segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Grande literatura

    "Viver na Noite"/"Live by Night", com argumento, realização e co-produção de Ben Affleck (2016), baseia-se no romance homónimo de Dennis Lehane, um dos mais importantes escritores actuais de romance policial negro americano, em cujos livros já se basearam Clint Eastwood para "Mystic River" (2003), Martin Scorsese para "Shutter Island" (2010) e o próprio Ben Affleck em "Vista Pela Última Vez..."/"Run, Baby, Rune" (2007). Aproveito a ocasião para escrever um pouco sobre literatura policial, o que é tanto mais oportuno quanto este filme se filia no filme negro clássico mais que no chamado neo noir.
     A literatura policial nasceu oficialmente com dois contos de Edgar Allan Poe ainda no Século XIX e prosseguiu decididamente com Arthur Conan Doyle na viragem para o Século XX no modelo dedutivo, em que se estabilizou na sua era clássica com Agatha Christie, Ellery Queen, S. S. Van Dine, Gilbert K. Chesterton, Edgar Wallace, Rex Stout, John Dickson Carr/Carter Dickson, Dorothy L. Sayers, Anthony  Berkeley, Earl Stanley Gradner. Antes deles tinha havido Maurice Leblanc com o seu gatuno elegante e depois Leslie Charteris.
                     
    Entre os anos 20 e 30 - época do aparecimento do cinema sonoro, da "lei seca" e da "grande depressão" - surgiu o romance policial negro com Dashiel Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Mickey Spillane, Hartley Howard, Ross Macdonald, ao encanto de cujos livros o cinema não resistiu - e foi com adaptações de Hammett, Chandler, Cain e Spillane que John Huston, Howard Hawks, Luchino Visconti, Tay Garnett e Billy Wilder nos anos 40, Robert Aldrich nos 50, Robert Altman e Michael Winner nos 70 e Bob Rafelson nos 80 o impuseram no cinema. Entretanto tinha surgido esse "monstro" belga chamado Georges Simenon com o seu comissário Maigret.
    Mas aqui haverá que chamar a atenção para os grandes nomes da "geração perdida" que desde cedo ou foram adaptados ao cinema ou trabalharam como argumentistas para filmes de realizadores célebres - Hemingway, Faulkner, Steinbeck, Caldwell -, como aconteceu também com Chandler para Hitchcock em "O Desconhecido do Norte-Expresso"/"Strangers on a Train" (1951), aliás uma experiência que deixou o escritor insatisfeito.
    No longo buraco negro dos anos 50 além de Patricia Highsmith - pilhada por todos, Hitchcock, René Clément, Wim Wenders, Anthony Minghella,Todd Haynes - surgiu um novo estilo de literatura policial americana baseado no modelo da esquadra de polícia citadina com Ed McBain/Evan Hunter, que o italiano Andrea Camilleri se tem encarregado de parodiar com vivacidade em tempos recentes - na televisão "Naked City". Mas também Evan Hunter foi argumentista de Hitchcock em "Os Pássaros"/"The Birds" (1963).
                    
      Com alguns devaneios de actores por Agatha Christie (Sidney Lumet, John Guillermin, Guy Hamilton, Michael Winner com Hercule Poirot além dos ingleses com Miss Marple), o cinema só voltou a interessar-se por filmes negros baseados em romances negros com Elmore Leonard (que tinha sido argumentista de westerns nos anos 50), o catalão Manuel Vázquez Montalbán, James Ellroy, Dennis Lehane, na época do regresso da moda da esquadra de polícia à televisão em "A Balada de Nova Iorque"/"NYPD Blues", quando surge também o chamado neo noir com os primeiros filmes dos Coen e de Quentin Tarantino.
       Mas nos anos 70 haverá que considerar os livros de Mario Puzo levados ao cinema por Francis Ford Coppola em "O Padrinho"/"The Godfather" com participação do escritor no argumento, mas também Richard Condon que esteve na origem de "A Honra dos Padrinhos"/"Pizzi's Honor" de John Huston (1985), o que nos leva até ao filme de gangsters que precedeu o filme negro - com origem no cinema mudo o primeiro, nos anos 40 o segundo. Tal como haverá que mencionar os romances de John Grisham adaptados ao cinema desde os anos 90.
      A mais importante evolução dá-se então com o policial sueco e escandinavo, que lança um modelo de polícia humano que, na esteira de Simenon e de Ruth Rendell, tem de conviver com a família e o meio minuciosamente descritos, em que os nomes mais destacados são Henning Mankell, adaptado para a televisão, e Stieg Larsson, levado postumamente para o cinema. Este modelo impôs-se ao anglo-saxónico, que continuou com grande número de cultores, enquanto a televisão entrava na era do CSI, de Os Sopranos/The Sopranos e The Wire. Mas há ainda o cubano Leonardo Padura e o irlandês Benjamin Black/John Banville. Sumariamente e com muitas omissões é isto.
                    
      Que Ben Affleck tenha regressado ao mesmo Dennis Lehane é sintomático da importância que este grande escritor sediado em Boston tem assumido na literatura policial americana contemporânea.
     Publicado em português pela Sextante, "Viver na Noite" devolve-nos o regresso da Guerra Mundial e o desalento que o acompanhou, deixando ex-combatentes nas mãos do apetecível mundo do crime. Há Joe Cocklin/Ben Affleck e Thomas Cocklon/Brendan Gleeson, filho e pai, este polícia, dois gangsters poderosos, um de origem irlandesa, Albert White/Robert Glenister, o outro de origem italiana, Maso Pescatoer/Remo Girone, uma mulher loira, Emma Gould/Sienna Miller, depois de cujo desaparecimento Joe vai para a Florida tomar conta do negócio de um contra o outro, onde conhece Loretta Figgis/Elle Fenning, filha de um polícia/Chris Cooper, e uma negra, Graciela/Zoe Saldana, com aparição do racismo e do KKK, mesmo com túneis subterrâneos...
      Pode, pois, dizer-se que neste filme estão presentes todos os poncifs do filme negro e mesmo do filme de gangsters, utilizados em termos originais - o racismo - mas que fazem inevitavelmente pensar em precedentes literários e cinematográficos. Com algum luxo, o próprio tom de época é conseguido com recurso ao que sobre ela disseram inúmeros livros e filmes.
                     live-by-night-ben-affleck-chris-messina
      Com um bom naipe de actores em que ele próprio é o erro de casting, Ben Affleck dá de novo boa conta de si como realizador embora em termos limitados de quem precisa de mostrar tudo para explicar tudo, afastando-se assim do grande modelo da Série B para se aproximar de Eastwood e Scorsese. Ficava-lhe melhor uma maior secura, um maior uso da elipse, um ego menor, embora o escritor tenha afirmado que gostou.
     No final, Joe assiste com o filho a um filme americano B com rangers e o filho diz que quer ser como os heróis do filme enquanto o pai afasta do pensamento a ideia de uma nova guerra ao ver a imagem do ridículo pequenote alemão nas actualidades.
     Mas no seu todo o filme nada acrescenta de verdadeiramente novo e relevante, sem sequências ou momentos especialmente notáveis em termos fílmicos nem desenvolvimentos narrativos que não sejam previsíveis, o que o torna o típico filme de género que se limita a gerir os pontos de passagem obrigatórios.
                     Review: 'Live by Night' an overstuffed yet admirable crime drama  
    Com o seu modelo de filme negro, "Viver a Noite" de Ben Affleck deve o seu melhor a um grande escritor policial americano, de que se limita a ilustrar correctamente uma obra em termos de cinema, demonstrando de novo todo o peso da literatura americana no cinema americano.
    Faz aqui falta o Dinis Machado para apreciar isto tudo, embora com o Francisco José Viegas possamos continuar a contar com a literatura policial como grande literatura, ao seu melhor nível.

domingo, 29 de janeiro de 2017

O passado não perdoa

  "Manchester by the Sea", a terceira longa-metragem de Kenneth Lonergan (2016), é um filme que não se identifica com o comum cinema americano porque trata do quotidiano sem afirmar a superioridade de ninguém, antes trabalha a tristeza, a impotência e o fracasso.
  Com argumento do próprio realizador, o filme acompanha Lee Chandler/Casey Afflec, um pobre porteiro de Boston, a grande cidade onde apesar de tudo vive uma vida de lugares-comuns, até à pequena terra do Massachussets com o nome do título onde, após a morte do seu irmão, Joe Chandler/Kyle Chandler, lhe foi por este deixado o encargo de tratar do sobrinho Patrick/Ben O'Brien.
                     manchester-by-the-sea-michelle-williams-casey-affleck
   Uma vez aceite, a viagem torna-se motivo para as recordações que àquela terra ligavam o protagonista, e aí percebemos bem quanto de amargura e sofrimento o acompanhou enquanto ali viveu: o que deixou para trás, nomeadamente em termos de tragédia e sofrimento - havia um terceiro irmão -, como não lhe restava grande alternativa senão partir dali tal como não lhe resta outra solução, pese embora o esboço de um final aberto, que recusar o encargo que lhe foi cometido no presente.
   É uma vida de impasses que se torna pesadelo que leva Lee a progressivamente tomar consciência de que também aquele novo papel que lhe é destinado não está ao seu alcance cumprir. E é a reflexão sobre a incapacidade, a falta de condições pessoais que leva o protagonista a reconhecer não reunir condições para tal. 
                    
   O filme passa muito pela interpretação de Casey Afflec, pela fotografia de Jody Lee Lipes, a música de Lesley Barber (embora um tanto excessiva), a montagem de Jennifer Lame, actores sempre certos e bem dirigidos e sobretudo a realização equilibrada e justa que compõe planos e sequências separados bem definidos. De tal forma que há neste "Manchester by the Sea", nos seus cerrados flash-backs estruturais que tecem um passado que explica o presente alguma coisa que nos repele no seu percurso doloroso, desesperado.
   Estamos habituados pela produção hollywoodiana a ser confrontados com heróis positivos, másculos e dinâmicos, que se afirmam virilmente nas situações mais complicadas de que saem vitoriosos. Ora este filme, virilidade incluída dá-nos uma vida de doloroso fracasso existencial a que já não estamos habituados no cinema. Aí o filme de Kenneth Lonergan faz mancha, estabelece o contraste e afirma o seu espaço próprio ao fazer lembrar "Magnolia", de Paul Thomas Anderson (1999) sem o mosaico de personagens e narrativo.
    Ao escavar sempre no mesmo sentido realizador e actor oferecem-nos um filme que por uma vez vale por aquilo que é e não pelo que quer parecer. A felicidade só existe mesmo no cinema. "Manchester by the Sea" é um filme triste em que Lee Chandler me faz lembrar os iludidos e fracassados do filme negro, o género típico em que eles existiram - como John Cassavetes em "Contrato para Matar"/"The Killers", de Don Siegel (1964), a partir de conto de Ernest Hemingway que já motivara "Assassinos"/"The Killers", de Robert Siokmak (1946): para ele, para eles, embora esperem sozinhos no mesmo sítio o passado não perdoa.  

sábado, 28 de janeiro de 2017

A Série B

    Foi uma expressão cinematográfica tida no seu tempo como menor, em que trabalharam grandes artífices do cinema e foram feitos grandes filmes que de menores nada tinham.
    Iniciada com a criação da B companies como a Republic e a Monogram, começou por produzir filmes que passavam como segundos em sessões de que os primeiros eram da Série A, filmes de bom orçamento e com stars produzidos pelas majors e minors criadas em modelo definitivo no final dos anos 20 do Século XX, o que significa no final do cinema mudo - não vou contar aqui a história toda das B companies porque é longa e complicada.
    Ao especializarem-se em géneros populares, as companhias B apostavam no baixo orçamento, na utilização do mesmo espaço cenográfico para diferentes filmes, na manutenção da mesma equipa técnica e artística para vários filmes, o que significa que tinham uma ambição artística menor, compatível com o seu comparativamente menor poder económico.
   Aí se estrearam no cinema actores, técnicos e realizadores que ou nunca ascenderam às produções A ou então o fizeram depois de aí terem adquirido capacidades e experiência. O que aqui me vai interessar é o caso daqueles que ficaram por mais tempo, quando não sempre na Série B e dela fizeram um modelo maior do cinema americano, marcado pela escassez de meios e pelo génio dos que nela trabalharam.
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     Visto da perspectiva dos realizadores, houve grandes mestres da Série B entre os anos 30 e 60 do Século XX, aos quais se ficaram a dever grandes filmes de género e estilos pessoais de trabalho. Dou alguns exemplos. Allan Dwan, Edgar G. Ulmer, Andre De Toth, Rudolph Maté (antes conhecido director de fotografia) e Gerd Oswald em diferentes géneros, Jacques Tourneur a partir do filme de terror, Donald Siegel, Samuel Fuller, Joseph H. Lewis, Robert Siodmak e Anthony Mann (este nos anos 40) a partir do filme negro, Kurt Neumann, Christian Nyby, George Pal, Byron Haskin, Jack Arnold na ficção científica, Budd Boetticher a partir do western. Mas a Republic produziu também três filmes de John Ford.
    Claro que houve muitos outros mas estes contam-se entre aqueles cujos nomes ficaram e permanecem a assinalar estilos pessoais numa época e num modelo que a eles não eram propícios. Mas com a ideia de que a Série B americana é um vasto campo de cineastas e filmes que permanece por explorar pelos próprios historiadores americanos do cinema: Phil Karlson, Gordon Douglas, Ted Post, Richard Fleischer já no pós-guerra.
     Tratando-se de filmes de baixo orçamento, as futuras vedetas por lá passavam no início ou a ela regressavam por força de contratos, embora tivessem existido técnicos e actores que nela, como os produtores e realizadores, permaneceram toda a vida. E nos anos 30 e 40, a sua época áurea, o preto e branco era de rigor e ficava especialmente bem no filme negro ao ponto de, influência expressionista incluída, dele se ter tornado indissociável. Isto embora deva deixar claro que muitos filmes da Série B eram desde o início realmente muito maus, ao ponto de um cineasta como Gordon Douglas, que trabalhava no cinema desde os anos 30, só se ter nela destacado a partir dos anos 50 - na década de 60 chegou a realizar três filmes policiais com Frank Sinatra.
    O sentido desta minha recordação, que é também uma homenagem, é despertar a vossa atenção para os primeiros e primariamente esquecidos de Hollywood que, contudo, contribuíram decisivamente para a afirmação total desta em todos os domínios da produção cinematográfica numa época em que a produção média foi decisiva. Em filmes aparentemente feitos para os menos instruídos foram possíveis coisas a nível narrativo e de realização que não eram tratadas da mesma maneira nos "responsáveis" filmes de maior orçamento.
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    Num tempo em que Hollywood declinava já, no final dos anos 50 do Século XX, pude começar a acompanhá-los numa altura em que estes filmes passavam geralmente em "salas populares" ou "cinemas de bairro", de frequência menos burguesa e de lugares mais incómodos. E aí pude começar a ter o quadro deste "continente desconhecido" extremamente valioso do cinema desse tempo.  
    O princípio era simples: despachar uma história e um filme no menor tempo possível com a maior economia de meios. Compreende-se que com estas condições o trabalho fosse mais rude e menos acabado mas era também mais límpido, directo e despojado do que não fosse indispensável. Não havia tempo a perder, não havia dinheiro para gastar, e isso era favorável à adopção de estilos elípticos e a abreviações concentradas.
    Quando estavam em moda as superproduções com que as majors tentavam contrariar a crise suscitada pelo aparecimentos da televisão, eu quase não dava por essa crise ao continuar a ver os filmes da Série B. E nunca foram feitos filmes de terror como os de Jacques Tourneur, que também praticou com brio o western, nem filmes negros como os de Siegel, Fuller, Joseph H. Lewis (salvo "They Live By Night", de Nicholas Ray), nem westerns como os de Budd Boetticher, o primeiro dos quais mereceu um estudo de referência de André Bazin.
   Além do mais, eram filmes mais curtos, que só raramente chegavam a hora e meia, o que os tornavam pedaços de cinema muito apetecíveis. E devo notar que as séries televisivas da mesma época deviam muito à influência do cinema, nomeadamente da Série B, por exemplo "Naked City" que passou em Portugal, e ainda não era utilizado o vídeo na sua produção.
                                             
     Nos anos 50 tinha surgido a American International Pictures de Roger Corman e com ela, em filmes realizados por outros ou por ele próprio em regra já a cores a Série B teve seu último fôlego tanto mais relevante quanto em filmes seus se iniciou gente tão importante no futuro como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese. A obra-prima de Corman como realizador terá sido, além das adaptações de contos de Edgar Allan Poe e mais do que elas, "Massacre em Chicago"/"The St. Valentine's Day Massacre" (1967).
    É muito por causa da enorme qualidade cinematográfica da Série B e da curta duração da maioria dos seus filmes que eu me torço todo quando me aparecem filmes dos actuais grandes nomes de Hollywood com cerca de três horas, quando se percebe que tudo aquilo poderia ser feito com muito maior economia de meios. E fico com a ideia de que são os próprios americanos que não querem lembrar a sua Série B.
    Contaminados por ela, surgiram nos anos 50 filmes históricos, ditos "peplum" na linha do cinema mudo, e filmes de terror, ditos "giallo" italianos, e foi a partir desse modelo que veio a ser elaborado a partir da década seguinte o "spaghetti western" que Sergio Leone fez dilatar.
    Depois disso, foi sobretudo no filme de terror que a Série B ou o seu espírito se manteve, em cineastas como George A. Romero, John Carpenter, Joe Dante e Wes Craven. Um ou outro caso fora desse género não bastam para a impôr em termos contemporâneos, em que um ou outro cineasta nela, Série B, se moveu. Salvo o caso do cinema novo de Hong-Kong que, entre o policial e o filme de gangsters se moveu em termos de Série B e tem a sua principal figura actual em Johnnie To. E recordo que os filmes de artes marciais participavam ainda antes disso do mesmo modelo.
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    Os meus leitores que são cultos e modernos dir-me-ão que os tempos de hoje, com revolução digital e tudo, são melhores que os da velha Série B, mas lembrem-se que só poderão dizê-lo com conhecimento de causa se conhecerem esses pequenos filmes sem importância, que eu gostaria de pessoalmente apresentar a quem estivesse interessado, o que até agora nunca pude fazer. 
    Sobre o assunto não foi publicado nada desde "Photogénie de la série B", de Charles Tesson (Paris: Cahiers du Cinéma, 1997), sobretudo valioso pela iconografia que inclui. E recordo aqui o Manuel Cintra Ferreira (1942-2010), crítico de cinema sagaz e grande conhecedor do cinema americano e da Série B que durante anos programou sistematicamente na Cinemateca Portuguesa - lembro-me da última vez que o vi à saída da Cinemateca, com os livros debaixo do braço e a pôr o seu boné na cabeça, e espero que lhe seja prestada a homenagem que merece com a publicação dos seus textos sapientes escritos para aquela casa.    

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Breve história do cinema

   Quando era muito novo comecei a escrever uma "história do cinema" com base naquilo que dele conhecia, que era muito pouco. Não passei da fase de tentar escrever porque me deparei logo no cinema mudo com obstáculos intransponíveis: como falar de e avaliar em termos relativos Griffith e Stroheim, Chaplin e Keaton, Eisenstein e Dreyer, Lang e Hitchcock, Murnau e Jean Renoir.
   É lembrando-me dessa tentativa inevitavelmente fracassada que vou criar aqui uma secção com este título em que tentarei tratar dos assuntos que me interessam hoje na história do cinema mas também enfrentarei deliberadamente as minhas antigas perplexidades. Não vai ser uma história do cinema formal e por extenso, pois não descerei ao pormenor embora exemplifique sempre, nem seguirei uma ordem cronológica mas a que resultar das questões que me forem surgindo.
  Não se tratará de dar lições a ninguém e muito menos se pretenderá um manual. Serão apontamentos pessoais, como notas e reflexões breves ao correr da pena, e estarei sempre disponível para escrever sobre os assuntos que me forem propostos pelos meus leitores. Além da utilidade pessoal espero poder dar a minha resposta a algumas questões não dilucidadas da história desta tecnologia, arte e espectáculo, nascida no final do Século XIX, o que poderá ser de interesse alargado.
   A secção não terá uma periodicidade regular nem um número certo de entradas por mês. E não me espantará que, com aquilo que hoje sei e aquilo que continuo a desconhecer venha a enveredar por caminhos inesperados que a mim próprio me surpreendam. Cruzarei sempre com as outras artes e formas de expressão, com a história social, económica e política, com a história da arte e da cultura e com a filosofia. Se não existir de outro modo, e espero que exista, a poética estará pelo menos nas relações estabelecidas.
   Não identificadas como tal no título, as entradas desta secção serão facilmente reconhecíveis. Espero que gostem.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Discutir hoje

   O documentário "Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt"/"Vita Activa: The Spirit of Hannah Arendt", de Ada Ushpiz (2015), tem o mérito especial de trazer para a actualidade o pensamento da grande escritora judaica e de contar a sua vida sem fazer o seu panegírico antes expondo-os, pensamento e história, ao debate e à crítica.
   O pensamento de Arendt sobre o totalitarismo e sobre o mal mantém neste momento toda a sua força persuasiva, num momento em que ideias de extrema direita abrem de novo caminho um pouco por todo o mundo. Trazer-nos imagens da vida dela, de si própria e dos grandes acontecimentos, das grandes convulsões mundiais de que foi contemporânea e sobre as quais escreveu, a gravação de entrevistas dela, a leitura de excertos da sua correspondência com Martin Heidegger e Karl Jaspers e de livros seus e a discussão actual do seu pensamento é mais do que muito, é muito bom e está muito bem feito em pouco mais de duas horas.
   Só com imagens de arquivo, com gravações fílmicas de propaganda sobre o gueto de Varsóvia, com a questão dos conselhos judaicos, imagens da Alemanha e da ascensão do nazismo, depois dos campos de concentração e da libertação, mais tarde do julgamento de Eichman, é todo um programa político e também filosófico que o filme de Ada Ushpiz cumpre, expondo Arendt mas também Heidegger à discussão.
   A discussão sobre o grande filósofo de "Ser e Tempo" está bem resolvida com a defesa do carácter politicamente motivado pelo apoio e suporte do nazismo naquilo que ele escreveu. A história da vida de Arendt está bem contada com apoio em documentos, embora muito centrada no julgamento de Eichmann que deu origem aos seus escritos mais polémicos, que ela em entrevista explica, com gravações desse julgamento em Israel mas também dos de Nuremberga.
                                    
     As noções por ela avançadas e discutidas de vítima e de culpado, as suas propostas alternativas para o comportamento dos alemães durante o nazismo, quando esteve ela própria presa, a sua crítica das ideologias, a necessidade de saber sempre tudo o que acontece à nossa volta, o conceito de "banalidade do mal" no exacto sentido, explicado por ela, em que o utilizou em relação a Eichman - cuidado com os ignorantes e os estúpidos - continuam a interessar-nos.
      Eu sei que não vos agradará sair do conforto da vossa vida conformista para verem este filme nem para lerem Arendt, mas mesmo assim aconselho as duas coisas, e que leiam também Heidegger e Jaspers. Aquilo a que assistimos hoje, da crise dos refugiados à ascenção de ideias que, sob outras formas e nomes exalam o cheiro pestilento do passado, repete exactamente o que sucedeu na Europa no imediato pós-Guerra Mundial de 1914-1918.
    De facto, o que agora vemos não é só o predomínio de um populismo inócuo, pois historicamente o que começou como tal evoluiu para aquilo que continha já em germe, que envolvia racismo, discriminação por uma raça dita superior de uma nação dita superior, e volta a ser extremamente perigoso e ameaçador. Temos a resposta na história que este filme exemplarmente nos conta ao discutir Hannah Arendt.
     Sobre Heidegger aconselho em português "Arte e Técnica em Heidegger", de Irene Borges-Duarte (Lisboa: Documenta, 2014), um trabalho brilhante de uma académica prestigiada. Para seguirem o debate americano vejam aqui
www.nytimes.com/
      Talvez que a repetição, a "segunda vez" não seja tão risível como não se têm cansado de nos dizer. Acordem enquanto é tempo para depois não virem dizer que afinal não era aquilo que queriam. Enquanto Jean Gabin continua a suplicar a Michèle Morgan "Embrasse-moi... Embrasse-moi vite vite" no final de "Cais das Brumas"/"Quai des brumes" de Marcel Carné (1938).