segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Um ano difícil

     2018 foi assinalado em Lisboa pela reabertura da livraria "Poesia Incompleta", agora com uma localização a que nada me liga, o que, porém, não compensou o encerramento da livraria "Pó dos Livros", mais generalista, que aqui volto lamentar.
    O melhor livro do ano em Portugal foi "Caos e Ritmo", de José Gil (Lisboa: Relógio D'Água), filósofo que recebeu em 2013 o Prémio Jacinto do Prado Coelho por "Cansaço, tédio, desassossego" (Lisboa: Relógio D'Água), embora deva aqui assinalar também a edição portuguesa de "O Livro Por Vir", de Maurice Blanchot (Lisboa: Relógio d'Água, 59 anos depois da edição original francesa) e de "Tens de Mudar de Vida", de Peter Sloterdijk (Lisboa: Relógio D'Água, 9 anos depois da edição original alemã).
                                          
      Isto tem como pano de fundo a edição pela Fundação Calouste Gulbenkian do segundo volume dos "Textos Filosóficos" de Marco Túlio Cícero, "Diálogos em Túsculo", no mesmo ano em que saiu a 2ª edição do primeiro volume desses escritos - com tradução do latim, introdução e notas de J. A. Segurado e Campos. Um filósofo da Roma Antiga muito influente, que pela sua sapiência me permito aconselhar a quem o não conhecer.
     Como aqui foi assinalado no início de Dezembro, este blog passou a dedicar especial atenção à filosofia, deixando ao cinema um lugar secundário, a tratar uma vez por outra. Pelas razões aí indicadas ("Morre-se muito", de 3 de Dezembro de 2018).
    De resto, apesar de o actual número de leitores ser satisfatório posso anunciar desde já algumas novidades e uma ou outra surpresa para o próximo ano.
    Embora o anteveja um ano ainda mais difícil, desejo a todos um Feliz e Próspero Ano Novo de 2109.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Favorito

     Amos Oz (1934-2018) foi um grande escritor israelita, com David Grossman o maior do seu tempo, com livros de uma intransigente verdade e fidelidade a si mesmo e de uma escrita superior.                      
      Senhor de uma sensibilidade apurada e de grande sabedoria, soube usá-las nomeadamente na escrita e na recuperação da sua memória em "Uma História de Amor e Trevas", um dos seus melhores livros entre muitos outros que lhe valeram prémios de vulto, de que destaco os ensaios "Contra o fanatismo" e  "Caros fanáticos".  
                                      9789724150017
    Homem de coragem e convicções fortes, foi um grande intelectual favorável à paz entre israelistas e palestinianos. Aqui me curvo perante a sua memória, eu que o contava entre os meus escritores contemporâneos favoritos e estava por isso sempre à espera do seu livro seguinte.

Negro inútil

     "Dogman" do italiano Matteo Garrone (2018) é, na linha do seu famoso "Gomorra" (2011), um filme sobre o meio criminal, no caso um pequeno meio criminal em que Marcello/Marcello Fonte participa como vendedor de droga.
     Porém, cidadão respeitável ele tem o seu estabelecimento de canídeos, partilha a guarda da filha e é bem acolhido na sociedade da pequena cidade, que a certa altura se coloca a questão de eliminar Simoncino/Edoardo Pesce, o brutamontes que ele abastece, dele se aproveita e o trata mal.
     Preso em vez do outro por um assalto em que apenas consentiu, quando libertado um ano depois sem ter falado e muito batido de novo após um novo assalto ele resolve eliminá-lo "para recuperar o respeito", fazendo o que os outros não tinham levado até ao fim.
                                                        
     O filme é deprimente mas muito bom sobre duas ou três questões candentes em qualquer meio - a violência, a lealdade, o respeito - e o final sobre o vazio do campo de jogos vem, como o de "História de um Fotógrafo"/"Blow Up" de Michelangelo Antonioni (1966), apontar para o vazio de tudo naquela luta solitária de um homem insignificante mas que gosta de cães.
     Muito bem resolvido o grande-plano final dele, inexpressivo, desalentado pela inutilidade de tudo. Aliás, a figura de Marcello está muito bem trabalhada pelo actor, que não conhecia.
    Com o realizador como co-produtor e co-argumentista, tem fotografia de Nicolai Brüel, música de Michele Braga e montagem de Marco Spoletini .A interpretação, notável, de Marcello Fonte valeu-lhe o prémio para a melhor interpretação masculina no Festival de Cannes deste ano.

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Pensar além

    Filósofo, semiótico, medievalista, ensaísta e escritor, Umberto Eco (1932-2016) foi uma das maiores figuras do pensamento contemporâneo, na descendência do humanismo renascentista praticando várias áreas do saber e da criação sempre com grande distinção. Escrevendo cinco séculos depois de Leonardo teve muito mais, toda a modernidade nas suas diferentes fases a considerar.
     Para alguns será reconhecido pelo seu primeiro romance histórico, "O Nome da Rosa", que deu origem ao filme de Jean-Jacques Annaud (1986), enquanto outros o conhecerão melhor pelo seminal "Obra Aberta", por "Apocalípticos e Integrados", "Os Limites da Interpretação" ou "Kant e o Ornitorrinco", pelas suas histórias da beleza e do feio ou pelo seu "Tratado Geral de Semiótica" ou por "Semiótica e Filosofia da Linguagem", outros por fim pelos quatro volumes de "Idade Média", que organizou e consumou a reabilitação dessa época da fama de obscurantismo que a acompanhou durante muito tempo.
    Tratou as grandes questões do nosso tempo e do nosso passado histórico em livros de grande erudição e saber, com apurada percepção na identificação das questões e inúmeros argumentos retirados da história do pensamento, da filosofia, das artes e da literatura, depois elaborados por si. Senhor de um grande saber linguístico, pôde trabalhar seriamente e reflectir produtivamente onde muitos se perderam e perdem em escritos circulares mal informados.
                                      Aos Ombros de Gigantes
     Detentor de uma vasta panóplia de conhecimentos que começaram a mostrar-se logo na sua tese de doutoramento "O Problema Estético em Tomás de Aquino" (inédita em português), nunca se deu por satisfeito e foi sempre avançando para chegar mais longe nas suas diversas áreas científicas em obras de grande alcance teórico e literário, mais longas ou mais curtas. Na ficção histórica escreveu grandes frescos atravessados pela semiótica, fruto de laboriosa investigação e com recurso à memória quando foi esse o caso.
    Na semiótica resgatou do esquecimento o americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), criador da semiótica moderna, de raiz lógica, que entretanto caíra no esquecimento mesmo no seu próprio país, onde chegara a ser deturpado no que dizia nos seus escritos. (Nele se baseou Arthur Conan Doyle para o seu Sherlock Holmes.) E nos seus estudos semióticos não se escusou a uma polémica sobre o cinema com Pier Paolo Pasolini nem a estudar as imagens publicitárias mais comuns, dedicando-lhes a mesma atenção que às imagens artísticas.   
     Assim surpreendeu no seu tempo e desbravou caminhos para os mais novos e para o futuro que fizeram a sua fama internacional e a sua lenda, mas sobretudo obrigam quem quiser trabalhar nas ciências sociais e humanas a conhecê-lo extensivamente.
    Não obstante, é aos mais novos e ao futuro que ele se refere na sua primeira conferência do festival anual "La Milanesiana", em que participou entre 2001 e 2015, agora recolhidas em livro editado pela Gradiva com o título "Aos Ombros de Gigantes" (Lisboa. 2018). O título, que já tinha já sido utilizado por Stephen Hawking para tratar dos grandes nomes do passado na sua área científica, é agora convocado a propósito dos gigantes por vir, o que é muito bem observado.
                            https://theskyaboveraven.files.wordpress.com/2014/06/umbertoeco1.jpg?w=263&h=300
     Este livro constitui como que o testamento intelectual de Eco, que em textos mais breves, aqui reunidos como capítulos, refaz os caminhos percorridos em maior profundidade noutros locais, mas acrescentando sempre algo de novo e original que acaba por os justificar nesta nova forma.
    Desfazendo confusões e mal-entendidos, ele aqui reconduz à sua verdadeira origem e ao seu verdadeiro significado as questões que trata, da beleza e do feio, do absoluto e do relativo (contrapondo Ratzinger e Wojtila), dos paradoxos e dos aforismos (desmontando Oscar Wilde), do falso, mentira e falsificação, das formas de imperfeição na arte, das revelações sobre o segredo, das representações do sagrado entre outras, em termos em que é inteiramente reconhecível a sua inconfundível marca pessoal.
    Ele próprio um gigante renascentista, investigador e professor incansável e escritor prolífero, deixou-nos o exemplo da sua figura de intelectual moderno, aberto ao mundo, independente e livre, cuja obra não pode ser ignorada nos diversos patamares de conhecimento que instaurou. É preciso continuarmos a aprender com o saber dele lendo-o e relendo-o.

domingo, 23 de dezembro de 2018

Pensar com ele

     No quinto centenário da morte de Leonardo Da Vinci, que passa em 2019, foi publicada em português a edição em língua inglesa dos seus "Pensamentos - Sobre a vida, a arte e a ciência" (Alma dos Livros, 2018), que dá parcialmente a dimensão literária do seu génio.
    Contra a velocidade dos actuais tempos apressados, ele aí propões reflexões, máximas e provérbios sobre a vida que são sapientes e judiciosas em termos filosóficos apoiados, replicando a filosofia antiga, com a qual dialoga na idade moderna. Aí insiste em que o fundamento são a natureza e os cinco sentidos e que a grande mestra é a experiência, ao que retorna depois.
     Muito curiosa a sua apreciação da diferenças entre as diversas artes ditas liberais, com um destaque para a pintura que antecipa a afirmação de que "uma imagem vale mais que mil palavras".                               
                                       .Possible_Self-Portrait_of_Leonardo_da_Vinci
    Mas aqui a sua preferência pela visão pode ser produtivamente comparada com as "Notas sobre o Cinematógrafo", de Robert Bresson (Elementos Sudoeste/Porto Editora, 2000 para a edição portuguesa) para dar a medida da passagem do tempo e do desenvolvimento e modificação das artes.
   Ele que tudo experimentou transmite em máximas a sua vida científica de uma maneira que permite compreender a totalidade do seu génio em todas as áreas, com um pensamento moderno que perdura e inclui a matemática.
    Um dos maiores génios da humanidade, merece ser conhecido, compreendido e apreciado cinco séculos depois no contacto com as suas obras e o seu pensamento, para que em tempos ligeiros e levianos se possa compreender que as coisas não são tão simples e fáceis, antes muito mais vastas e complexas do que nos querem hoje em dia fazer crer.
                             Pensamentos                              .
      "Evita os preceitos daqueles pensadores cujo raciocínio não é confirmado pela  experiência."
      (O julgamento é propenso ao erro, pág. 24)
    "A pintura inclui no seu espetro a superfície, a cor e a forma de qualquer coisa criada pela natureza; a filosofia penetra os mesmos corpos e toma nota da sua virtude essencial, mas não se satisfaz com essa verdade, como o pintor, que apreende a verdade primária de tais corpos porque o olho é menos propenso ao engano."
     (Superioridade da pintura à filosofia, pág. 77)
     "Silogismo: falar duvidosamente.
     Sofismo: falar confusamente; falsidade pela verdade.
     Teoria: conhecimento sem prática."
     (Do dicionário de Leonardo, pág. 141)
    Dele estão disponíveis em português diversas biografias sobre uma vida que vale muito a pena conhecer. Com ele o humanismo renascentista tomou consciência de si próprio em termos com os quais continuamos a aprender. De um génio total há que conhecer bem tudo, ou o mais possível, e esperar pelo que dele está ainda por descobrir.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

O jogo e a regra

    O mais recente filme do mexicano Alfonso Cuarón, "Roma" (2018), Leão de Ouro do Festival de Veneza deste ano, é um filme bem  feito, simpático e bem intencionado, com todos os lugares-comuns do tempo e do local passado em 1970 no México.
    À semelhança de "Shoplifters - Uma família de pequenos ladrões"/"Manbiki kazoku", de Hirokazu Koreeda (ver "Pequenos ladrões", de 30 de Novembro de 2018), tem o interesse de ter o cineasta como realizador, co-produtor, argumentista, director de fotografia e co-responsável da montagem, o que faz dele mais um "filme de autor".
   Simplesmente a história da família rica em crise e da pobre empregada, ainda para mais indígena, encarregada de tratar das crianças, Cleo/Yalitza Aparicio, é uma rotina do melodrama no cinema, com referência explícita a "A Regra do Jogo"/"La règle du jeu", de Jean Renoir (1939) de que, para não enganar ninguém, além da grande mnsão replica uma cena, a da caça. E já não é nada mau...
                      
      De resto a empregada, que é boa rapariga, engravida de um namorado praticante de artes marciais e que se revela algo mais que isso, enquanto a patroa, Srª. Sofia/Marina de Tavira, é deixada pelo marido, com outra em Acapulco ou noutro lugar qualquer. E também por aí passa o carácter político do filme, não apenas centrado no confronto entre os senhores e os servos, os de cima e os de baixo. (E lembro que o lugar-comum pode ser um terreno de eleição para o "cinema político".)
      Destaco a cena do parto do nado-morto que Cleo não queria trazer ao mundo, filmado num plano único, que é replicada pelo salvamento final por ela dos filhos da patroa. Depois é a ascensão da serva pelas escadas acima. 
       No plano formal são de assinalar as panorâmicas e os travellings laterais, entre outras marcas de autor, tal como a atenção aos aviões que passam no céu ao fundo de alguns planos, mesmo sobre o genérico de fim..
      Tem boas interpretações, o que é comum, boa fotografia a preto e branco e piscadelas de olho para o ecrã de cinema e para a televisão. Feito para a Netflix, passou no circuito comercial por causa das regras dos Oscars, que espero lhe façam justiça e bom proveito. E acrescenta uma obra em que se contam nomeadamente "E a Tua Mãe Também"/"Y tu mamá también" (2001) e "Gravidade"/"Gravity" (2013).
      Noto que "Roma" é considerado por muitos o melhor filme do ano, o que nem sequer discuto... 

sábado, 15 de dezembro de 2018

Poesia e prosa

    O mais destacado poeta português da actualidade, Fernado Echevarría tem uma vasta obra até "Via Analítica" (Porto: Afrontamento, 2018), que inclui os dois volumes de "Obra Inacabada", com Prefácio de Maria João Reynaud (Porto: Afrontamento, 2016). Com livros de grande qualidade e profundidade, a sua poesia encontra a filosofia de uma forma imediata e meditada.
   Sempre voltado para o novo mesmo se a partir de perspectivas antigas, o seu verbo poético avança em ondas sucessivas e tudo de humano, animal, mineral e vegetal de forma elementar investe para nos ser entregue numa escrita decantada que nos devolve cada parte, cada partícula e o todo de tudo.
                                        "O HORIZONTE LEVA O MAR CONSIGO.
                                         Mas para onde é que o leva? 
                                         Sente-se só seu ímpeto subindo
                                         por uma imprevisível atmosfera
                                         a abrir-se para cálculos e signos.
                                         Ou língua a anunciar aquela terra
                                         de novidade em que ouvirmos
                                         é mar remoto, com o horizonte em festa.
                                         Terra e festa adunados no escrito
                                          pensando em pausa. Esta fecunda espera
                                          que, enquanto cresce, vai alargando o espírito
                                          e a enfunação pacífica das velas.
                                          Punge-se tudo agora no ouvido.
                                          Na pauta analítica em que a terra
                                          entra em fulgor. Se vai nele abstraindo
                                          de mar ao longe e longa inteligência."
                               ("Via Analítica", pág. 282)
     Na sua poesia a língua portuguesa enrola-se e desenrola-se numa estimulante reflexão em que os elementos encontram o elementar para exponenciar o verbo em vagas sucessivas, que em consonante harmonia desenredam um sentido que ressalta inteiro das próprias palavras que o criam.
     Também com formação filosófica, Rui Nunes é um escritor de prosa poética cerrada, que inventa o mundo e os seres, os ambientes e os objectos de forma minuciosa, sem enfeites nem alardes nem palavras inúteis, reduzidas ao essencial. O seu último livro, "Suíte e Fúria" (Lisboa: Relógio D'Água, 2018), confirma-o como o melhor escritor português da actualidade.
                              Bertrand.pt - Via Analítica
      Na sua escrita rica e sugestiva ele examina em pormenor o homem do nosso tempo nos seus trabalhos e meios, olhares, ouvidos e sentimentos, perplexo e acabrunhado num horizonte alargado que se concentra em espaços e tempos precisos, se bem que alusivos. Deste modo, a construção de cada livro é em grande parte deixada ao leitor atento, que por vislumbres intermitentes dele se aproxima.
      "Foram somente três passos, mas o dia explodiu.
      Até que ponto um crisântemo? Essa flor. Repleta da paciência e da minúcia de um
      aguarelista, de um desenhador?
      Finda a obra, está a morte: a mão afasta-se, imobiliza-se a quinze centímetros do
      papel, e a morte surge, plena, no crisântemo acabado:
      Os suicidas precipitam-se para os museus."
                           ("Suíte e Fúria", pág. 51)
     "A intensidade do que vejo aproxima-me da morte. Ver: é total. Com os braços, as mãos, a pele, o nariz, o cabelo: todo o meu corpo vê. Mesmo com os olhos fechados. Mesmo que não queira. E rodeia-me do irremediável do que vê."
                           ("Suíte e Fúria", pág. 63)
      Numa construção diacrónica, o emissor da palavra remete para o passado, para a memória em que em última análise reside a raiz de tudo, infância de agora velhos ensombrecidos pela idade, pelo tempo, até aos ossos do pensamento. Dispensando o inútil e o indesejado, retém o indispensável em côrregos do dizer.
      Cada um deles constrói um pensamento próprio, em qualquer dos casos de carácter filosófico, sobre aquilo que escreve e descreve, ilumina mesmo na noite ou na sombra os parcelares aspectos da vida que pouco a pouco vai criando e trazendo à luz. E esse percurso da sombra para a luz é comum aos dois.
     Agora Fernando Echevarría caminha de ponto em ponto, passo a passo por um caminho espinhoso mas de que se desprende uma grande, secreta beleza, enquanto em Rui Nunes é sempre tudo escuro e sem salvação e nem mesmo a sua escrita procura encantar mas aprofundar e desafiar para caminhos incomuns. E em qualquer deles o sentir não impede, antes impele o pensar.
     Na sua longa caminhada pela poesia portuguesa, Fernando Echevarría vai elaborando uma filosofia pessoal que assim transmite, com visíveis influências, aos que ao lerem-no a descobrem. Não expansivo, o poeta oculta-se nas dobras das suas obras que desocultam o mundo em que vive e vivemos para tentar aceder uma essência elementar
                                      Suíte e Fúria
       Já Rui Nunes procura através da luz o que se esconde na sombra e aí permanece depois de ter chegado aos sentidos do leitor, sem salvação ou remissão mas com momentos de remissão para a toalidade, como rasto do vivo e do vivido. A filosofia que constrói conduz ao conhecimento, ao sofrimento, à indignação na sua complexidade elementar preservada e sem receio de dizer duas vezes, como vozes diversas.
      A grandeza de um e do outro reside em fazer-nos deter nas palavras de um discurso contínuo mas não corrente, em que cada palavra conta para uma decifração nem sempre fácil de que estabalece linhas, traços e pontos, embora favoreça a clareza. Sem linearidade mas vindo de dentro, o discurso e cada palavra precisa, aquela e não outra não por acaso, em vocabulários ricos e variados.
      Depois de ter conhecido escritores de grande pendor filosofante, o que nem sempre o leitor aceita com facilidade - como Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís, José Saramago e Maria Gabriela Llansol - a literatura portuguesa, poesia e prosa, encontra nestes dois escritores vivos a inspiração e o saber, da escrita e do pensamento, que aliados num só escritor aumentam a sua dimensão literária.
      E as palavras de um não afastam as do outro nem com a dele se confundem, em rotas pessoais que, com poucos pontos comuns, talvez só no infinito se encontrem para nossa perplexidade e nosso alívio. Por mim, que sou contra a uniformidade de pensamento, clássicos e modernos os leio e amo aos dois e aos dois aqui aconselho.
       

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Imagens e palavras

       Estas são as últimas palavras escritas em "O Livro de Imagem"/"Le livre d'image", o aguardado último filme de Jean-Luc Godard (2018) em que domina a recapitulação de uma história, a do cinema, o que o torna uma espécie de apostilha a "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du cinéma" (1988-1998), esse até agora o seu grande filme sobre o assunto.
      Depois de ter dito então "nous sommes tous encore là", como sombras surgem as imagens dos seus contemporâneos da nouvelle vague entretanto desaparecidos. Mas apesar disso o fundo do filme é o mesmo, com recurso aos mesmos exemplos do cinema americano e europeu, o que faz com que o cineasta continue muito centrado naquilo que já nem sequer é o melhor do cinema na actualidade - faltam a América Latina, a África, o sul da Ásia e o Extremo Oriente.
      Isso não o impede de continuar a pensar o cinema à sua maneira, com imagens montadas e sons livremente misturados, entre os quais as palavras, nomeadamente ditas pela sua própria voz, o que "JLG por JLG"/"JLG/JLG" (1994) tinha confirmado de modo inequívoco e claro para todos.
      Na fase mais recente da sua obra Jean-Luc Godard tem acentuado um pendor pensante, que já o caracterizava no seu início pelo menos na construção serial que Gilles Deleuze oportunamente notou, agora transferido em larga medida para a sua palavra pessoal dita além de escrita.
     O mérito maior de "O Livro de Imagem" está em a reflexão estar distribuída por imagens e palavras e na sua mistura, e aí de facto o filme avança em relação aos anteriores, nomeadamente com intensidades e alturas sonoras diferentes. Por aí passará mesmo a grande novidade proposta por este filme           
                       ‘Le Livre d’Image’: Godard questiona e mostra-nos a violência do mundo
      Sobre a história do século XX o autor mantém as mesmas referências revolucionárias, com especial incidência no final dos anos 10 do século XX, da Catalunha e de André Malraux entre muitas outras citações de proveniência francesa. Na história do cinema continuam presentes as vanguardas soviética e francesa dos anos 20, o expressionismo alemão, o cinema francês, o cinema japonês e o cinema americano, Dreyer, Hitchcock, Lang e Nicholas Ray, com a habitual referência ao cinema banal e uma ou outra novidade - Gus Van Sant.
      Na palavra do cineasta, sempre em off sob a forma de comentário, a reflexão atinge o seu ácume por volta dos 50 minutos, com as referências ao contraponto como sobreposição, à representação numa arte que nasceu num tempo e para um tempo que entretanto, segundo ele terá passado, entre outras.
       Reforça-se assim o lado de filme-ensaio, de que Godard tem sido um notável praticante com exclusão da narrativa, que surge meramente esboçada na parte final. Mas onde a reflexão conflui é sobre a violência na história, com referências que muito pertinentemente vêm até à actualidade.
       Pouco me importa que aqui Godard se repita pois esta é, afinal, a fase mais recente do seu pensamento e do seu cinema, que continuam a ser motivadores e inovadores apesar de tudo, mesmo se contra tudo e contra quase todos. As suas propostas no cinema e para o cinema devem, assim, ser tomadas em consideração por aquilo que são e por quem ele é, uma das figuras mais importantes da história do cinema e da sua contemporaneidade
      Sem excluir os aspectos formais e até incluindo-os especialmente, toca-me que o cineasta prossiga um percurso e uma obra de pendor filosofante, em que com Ingmar Bergman foi pioneiro no cinema moderno, mesmo assumindo desde o início a ideia de remake. E a sua ideia de choque no filme nem sequer está longe de Sergei Eisenstein.
     No final a voz embrulha-se naturalmente de cansaço, o que nos comove como discurso inacabado. Falta-lhe o fôlego para mais palavras que as imagens convocam, e sintomaticamente o filme acaba com palavras sem imagem e com imagens sem palavras. O que ficará para um próximo filme prosseguir.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Vertiginoso

    Daniel Mendelsohn é um professor universitário de cultura clássica e escritor, ensaísta, tradutor (de C. P. Cavafy) e crítico norte-americano parcialmente traduzido em português, de que comecei por ler, como me acontece, o último livro, "Uma Odisseia: Um Pai, Um Filho e Uma Epopeia" (Lisboa: Elsinore, 2018), e agora estou a ler os livros mais antigos.
   A sua escrita é fascinante porque, exaustiva, espraiada, se baseia na realidade com alguns ajustamentos, nomeadamente na identificação de personagens, e porque a sua vasta e abrangente cultura parte de gregos e latinos e vai até à actualidade. E a realidade que nos seus livros está em causa é a sua, pessoal, e da sua família, como exemplarmente também acontece no seu anterior "Os Desaparecidos - À Procura de Seis em Seis Milhões" (Lisboa: Dom Quixote, 2009)".
   Os seus livros são assim sobre história, sobre cultura, sobre filosofia da história e filosofia da cultura, nomeadamente da própria literatura, e não são grandemente prejudicados pelas traduções portuguesas, entre o regular e o muito bom. A sua escrita tranquila e perfeita passa assim sem problemas de maior, em especial no seu livro mais recente.
                                      The Lost
   Girando à volta de conflitos bélicos do passado - a Guerra de Tróia, a II Guerra Mundial - procura encontrar a sua origem na descrição e no estudo de casos individualizados, partindo do texto histórico, das memórias familiares ou mais frequentemente de ambos. Embora  ele próprio explique que aquilo é apenas o que de facto sucedeu.
   Em "Uma Odisseia" opta por uma narrativa no presente, de um seminário por si leccionado e que foi frequentado pelo seu pai como mais um aluno, o que lhe permite introduzir logo aí o elemento pessoal que se rebate sobre a narrativa épica antiga, uma referência literária e cultural que estuda e comenta confrontando-a com a experiência da II Guerra Mundial do seu pai.
   Já em "Os Desaparecidos" põe em cena a sua família, partindo de si próprio e dos seus irmãos e irmã para tentar saber ao certo o que e como aconteceu a antepassados mortos pelos nazis, o que o leva a rebuscar a história da família ao longo dos últimos séculos na Europa. E aqui a referência literária persiste na Bíblia hebraica, sobre a violência individual e na história.
   Dando a distância na proximidade e a proximidade na distância, na sua escrita minuciosa o autor joga com o espaço e o tempo de uma maneira superior, tornando o passado e longínquo próximos e, por meio disso, o presente e próximo estranhos, sempre com apoio em outros textos literários que, introduzindo a diacronia convocam a distância e abrem o caminho à reflexão e à filosofia da literatura e da história.
                                      
    Em especial os avanços e recuos na narrativa são acompanhados por uma cronologia sólida e encontram justificação no que no presente acontece ao narrador, num procedimento muito bem explorado que implica histórias dentro de outra história, com circulação de personagens, opiniões, memórias e recordações.
    A escrita muito pessoal, precisa, faz com que os livros de Daniel Mendelsohn se situem ao mais alto nível literário, assertivo e coloquial simultaneamente, e também reflexivo, num processo que replica as outras artes, incluindo o cinema, no seu melhor e também a filosofia na busca da origem e significado de palavras e expressões antigas.
  Original e desmedido, tudo acaba por fluir na realidade e na literatura convocada contra a expectativa do narrador diegético e do leitor, fulminado por o dito narrador ser identificado com o próprio autor, que assim vai aperfeiçoando o seu (e nosso) conhecimento da vida, dos outros, dos textos e de si mesmo. E nos melhora.
                                       An Odyssey by Daniel Mendelsohn
     Passando parte da narrativa para diferentes personagens e para a discussão com elas, o autor escreve como um fole, fechando e abrindo o curso da narrativa de forma inesperada mas sempre lógica e justificadamente, indo da psicologia ao sentimento, da dúvida à emoção. E ao rebuscar no passado não cessa de rasgar horizontes contra aquilo que alguns ainda hoje negam
    Pouco conhecido e pouco falado em Portugal, Daniel Mendelsohn já recebeu nos Estados Unidos as maiores distinções literárias e destaca-se na literatura americana contemporânea, atravessando um momento de alguma evidência mesmo depois da morte de Philip Roth, devido ao seu método original e muito conseguido, à sua escrita e à grande 
pertinência dos assuntos tratados.
     Às vezes lembra Marcel Proust, outras as narrativas autobiográficas mais conseguidas de Amos Oz ("Uma História de Amor e Trevas" - Lisboa: Presença, 2007) e Orhan Pamuk ("Istambul: Memórias de Uma Cidade" - Lisboa, Presença, 2008) na sua pesquisa da verdade de um texto como da verdade da história. Encarada em casos individuais que remetem para o colectivo, a história é assim repensada à distância de modo a colocar-nos no seu interior, a familiarizar-nos com aqueles que a viveram nos textos estudados e na vida real.
    Apaixonado pelo melhor de literatura norte-americana desde a minha juventude, em que até Jorge de Sena traduzia Ernest Hemingway e William Faulkner, assim actualizo o meu conhecimento dela com um autor que sem reservas aqui aconselho e seria grave não conhecer, membro da American Academy of Arts and Sciences e da American Philosophical Association.
    "Do mesmo modo, para ter uma verdadeira noção da preciosidade das vidas que foram salvas, é necessário ter uma noção absoluta do horror de que foram tão miraculosamente preservadas." (Os Desaparecidos", pág. 179 da edição portuguesa).

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Morre-se muito

    Fernando Belo (1933-2018) foi um filósofo contra corrente, de pensamento profundo, rebelde e insubmisso, que nos acompanhou no ensino e na escrita com grande inteligência e aguda percepção do mais importante da realidade e da filosofia do nosso tempo.
   Licenciado em Engenharia Civil e em Teologia, doutorou-se em Filosofia, que ensinou na especialidade de Filosofia da Linguagem e no seu cruzamento com as ciências sociais na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,.
                                                   
   De uma grande qualidade pessoal, a sua partida deixa um vazio que outros terão de preencher no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e na filosofia portuguesa contemporânea, acolhendo o seu legado. Sem ser especialmente devedor do seu pensamento, aqui assinalo com mágoa a sua partida, que sinto muito e pela qual apresento a expressão do meu pesar à família e aos amigos
   Até agora centrado sobretudo no cinema, este blog vai cada vez mais deslocar o seu centro de gravidade para a filosofia, que me interessa muito mais do que 99,9% do cinema que se faz na actualidade.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Pequenos ladrões

    Depois de "O Terceiro Assassinato"/"Sandome no satsujin" (2017), que não vi, o japonês Hirokazu Koreeda realizou "Shoplifters - Uma família de pequenos ladrões"/"Manbiki kazoku" (2018) a partir de história e argumento seus, Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano.
     O filme arranca como crónica do quotidiano de uma família que se dedica a pequenos roubos nas lojas, da avó/Kirin Kiki até aos netos, Aki Shibata//Mayu Matsuoka, Shota Shibata/Jyo Kairi e Yuri/Miyu Sasaki, para, depois de familiarizados com cada um, se introduzir a dúvida que uma notícia de televisão lançara sobre a origem da filha mais nova. A partir daí as coisas começam a complicar-se, com a morte da avó, que deixa uma boa maquia, uma queda do filho Shota e a prisão dos pais, Osama Shibata/Lily Franky e Nobuyo Shibata/Sakura.Andô.
                      Shoplifters Movie Review
      Sem pretender fazer julgamentos sobre as personagens, o filme prende pela espontaneidade de tudo, pela simplicidade das personagens e pelo carácter óbvio da actividade a que elas se dedicam por razões elas também óbvias atentas as suas escassas posses.
      A culminar o conjunto de pequenas peripécias, o final está bem visto e não surpreende a não ser pela separação entre pais e filhos, lamentável mas inevitável mesmo com a dor envolvida - e a separação de Nobuyo e Shota está bem resolvida em termos fílmicos.
     "Shoplifters - Uma família de pequenos ladrões" de Hirokazu Koreeda é mais um bom filme que faz sentido na obra do cineasta de "Ninguém Sabe"/"Dare mo shiranai" (2004), "Andando"/"Aruitemo, aruitemo" (2008), "O Meu Maior Desejo"/"Kiseki" (2011) e "Tal Pai, Tal Filho"/"Soshite chichi ni naru" (2013) entre outros.
     Um filme que nos seduz e prende pela sua proposta narrativa e pelas suas qualidades formais, com fotografia de Ryûto Kondô, música de Hauromi Hosono e montagem do próprio realizador, o que aqui assinalo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Alto nível

     Bernardo Bertolucci (1941-2018) iniciou-se no cinema com o cinema novo italiano dos anos 60 - "La commara secca" (1962), "Antes da Revolução"/"Prima  della revoluzione" (1964) e "Partner", sobre o duplo a partir de Dostoievski (1968) - de que foi um dos nomes mais modernos e destacados, com Pier Paolo Pasolini. Marco Bellochio e Carmelo Bene. 
    Numa primeira fase a sua obra desenvolveu-se segundo parâmetros de exigência e grande qualidade, depois daqueles filmes com "O Conformista"/"Il conformista" baseado em em Alberto Moravia e "A Estratégia da Aranha"/"La Strategia del ragno" baseado em Jorge Luis Borges (1970), ambos de marcado cunho político. 
    Após esse início fulgurante, forte e pessoal, que o coloca decididamente do lado do cinema moderno e também do político, com "O Último Tango em Paris"/"Ultimo tango a Parigi" (1972), com Marlon Brando e Maria Schneider, belo filme que banaliza o escândalo parolo que o rodeou, "1900"/"Novecento" (1976), com Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda e Alida Valli, grande fresco histórico em que excede o mero modelo viscontiano, "La Luna" com Jill Clayburgh sobre mãe e filho (1979) e "A Tragédia de um Homem Ridículo"/"La tragedia di un uomo ridicolo" com Ugo Tognazzi sobre o sucesso nos negócios (1981) torna-se um realizador internacional de filmes de prestígio e qualidade, que se tornam então indissociáveis do seu nome.. 
                      Bernardo Bertolucci
    Sempre contra o previsível do establishment, na sua obra vão seguir-se o oscarizado "O Último Imperador"/"The Last Emperor" (1987), "Um Chá no Deserto"/"The Sheltering Sky" baseado em Paul Bowles (1990), "O Pequeno Buda"/"Little Buddha" (1993) e "Beleza Roubada"/"Stealing Beauty" (1996), sempre com grandes assuntos, grandes personagens e grandes actores.
   Acaba por regressar a filmes mais pessoais já no século XXI, com "Os Sonhadores"/"The Dreamers" (2003) e "Eu e Tu"/"Io e te" (2012), como se na demanda da inocência perdida e irrecuperável da juventude, em que se situaram talvez os seu filmes mais pessoais e originais
    Guardo dele a memória do ímpeto inspirado dos primeiros filmes e da energia que o levou a erguer monumentos da história do cinema, do inconformismo com que quebrou barreiras e tabus, mesmo de filmar na Grande Muralha da China, em favor de uma beleza não apaziguada que, com o segredo do amor, da vida e da  morte, procurava.
     Figura respeitada e de grande relevo do cinema contemporâneo, soube guardar nos seus filmes um fio de ironia meridional e de contraste que marcava a distância da gravidade dos assuntos que tratava. Um grande senhor do cinema parte agora para desgosto de todos e perda da Sétima Arte.

sábado, 24 de novembro de 2018

Teatro épico

      Embora trabalhe como realizador desde 1998, o filipino Lav Diaz só começou a ser conhecido internacionalmente em 2013 com "Norte, the End of History"/"Hangganan ng kasaysayan" e tem-se caracterizado por fazer filmes muito longos. Conheço pouco da sua obra mas vi o seu penúltimo filme, "The Season of the Devil"/"Ang panahon ng halimav" (2018) no Lisbon & Sintra Film Festival deste ano.
     Baseado em personagens e factos reais das Filipinas em 1979, narra os desencontros entre Hugo Haniway/Piolo Pascual e Lorena Haniway/Shaina Magdayo, perseguidos pelos esquadrões da morte do ditador Narciso/Noel Sto. Domingo. Simplesmente, em vez de um método realista puro, o filme tempera-o com palavras cantadas pelas personagens, perseguidores e perseguidos.  
                      
       Daqui resulta uma obra marcada por um certo distanciamento, representando ostensivamente no presente do filme acontecimentos trágicos do passado. Desta forma moderna o cineasta se serve para criar uma obra tanto mais poderosa quanto mais distanciada, encenação do passado na actualidade em filme.
     Com recurso a repetições das mesmas canções, o filme reitera-se e repete-se para maior encantamento e justeza, na exibição da crueldade e da ameaça para persuadir a delação e na apresentação dos pobres perseguidos que esperam que alguém os liberte enquanto a tortura e as mortes se sucedem. Com a presença dos quatro elementos, terra, água, fogo e ar.
       Contando com realização, produção, argumento, fotografia e música de Lav Diaz, "The Season of the Devil" aumenta o seu impacto por usar um rigoroso preto e branco, ter muito escassa música e ser encenado com planos-médios em geral longos e com profundidade de campo, sem se aproximar muito dos seus actores. A estética do filme e o seu artifício de ser cantado convocam um distanciamento brechtiano no sentido mais profundo do seu "teatro épico".
     Moderno e não ingénuo, este é um cineasta filipino muito bom que, depois de Lino Brocka (1939-1991) e Brillante Mendonza, interessa conhecer e acompanhar na actualidade. Que merece ser conhecido na totalidade da sua obra, na Cinemateca Portuguesa por exemplo. Enquanto isso não chega, com o Indie, o Doclisboa e o Lisbon & Sintra Film Festival, uma razoável distribuição comercial e uma boa Cinemateca, Lisboa continua a afirmar-se como grande capital europeia do cinema.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

As cobaias

    O mais recente filme da francesa Claire Denis, "High Life" (2018), rima na obra dela com "Beau travail" (1999), baseado em "Billy Budd, Sailor", de Herman Melville, passado num navio, enquanto este se passa numa nave espacial: em qualquer dos casos estão em causa as tripulações.
    A bordo de uma nave que já saiu do sistema solar rumo ao pequeno buraco negro mais próximo da galáxia, um pai, Monte/Robert Pattinson, acompanhado pela sua filha bebé, Willow/Scarlett Lindsey, uma vez desocupada a nave dos tripulantes creoginizados recorda os tempos anteriores dele na Terra, do nascimento dela e deles juntos, com a procriadora Dr.ª Dibs/Juliette Binoche.   
                       High Life Trailer
    O que no filme anterior se passava entre homens passa-se aqui entre homens e mulheres, com estas a dominarem no seu papel sexual e procriador. Com a particularidade de todos os tripulantes terem sido condenados a prisão perpétua ou à morte na Terra e serem usados naquela missão como cobaias.
    Num final muito bom, pai e filha já adolescente/Jessie Ross, enfrentam, ao aproximarem-se do seu objectivo final, uma nave gémea que vem ao encontro deles. E o filme fica-se por aqui, pela sugestão. De acordo com o estilo da cineasta, "High Life", à semelhança de "Beau travail" faz largo uso de planos aproximados, grandes-planos e planos de pormenor. E a sua construção temporal enrolada é muito curiosa.
   Com argumento da realizadora, Jean-Pol Fargeau (que estivera no "Melville film") e Geoff Cox, tem fotografia de Yorick Le Saux e Tomasz Naumiuk, música de Stuart Staples e dos Tindersticks e montagem de Guy Lecome. 
   O filme passou no domingo no Lisbon & Sintra Film Festival, em que aconselho Lav Diaz na quinta-feira, 22 de Novembro, ás 19H 00M na Sala 2 do Monumental. Sobre Claire Denis  ver "Uma brincadeira", de 26 de Dezembro de 2017.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Esticar a corda

   Depois de "Nasceu uma Estrela"/"A Star Is Borne", de William A. Wellman com Janet Gaynor (1937), de "Assim Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne", de George Cukor com Judy Garland (1954), e de "Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne", de Frank Pierce com Barbra Streisand (1976), surge agora "Assim Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne" de Bradley Cooper com Lady Gaga (2018), um filme que tem dado que falar e com boa recepção crítica.
   Com argumento de Eric Roth, Bradley Cooper e Will Fetters baseado nos anteriores, o filme recupera a narrativa já conhecida, que actualiza para os nossos dias. Por aí nada de especialmente novo a não ser o melodrama, a realização que se ocupa mais dos actores que do espaço e o final que justifica a longa duração.
                      
        Não há outra justificação para repetir um sucesso no cinema que não seja a sua popularidade, e atrás dela o realizador, produtor e actor corre, tentando fazer obra nova e pessoal. O que consegue de modo a espantar e comover os espectadores de cinema actuais com um misto de musical cantado e de melodrama.
        Lady Gaga como Ally não decepciona os seus fãs e é a singing star da actualidade como as duas anteriores eram no tempo delas, enquanto Bradley Cooper como Jack explora bem os silêncios de uma personagem difícil num bom elenco em que se destaca também Sam Elliott como Bobby, o irmão dele. Talvez que o excesso de focalização do realizador em si própriio prejudique este filme, o que no entanto se justifica com o facto de ele se "ausentar" no final, típico melodrama.
        Ao explorar o melhor do musical e do melodrama no cinema americano, este "Assim Nasce uma Estrela" segue as pisadas de Robert Redford no segundo género para se afirmar na sua longa duração, por vezes fastidiosa e por isso excessiva, e alcança um bom nível que, com aspectos discutíveis como tornar-se uma colagem de momentos consecutivos, o torna apreciável. E o final está bem resolvido neste novo filme de repertório americano.
      Tem fotografia de Matthew Libatique, músicas e canções variadas  e montagem de Jay Cassidy. Talvez que uma marca importante do cinema americano contemporâneo, que não vive grandes tempos, seja justamente a tendência para a repetição. Pela sua duração em perda se compreende este remake de remakes feito por um actor/realizador de quem se anuncia agora "Bernstein".

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Vindos do mar

    "A Tartaruga Vermelha"/"La tortue rouge", do holandês Michael Dudok de Wit (2016) é um belo desenho animado com um número reduzido de personagens, um homem/Mickaël Dumoussaud, uma tartaruga-mulher/Maud Brethenoux e o filho deles/Elie Tortoix, numa ilha deserta.
    Ele ali foi parar devido ao acaso dos sucessivos naufrágios das jangadas por si construídas e ali encontrou a tartaruga vermelha que se metemorfoseou em mulher que, depois de lhe dar um filho e o ver crescer, de novo como tartaruga, com vida muito mais longa que a dele lhe sobrviverá.
                      Un film réalisé par le Néerlandais Michaël Dudok De Wit.
   Funcionando como parábola poderosa e expressiva sobre a vida, o amor e a morte num meio edénico, este filme poético e humanista tem uma animação perfeita e deixa margem para a imaginação do espectador o preencher nas suas elipses e omissões. Tem também cores soberbas e desenhos de uma grande qualidade e vivacidade, com realce para as cenas subaquáticas.
   O argumento é do realizador e Pascale Ferran a partir de história dele. Além disso, o filme adopta uma variada gama de planos sempre com grande a-propósito, tem uma música excelente de Lauren Perez Del Mar e montagem justa de Céline Kélépikis.
   Co-produção franco-belga-japonesa (Estúdio Ghibli) premiada em Cannes, "A Tartaruga Vermelha" passou ontem à noite no âmbito do Arte fait son cinéma.

domingo, 11 de novembro de 2018

Cinema no Arte

        Entre 12 e 26 de Novembro, Arte fait son cinéma regressa na sua quinta edição como grande mostra de algum do melhor cinema, uma iniciativa que aqui saúdo e aconselho.
        Muito estimado por este canal cultural franco-alemão, o melhor do cinema nem sempre tem a divulgação que merece e nem sempre é apresentado da melhor maneira. Aqui são mostradas produções recentes deste mesmo canal televisivo, algumas delas inéditas comercialmente entre nós.
                      Nanni Moretti et Margherita Buy dans Mia Madre de Nanni Moretti
     Neste festival bienal são programados agora por Olivier Père, entre outros, filmes da alemã Maren Ade, do iraniano Rafi Pitts, do finlandês Juho Kuosmanen, do italiano Nanni Moretti, dos franceses Mia Hansen-Love, Bruno Dumont e Sacha Wolff, numa programação que encontram completa aqui
https://www.arte.tv/fr/articles/arte-fait-son-cinema 
com entrevista aqui
http://cinema.arte.tv/fr/article/arte-fait-son-cinema

sábado, 10 de novembro de 2018

Sem ilusões

   "Fahrenheit "11/9" é o mais recente filme do documentarista americano Michael Moore (2018), em réplica ao seu anterior "Fahrenheit 9/11" (2004), indispensável para compreender a América actual sob a presidência de Donald Trump, eleito devido a circunstâncias infelizes do sistema político do país.
   O seu mérito maior reside em não se circunscrever à eleição e à presidência de Trump mas dar-lhe o contexto americano em tons crus e realistas, nomeadamente com o recurso à situação anterior da terra natal do realizador, também argumentista e produtor, Flint, Michigan, caso escandaloso de governo por um outro milionário. Nesse e noutros casos percebe-se bem a aberração de um sistema que permite e até favorece a escolha eleitoral não dos melhores mas dos mais ricos, dispostos a tudo para exercer o poder em benefício próprio e dos seus iguais.
  Mas com cumplicidades e repercussões internacionais, o caso Trump está muito bem apresentado como o de uma presidência disruptora tanto interna como internacionalmente, com ameaça para toda a humanidade em alguns casos enquanto põe em causa o respeito por elementares direitos humanos internamente.
                      UNITED STRAITS From sea to shining sea, Moore checks in with ordinary Americans who report feeling hosed like never before.
    Além disso este filme mostra como o actual partido democrata mereceu perder as últimas presidenciais e continua sem alternativas válidas para oferecer, enquanto na juventude parece residir o inconformismo propício a uma mudança.
    A parte final do filme sobrepõe a actualidade americana à ascenção do nazismo, nos anos 30 do século XX, no que faz muito bem ao carregar os traços daquilo que a alguns pode parecer inofensivo mas não é, contrariamente ao diagnóstico de pós-fascismo dos filósofos italianos que António Guerreiro citou no Ipsílon da semana passada.
    Essencial para os próprios americanos que julgam que o seu país se resume a um reality show, "Fahrenheit 11/9" de Michael Moore ajuda-nos a todos a compreender a actualidade, sem falsas esperanças nem ilusões, indo assim ao encontro das previsões que vêm sendo feitas por Slavoj Zizek entre outros. Tudo muito claro e bem documentado, orientado pelo comentário do cineasta sem preocupação de ser "artístico".
  Perante indiferença generalizada, prolonga-se uma situação inaceitável que as eleições intercalares desta semana vieram consolidar. E o inaceitável alastra a outros pontos do globo sem que se veja disposição para o contrariar e afastar os seus fautores, como numa espiral de ameaça provocadora e muito perigosa que urge combater e afastar.