da sua boa vontade não atinge o nível dos anteriores famosos de origem irlandesa no cinema, John Ford e John Huston, nem o de Sergio Leone, que como ele se moveu entre o Velho e o Novo Continente.
    Mesmo assim, como os anteriores este seu mais recente filme oferece motivos de interesse na história da "mulher do aviador", Rose/Rooney Mara, contada por Lady Rose/Vanessa Redgrave, idosa de há muito internada num hospital psiquiátrico, a partir do que sobre a sua vida ela própria escreveu.
    Enfrentando bem a reclusão hospitalar, o filme tenta explorá-la para a compreender e denunciar mas sem assumir a clareza narrativa exigível e desejável relativamente ao passado, o que prejudica a sua coerência interna e a sua plena inteligibilidade. 
                      The Secret Scripture
    De facto, contado num flash-back arbitrário, não absolutamente necessário, em "imagem-recordação" nos termos deleuzianos, nota-se a falta de clareza e de verdade nessa recordação no que respeita ao filho da protagonista. Mais e pior, não é suficientemente explicitada a "personagem-testemunha" da bifurcação do filme e da sua narrativa, o que o torna pouco claro embora haja que distinguir o plano do escrito e o do próprio filme. Escusadamente elaborado, no limite do confuso, rebuscado e manipulatório por não cumprir regras mínimas no que mostra e no que cada personagem sabe.
    Com argumento do cineasta e de Johnny Ferguson baseado em novela de Sebastian Barry, "Escritos Secretos" faz uma análise quanto se pode perceber pertinente da Irlanda católica, assumindo um tom de melodrama declarado em cristal discutível. No fim tudo é demasiado forçado, o que só a lógica do melodrama cinematográfico pode justificar.
     Filmado em cenários naturais na Irlanda, insiste bem na Sonata "Clair de Lune" de Beethoven, com outros motivos musicais geridos de forma discutível, e com bons actores assume contornos visuais e sonoros por vezes apreciáveis. Melhor quando arrisca e investe mais, pior quando se limita à ilustração académica pretensiosa como aqui acontece, Jim Sheridan continua a ser um cineasta a não perder de vista.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Uma experiência

    No quadro de um pomposamente intitulado "festival do documentário", o Arte mostrou na passada terça-feira, depois de "Les derniers hommes  d'Alep", de Feras Fayyad e Steen Johannessen (2017), um documento dinamarquês realista sobre a violentíssima guerra em curso na Síria, o último filme do franco-cambodjano Rithy Panh, "Exil" (2016).
    O filme do autor de "A Imagem Que Falta"/"L'image manquante" (2013) é uma nova variação sobre o Cambodja da sua memória, com recurso a documentários da época e uma colagem de textos célebres colocados no comentário interior da personagem masculina encenada a cores na actualidade, constrangida a um espaço reduzido, carceral.
     Sabe-se da gravidade dos acontecimentos, até ao genocídio de uma auto-proclamada revolução cambodjana nos anos 67/70, que aqui se mostra estribada no pensamento de Mao, o que atendendo à proximidade geográfica é compreensível. As imagens a preto e branco de época, sobretudo de manifestantes exaltados em favor do ditador, imagens por vezes já em mau estado, são testemunhos de um tempo passado que não deve ser esquecido.  
                    
   Agora o discurso literário posto na cabeça do exilado encenado na actualidade, para além de enquadrar as actualidades contém uma carga poética que envolve o filme num registo rememorativo que, à distância e com distanciamento, faz a apologia das vítimas e a condenação dos algozes mas sobretudo expressa o ponto de vista da experiência do exílio.
   Por aquilo que dele conheço, Rithy Panh é um cineasta inteligente que neste "Exil" deixa transparecer um certo encantamento da experiência do exílio em termos subjectivos, que é indispensável também à distância conhecer, pelo que este filme faz inteiro sentido na sua obra
   Neste momento interessa-me, contudo, mais o documentário sobre a guerra na Síria pela sua actualidade e pela sua verdade imediata e brutal, aquela em que se debateram os "capacetes brancos" durante o cerco a Alepo em 2016 - um filme que está disponível na internet -, com a ideia de que daqui a uns anos alguém poderá fazer sobre essa guerra um filme semelhante ao de Rithy Panh.

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Amar e sofrer +

    Fui ver "Twin Peaks: The Missing Pieces" (2014) para completar o quadro. É composto por excerto excluídos de "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer"/"Twin Peaks: Fire Walk with Me" (1992) e estabelece uma boa transição para o actual estado da série televisiva, agora em terceira temporada. Serve para nos ajudar a recapitular tudo, num momento em que está em curso entre nós uma "operação David Lynch", o que é justo e bem vindo.
                                        Twin Peaks: The Missing Pieces
    Além de voltar a aconselhar a série e todos os filmes de David Lynch, permito-me aconselhar também o livro de Mark Frost "A História Secreta de Twin Peaks" (Lisboa: Suma de Letras, 2016). Trata-se de uma obra de ficção de um dos autores da série, situada, para nos facultar as supostas origens do mistério, no início do seculo XIX.
    Nisto como em tudo o melhor é conhecer a história toda - por exemplo, a origem daquele anel - mesmo que seja para ficar ainda numa certa ignorância. Mas o que faltava em "Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer" era muito importante e torna-se especialmente valioso quando entregue em novo filme por quem o excluiu.

domingo, 4 de junho de 2017

O espaço público

     No seu programa "court-circuit", o Arte transmitiu ontem à noite quatro curtas-metragens sobre o espaço público com especial relevo para a arquitectura. Trata-se de filmes de excelente qualidade, os dois primeiros com grande performatividade, o terceiro com exposição ao dia e à noite, o último, "Peripheria", uma extraordinária animação.
    "Aujourd'hui je ne suis pas là" do argentino Gustavo Taretto (2007), sobre as "zonas de sombra", "Every-One" do austríaco Willi Dorner (2015), com coreografia em zona urbana explorando formas, volumes e movimento, "Quantum" do colectivo italiano Flatform, que joga com o dia e da noite, as luzes e os sons sobre uma maqueta de uma vila italiana com palavras apenas escritas, e "Peripheria" do francês David Coquard-Dassault (2015), explorando os grandes edifícios em espaços desertos. A propósito do Festival de curtas-metragens de Ratisbonne, na Alemanha.
                         1777-peripheria_1_light
    Quando se dedica sobretudo à imagem sem grandes preocupações narrativas, a curta-metragem pode, como nestes casos acontece, apresentar carácter experimental e desse modo ir até aos limites da sua expressividade visual e sonora.
    A questão do espaço público e da sua privatização é muito actual e está muito bem explorada em termos artísticos nestas quatro curtas, com especial relevo para a arquitectura, em espaço real nas duas primeiras, superiormente recriada nas outras duas. E a inscrição do humano ocupa particular importância nas duas primeiras e na última, com integral respeito das proporções e das distâncias aproveitando a perspectiva.
   É com programas como este, com excelente apresentação e enquadramento, que o Arte continua a ser o melhor e o mais diversificado dos canais televisivos. 

sexta-feira, 2 de junho de 2017

O último poema

   Poeta maior da língua portuguesa, Armando Silva Carvalho (1938-2017) foi autor de uma obra longa e de excepcional qualidade, em especial na poesia. Não convencional e inesperada, a sua palavra erótica, amarga, satírica atingiu centros fundamentais da experiência humana em expressão poética notável. 
   Tendo começado na poesia nos anos 60, foi um poeta de referência na literatura portuguesa contemporânea e marcou o seu espaço literário próprio ao constituir-se como fonte de inspiração para muitos outros.
                               A Sombra do Mar
    Um poema do seu último livro na despedida:
   
   "Num poema curto a corrente do sangue corria
    como um atleta levando no dorsal
    a filosofia pública da hora, 
    e a luz nua e directa incidia sobre o corpo,
    real, absoluta.

    Hoje o poema teima sempre em ser maior,
    e a história, o tempo, a memória e o verso porque é velho,
    ocultam-lhe a idade nas curvas irreconhecíveis
    dum vulto.
    É sempre cada vez mais longa a maratona,
    e as insistentes palavras
    parecem desistir enquanto avançam."

            ("Poema que foi curto", in "A sombra do mar", página 74)