quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Lendário

      Como se fora pouco ter criado um império empresarial de grande dimensão, Belmiro de Azevedo (1938-2017), um homem que criou a sua própria lenda de empresário e de senhor de uma grande fortuna, foi também o criador do jornal Público que, a breve trecho, a partir do início dos anos 90 do século passado se tornou no melhor jornal diário português, respeitado pela sua qualidade e independência.
                        http://www.iol.pt/multimedia/oratvi/multimedia/imagem/id/13585475/800
    Inteligente e culto, bem preparado, dinâmico e determinado soube pensar a sua actividade em termos de futuro, o que fez dele um visionário de olhos abertos, sem dar tréguas nem aos adversários nem à mediocridade reinante. Por isso se destacou onde outros soçobraram.
      A sua visão para a imprensa impôs-se e o jornal que fundou tem feito o seu caminho como referência central da imprensa e da comunicação social portuguesa. Ele nunca deveu nada a ninguém mas todos lhe ficamos a dever pelo menos isso. À família, à Fundação Belmiro de Azevedo e ao jornal Público expresso sentido pesar.

sábado, 25 de novembro de 2017

Confiar ou não confiar

    Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano, "O Quadrado"/"The Square" do sueco Ruben Östlund (2017) é um filme desconcertante e provocatório desde o seu início.
    Por motivos pessoais que não vão deixar de o atormentar, Christian/Claes Bang é retirado do seu conforto profissional como curador de um museu: em plena rua é despojado, sem dar por isso, da carteira, do telemóvel e dos botões de punho que lhe tinham sido deixados pelo avô.
     Tenta reagir através da localização do telemóvel, o que acaba por lhe devolver o que lhe tinha sido roubado mas lhe traz também a ameaça do caos, que se vai insinuando mesmo independentemente dele com a americana Anne/Elisabeth Moss que se intromete na sua vida e com o performer que excede o que era suposto fazer.
    Sozinho a maior parte do tempo, o protagonista tem de lidar também com as suas duas filhas pequenas - admirável o momento em que as perde no shopping e tem de pedir ajuda que só um mendigo lhe dá - e com os especialistas de comunicação e marketing do museu, que vão precipitar os acontecimentos.
                      
        Mas o desconforto de Christian e da audiência no filme contagia o espectador do filme na sequência da performance do homem-animal. Sequência central que vem questionar a existência do animal por baixo do homem dito civilizado - tinha havido antes o espectador com a síndrome de Tourette e o chimpamzé em casa de Anne, inexplicado.
         Centrado no protagonista, habilmente "O Quadrado" remete para o fora de campo, como se permanentemente deslocasse da instalação com aquele nome a atenção. Mas acaba por ser o completo domínio do tempo de cada plano e de cada sequência que impõe a mestria da realização.
      Deste modo, a inquietação provocada no espectador é insidiosa e vai atingir a partilha do medo do protagonista, que quer estabelecer um espaço de solidariedade e concórdia com a sua instalação, ao longo do filme e a partilha do medo dos espectadores na sequência do homem-animal, turvado por um irrepressível júbilo numa mistura a que chamarei "angústia".
        Inteligente e astuto, Ruben Östlund, de quem conhecíamos "Força Maior"/"Turist" (2014), é devedor de Lars von Trier e de Michael Haneke e surge como um cineasta inquieto e desassossegador que sabe lidar com tudo o que faz um filme, incluindo uma banda sonora musical rica e variada que torna assistir a "O Quadrado" uma experiência especialmente perturbadora.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Melancolia e nuvens

    "Frost"/"Serksnas" é o mais recente filme do lituano Sharunas Bartas (2017), o primeiro depois da retrospectiva e homenagem que o Centro Georges Pompidou, em Paris, lhe dedicou em 2015. De um cineasta de que temos a melhor impressão dos quatro primeiros filmes - "Três Dias"/"Trys Dienos" (1992), "Corredor"/"Koridorius" (1994), "Few of Us"/"Musum Nedaug" (1996) e "A Casa"/"Namai" (1997) - os últimos não nos têm chegado, pelo que foi no Lisbon & Sintra Film Festval que o consegui ver.
     Acompanhado pela namorada, Inga/Lyja Maknavicinte, Rokas/Mantas Janciauskas parte da Lituânia para a Ucrânia em substituição de um amigo, como voluntário em missão humanitára. Depois de uma noite num hotel em Kiev, em que discutem a guerra e se questionam sobre si próprios, sobre o amor que ele considera acompanhado pela tristeza, seguem para o seu destino.
                                  
      Nesse percurso encontram sucessivos militares e sinais de guerra - um comboio de tanques, um avião - e vai ser em conversa com os militares, enquanto se aproxima da frente de combate, que o protagonista vai ficar a saber qual a natureza da guerra antes de no final a experimentar por si próprio sem que a experiência lhe aproveite já.
   No prosseguimento de uma estética pessoal, Bartas filma sistematicamente as personagens em primeiro plano e tem uma atenção especial com os objectos e com o enquadramento da natureza, enquanto os longos diálogos alternam com longos silêncios, o que tudo estabelece a beleza e o encanto do filme, percorrido pela melancolia e com nuvens no céu.
     Noto que frost significa congelação mas também fiasco em inglês a propósito deste belo filme, uma co-produção lituana, francesa, ucraniana e polaca, assinalada pela presença dos polacos Andrzey Chyra e Weronika Rosati, da francesa Vanessa Paradis e do ucranianio Boris Abramov, que tem argumento do cineasta e de Anna Cohen-Yanay, fotografia de tons carregados de Eitvydas Doskus e em que a música surge só, de passagem, no final.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Único e famoso

    "Um Crime no Expresso do Oriente"/"Murder on the Orient Express", de Kenneth Branagh (2017), revisita o clássico de Agatha Christie, "o Shakespeare do romance policial", já levado ao cinema por Sidney Lumet (1974). A mim interessa-me especialmente por ser realizado e interpretado pelo homem que foi Kurt Wallender na série televisiva que lhe foi dedicada a partir dos romances de Henning Mankell.
    Com a realização limpa e hábil a que nos habituou, nomeadamente nas suas leituras cinematográficas de William Shakespeare, Branagh reserva para si o suculento papel do inefável, o único e famoso Hercule Poirot, no centro de um grupo muito apreciável de actores e actrizes, como já acontecia no filme anterior em que era interpretado por Albert Finney. E são os actores que voltam a fazer no cinema o livro de Agatha Christie, autora que deu ao género literário as suas "cartas de nobreza" ao tornar cada uma das suas obras um cadinho das paixões humanas.
   Revê-se e revive-se o misterioso assassinato no interior do Expresso do Oriente e, com carisma que rivaliza com o dos do filme anterior, todos os actores e actrizes impõem respeito: Michelle Pfeifer, Johnny Depp, Judi Dench, Penélope Cruz, Willem Dafoe em especial. O próprio realizador exagera um tanto os traços do protagonista, o que se compreende e não está mal visto, embora o Poirot de referência continue a ser Peter Ustinov.
                      
   Este romance de Agatha Christie em especial tornou-se agora uma "peça de programa" no cinema, com este filme em que Kenneth Branagh pratica algumas piruetas de câmara (os plongés sobre o interior do comboio) de que não se sai mal dada a dimensão e a forma do espaço envolvido, as personagens reduzidas a pouco mais do que marionetas.
   Com argumento de Michael Green, fotografia de Haris Zamlarloukos e música de Patrick Doyle, este um filme que apetece ver e de que se sai satisfeito. Com traços de grande cinema, impõe-se pela narrativa, pelas interpretações e pelo tratamento fílmico.
     De facto, como espectáculo "Um Crime no Expresso do Oriente" tem todos os elementos para se fazer notar, cotando-se acima da média das produções actuais. E a leitura cinematográfica do romance original está engenhosamente construída em termos fílmicos, fazendo sobressair o lado de construção artificial - as miniaturas, a minorização das personagens - para melhor destacar no drama factício a tragédia.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O demónio da pazmânia

 Com produção executiva de Martin Scorsese, o homem de "O Touro Enraivecido"/"Raging Bull" (1980) que é hoje considerado um dos melhores filmes da história do cinema, faz sentido "Bleed for This - A Força de um Campeão"/"Bleed for This", de Ben Younger (2016), também autor do argumento e da história em que este se baseia, co-Pippa Bianca e Angelo Pizzo. 
  O filme ocupa-se de Vinny Pazienza/Milles Teller, campeão mundial de boxe que depois de um grave acidente de viação tem de se submenter a uma intervanção cirúrgica melindrosa na cabeça.
  Contra todos os prognósticos e conselhos médicos, depois de retirados a sangue frio os quatro grossos parafusos colocados na sua cabeça, com a ajuda do seu treinador, Kevin Barney/Aaron Eckhart, ele recupera até poder, com maior peso, concorrer ao título mundial de uma categoria superior, replicando assim o que tinha feito antes. O pai e a mãe de Vinny, Angelo/Ciesáer Hinds e Louise/Katey Sagal, sofrem, ele tenta opor-se sem êxito e acaba por afastar-se.
                     
   Bem ambientado numa família italiana e católica, este filme ganha todo o seu interesse com a força de vontade e a persistência do protagonista, que se auto-denomina "o demónio da pasmânia", em fazer tudo para regressar ao combate de boxe ao mais alto nível a partir de uma situação que aparentemente de todo o inibe de o fazer. E esse percurso torna-se fundamental. 
   De realização clássica, sem rasgos mas correcto, este é mais um bom filme sobre a "nobre arte" a partir de factos reais. No final Vinny explica a uma repórter que foi simples, bastou contrariar o que lhe diziam para não fazer. E com o genérico de fim surge, como agora é hábito, a personagem real. 
  "Bleed for This - A Força de um Campeão" é um filme tipicamente americano e scorsesiano que vale a pena ver.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

A romã

    "Ana Hatherly e o Barroco. Um Jardim Feito de Tinta" é uma exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que recorda e homenageia a grande artista plástica, poetisa e ensaísta que, no seu trabalho como professora e a partir dele, redescobriu para nós no final do século XX o Barroco como época fundamental na arte e na cultura.
   Numa casa a que esteve muito ligada, a presente exposição recorda todas as actividades da artista e poetisa, mesmo como artista visual além de pintora, com peças pessoais suas - os quadros, diaporamas, filmes e manuscritos - mas também com peças que eles convocam no seu trabalho de investigação, de uma "estela do escriba de Irir" da XVIII dinastia, 1.300 anos A. C., a Josefa de Óbidos num quadro famoso, passando por uma gravura de Utamaro num dos muitos livros.
                                     
  Para que não caia no esquecimento uma grande figura das artes e das letras portuguesas, ligada ao modernismo dos anos 50 com a poesia experimental e concreta, rilkeana com certeza. 
   Muito pertinentemente dividida em cinco partes, esta exposição começa assim: "A incorporação do passado no presente é uma acção subversiva, porque um dos efeitos mais surpreendentes da acção do tempo é transformar o usual em estranho, o conhecido em desconhecido, o ordinário em exótico." 
  Nas delicadas e complexas linhas e cores saídas da mão de Ana Hatherly, nomeadamente em "A romã" de 1971/72, redescubro-me e abismo-me no infinito, na finalidade sem fim da arte de que fala Jean-Luc Nancy na esteira de Kant.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Cinema poético

   Decorre a partir de hoje até ao próximo dia 19 de Novembro na Fundação de Serralves, no Porto, a mostra "Jonas Mekas. Cinema na Linha de Fogo", programada por António Preto, que vai apresentar alguns filmes da longa filmografia do cineasta lituano.
  Tendo partido do seu país em 1944, ainda durante a II Guerra Mundial, só cinco anos depois chegou com o seu irmão Adolfas à América, onde se radicou. Aí começou como crítico de cinema, continuou como poeta e se tornou cineasta oficialmente a partir de 1961, o que o torna um homem multifacetado e de uma vasta panóplia de interesses.
                      
   Figura fundadora e cimeira da Film Culture, do New American Cinema, da Film-Makers Cooperative e dos Anthology Film Archives em New York, Jonas Mekas, que manteve contacto com os grandes artistas e figuras da cena artística e cultural norte-americana dos anos 50 e 60 do século XX, tem ocupado desde então um lugar central no cinema independente, de vanguarda e underground americano, com uma obra extensa e muito importante, em larga medida de carácter auto-biográfico e diarístico, extremamente marcante e influente.
  Para quem não conhecer os seus filmes esta é uma oportunidade rara e fantástica para ficar a conhecer pelo menos 10 dos melhores trabalhos de uma das grandes figuras do cinema contemporâneo, autor de um cinema poético, memorialista, que na expressão radicalmente pessoal encontra a sua grandeza. Um horizonte diferente e fascinante a descobrir.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Um bom início

   "Party Girl", o primeiro e até agora único filme de Samuel Theis (2014), co-realizado com Marie Amachoukeri e Claire Burger à saída da FEMIS, é um belo filme, inspirado e feliz, com argumento dos três baseado na vida da mãe do próprio jovem cineasta.
  Movendo-se entre a ficção e o documentário, com actores profissionais e não-profissionais, trata dos tempos de perplexidade de Angélique/Angélique Litzenburger, sexagenária acompanhante de cabaret na fronteira entre a França e a Alemanha e mãe de quatro filhos, que hesita perante o assédio de um cliente, Michel Henrich/Joseph Bour, que quer casar com ela.
                                 
    Com grande à-vontade e prevalência dos corpos e rostos dos actores, com fotografia de Julien Poupard o filme descreve os percursos, os dilemas e os dias de uma mulher que está habituada ao seu trabalho e ao que ele implica, recupera uma filha, reúne a família e acaba por, relutante, aceitar a proposta de casamento.
    Resolvido contra o "final feliz" convencional porque Angélique segue a sua natureza e o seu instinto, este é um filme muito bom e promissor, com planificação justa e excelentes actores, em especial os que interpretam os dois protagonistas, feito com uma grande compreensão e uma grande ternura sobre o mundo actual visto numa perspectiva pouco comum.
   Câmara de Ouro da secção Un certain regard para o primeiro filme no Festival de Cannes, passou esta semana no Arte. Aplauso.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A mobilização dos sonhos

  No âmbito das comemorações do centenário da Revolução de Outubro, o Arte apresentou esta semana uma versão inédita, encontrada em Berlim, de "O Couraçado Potemkin", "Panzerkreuzer Potemkine", datada de 1930, colorizada (a famosa bandeira vermelha) e sonorizada, com nova música e falada em alemão.
   Com duração muito inferior ao original, 48 minutos contra 75, e por isso com menos imagens, tem mesmo assim imagens não incluídas na montagem final oficial do filme que permitem melhor entender o seu sentido revolucionário no cinema. 
                       
    Mais seca, esta versão é também mais dura e mais directa, por isso mais eficiente em termos propagandísticos embora menos calibrada artística e cinematograficamente que a original. Mais realista e menos moderna, a sua autoria continua a ser atribuída a Sergei Eisenstein, cujo génio, que depois da sua passagem pelos Estados Unidos e pelo México iria cair em desgraça nos anos 30 no seu país, permanece aqui intacto.
    Neste precioso trabalho de arqueologia do cinema, de recuperação e restauro de um dos melhores filmes da história do cinema numa versão inédita, é fundamental o trabalho da investigação no cinema. Neste caso o restauro foi feito pela Fundação Friedrich Murnau sob a supervisão de Enno Patalas, que aqui felicito por mais este feito notável.

Também no documentário

   Comemora-se este ano o centésimo aniversário do nascimento de Jean Rouch, o genial criador do documentário moderno e do cinéma-vérité, assinalado em França na Cinemathèque Française e na Bibliothéque nationale. O último número dos Cahiers du Cinéma fala extensamente sobre ele pela pena de gerações diferentes.
    Os seus documentários iniciais, feitos no pós-guerra em África, não acompanhavam só o ritual que os motivava, que era precedido pela apresentação individual de cada um dos intervenientes. O seu filme mais conhecido e citado dessa época é "Les maîtres fous" (1955), embora todos tenham sido importantes. Mesmo assim discutido pelos seus pares no Museu do Homem, em Paris, com a acusação de "paternalismo", nunca se furtou ao diálogo.
    Com esses filmes inaugurais dos anos 40 e 50 Jean Rouch ajudou ao nascimento do cinema africano, mesmo se discutido pelos cineastas locais, que com ele aprenderam a fazer filmes. E também o hábito saudável de não ter medo do que filmar nem de se expor, de criar em cinema uma realidade africana original nova.
                      
       Depois de ter usado o comentário off em voice over, em 1960 com "Chronique d'un été", co-realizado com o sociólogo Edgar Morin, impôs a entrevista em directo com microfone portátil e exposição do entrevistador, no final a discussão dos participantes e a dos próprios realizadores. Tendo filmado brancos em África e negros em Paris, enveredou, depois de experiências singulares como "Gare du Nord", segmento de "Paris vu par..." (1965), pela ligação do documentário e de alguma ficção, sem abandonar os rituais e o modo de vida dos africanos.
      Precedeu a nouvelle vague francesa, que depois acompanhou. No reconhecimento de uma influência, a de "Douro, Faina Fluvial" (1931), Jean Rouch esteve em Portugal para filmar no Douro com Manoel de Oliveira "En une poignée de mains amies" (1996), um filme pouco visto e que mercia uma outra divulgação. Tornou-se ainda em vida uma referência do documentário e do modo de o cinema lidar com o real.
    Frederick Wiseman estreou-se no cinema quando Rouch já levava 20 anos de actividade e pratica desde o início um documentário de obervação pura, em que a intervenção do cineasta está por regra ausente em benefício do acompanhamente de uma actividade e dos que a desenvolvem.
    Desse modo, desde "Titicut Follies" (1967) fez a crónica detida das instituições americanas e algumas europeias, revelando ao mundo aspectos menos conhecidos, uns controversos outros não, da vida da sua sociedade de origem e de outras no seu tempo. Sem querer ter nada a ver com o cinéma-vérité, que Rouch inaugurou, praticando antes um cinema directo.
                      
        Nada interessado em palhaçadas mediáticas, Wiseman prossegue o seu trabalho há 50 anos com uma pertinácia e uma pertinência notáveis, que fazem dele uma lenda viva do cinema e do documentário. Longe de Hollywood, de que nunca precisou e com que nunca teve nada a ver, com a sua própria produtora e distribuidora, a Zipporah Films, continua a trabalhar intensamente.
        Com filmes por vezes muito longos em especial nos úitimos 25 anos, o cinema de Fred Wiseman ajuda-nos a reconhecer a realidade social norte-americana em todas as suas facetas, objectivamente já que ele se limita a filmar sem interferir no que tem diante de si e da sua câmara, num exemplar exercício de ver e captar para mostrar o que acontece. O seu segredo está na escolha do tema de cada filme, na filmagem e depois na montagem precisa, com grande sentido do ritmo, das correspondências e da simetria. Ainda não pude ver "Ex Libris: New York Public Library" (2017), o seu último e muito longo filme, que espero estreie em Portugal depois de ter passado no Doclisboa.
       Mais experimental Rouch, mais clássico Wiseman, eles replicaram à distância os fundadores do documentário no cinema, Dziga Vertov mais experimental, Robert Flaherty mais próximo de um modelo clássico. E no entanto o cinema vérité de um vem de Flaherty enquanto o cinema directo do outro vem de Vertov, num muito curioso cruzamento de referências.

sábado, 4 de novembro de 2017

Os trabalhos e os perigos

  O filme "Peregrinação" de João Botelho (2017), agora estreado, não é uma obra simples nem linear pelo que deve ser encarado em todos os seus níveis e implicações.
   Crónica de viagens ao Extremo Oriente no século XVI, o livro de Fernão Mendes Pinto é uma obra fundamental da literatura portuguesa da época e de sempre. Desse modo se compreende a abordagem textual, do livro e da língua portuguesa neste filme como um motivo fundamental e fundador. Ora esta questão implica, a meu ver, uma certa austeridade da linguagem do cinema que o filme só parcialmente pratica.
   De facto, com a preocupação de dar um estímulo aos portugueses na actualidade, o cineasta faz o espectáculo das navegações portuguesas mais do que a sua crónica vívida, utilizando para isso o canto a capella das canções de Fausto Bordalo Dias, que surgindo a propósito no espectáculo não têm directamente a ver com a crónica da época, que no filme comentam.       
   Com a voz off do narrador, que se compreende por existir tal figura no original, tudo contribui para que se esteja perante um espectáculo cinematográfico actual que até suaviza certas passagens mais cruas do original para dar a ideia de um périplo acidentado mas exótico dos aventureiros portugueses de quinhentos pelo Oriente.
                    
   Mas não se deve esquecer que este filme vem depois de outras abordagens da literatura portuguesa pelo cineasta nos seus filmes anteriores, em "O Filme do Desassossego" (2010) e "Os Maias" (2014), e tendo-o em consideração a trajectória é descendente, pois "Peregrinação" fica-se nas meias-tintas do duplo ou triplo registo, indeciso entre as palavras ditas/lidas, as imagens e as palavras cantadas, descomprometido e sem uma linha de rumo definida que não seja a do filme de aventuras em cenários exóticos.
   Eu percebo o interesse deste como dos filmes anteriores do cineasta para a "educação nacional" mas, apesar de trabalhar sobre argumento seu, o rasgo criador original está cada vez mais ao serviço de uma mensagem e de destinatários que olhem boquiabertos e agradecidos para o grande espectáculo que em filme lhes é proporcionado por um grande artista
   Onde seria de esperar exigência encontra-se condescendência pelos nossos honrados antepassados, apresentados como vítimas dos selvagens e cujas tropelias são largamente minimizadas ou ignoradas. De resto, os actores estão bem, com Cláudio da Silva de novo num duplo papel, Catarina Wallenstein, Jani Zhao e Cassiano Carneiro, a fotografia de Luís Branquinho e João Ribeiro, o guarda roupa de Silvia Garbowski e os cenários de João Mendes Ribeiro cumprem, a música, com arranjos de Daniel Bernardes e Luís Bragança Gil, embora deslocada compreende-se. 
    Apesar da assinatura inconfundível de João Botelho, este filme passa ao lado e à distância do grande filme que poderia ter sido nas mão de Paulo Rocha, que o teve como projecto que não pôde concretizar.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Relações escusas

  "Le grand jeu" é a primeira longa-metragem de Nicolas Pariser (2015), um filme ambicioso e conseguido sobre os bastidores da política francesa.
    No terraço de um casino Joseph Paskine/André Dussollier faz-se apresentar a Pierre Blum/Melvil Poupaud, escritor de um livro a quem ele propõe que escreva outro a encomenda sua. Pierre tem uma ex-mulher, galerista, Caroline/Sophie Cattani, que tem uma amiga mais nova, ecologista e proprietária de uma casa no campo, Laura/Clémence Poesy.
                              
    Com muitos diálogos e actores muito bons - excelento o duelo entre Dussollier e Poupaud -, este é um filme sobre a ideia de conspiração instalada no interior da política francesa, no caso servindo-se de um escritor que não é ingénuo para penetrar nos círculos estudantis nem sequer de extrema-esquerda mas ecologistas com objectivo definido que os excede.
     A partir de argumento seu, o realizador cria um filme expedito e directo, que não poupa ningém, nem o seu mais jovem protagonista apesar de o salvar no final, contra o que acontece ao mais velho. Este filme, que se passa em Paris como se poderia passar em qualquer outra capital europeia, tem também a qualidade de filmar muito bem, fora dos lugares comuns "a mais bela cidade do mundo", de que sai para estabelecer os contrastes e abrir os horizontes da narrativa.
     "Le grand jeu" é a estreia auspiciosa de Nicolas Pariser e passou esta semana no ArteAos escritores, cuidado com as encomendas e os velhos senhores.