quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A tetralogia completa e o mais

    Os dois últimos filmes da tetralogia "Les quatre soeurs", de Claude Lanzmann (2017), de que falei aqui na semana passada, passaram como previsto ontem, terça-feira, no programa "Théma" do Arte.
    A terceira parte, "Baluty", com Paula Biren, demora-se sobretudo na descrição do gueto de Lodz, na Polónia, de onde a entrevistada, que chegou a integrar uma unidade de polícia, partiu para Auschwitz. Daí conseguiu sair com vida para os Estados Unidos. E aqui todos são mencionados, alemães e polacos, judeus e não judeus, num processo cumulativo que acabou por conduzir ao extermínio da maioria.  
                       https://static-cdn.arte.tv/resize/OTDcmy5BKi9KYYPtdWjeCxFJpck=/1920x1080/smart/filters:strip_icc()/apios/Img_data/17/076601-000-A_2255157.jpg
     Na quarta e última parte. "L'arche de Noé", com Hanna Marton, esta situa-se a partir de Cluj, na Hungria, que em 1940 a reocupou na Transilvânia e renomeou Kolozsvar, de onde acabou por partir não para o extermínio mas para a Suíça, incluída numa lista não aleatória. A experiência da ocupação alemã da sua terra, Cluj, é vívidamente recordada, nos grandes planos que Lanzmann dedica a cada uma das participantes nesta tetralogia.
    A noite temática do Arte terminou com "Auschwitz Projekt", do documentarista Emil Weiss (2017), já autor de outros filmes sobre o assunto, nomeadamente a trilogia "Hourben"/"Destruction". Este excelente documentário dá conta pormenorizadamente do projecto nazi, da sua concepção à sua concretização, acompanhado de testemunhos das vítimas.
    A noite não terminou, porém, sem que fosse transmitido o documentário "Claude Lanzmann - Poerte-parole de la Shoah", de Adam Benzine (2015), em que o cineasta fala longamente sobre o seu primeiro e principal grande filme e também sobre si próprio.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O mesmo caso, a mesma causa

     O mais recente filme do veterano (quem diria?) Steven Spielberg, "The Post" (2017), é um filme muito bom, mais uma prova exuberante do seu talento e da sua mestria. Num momento difícil para a América, coloca-a perante a sua própria imagem no passado recente, sem contemplações mas também sem pessimismo.
     Centrado na divulgação pela grande imprensa americana de relatórios secretos do Pentágono sobre a Indochina e a Guerra do Vietname desde a administração Truman, acompanha os homens do Washington Post que, com o seu editor Ben Bradley/Tom Hanks, chegaram atrasados em relação ao The New York Times a um caso suscitado pelo analista militar Daniel Ellsberg/Matthew Rhys, como é mostrado logo no início do filme, o que os prejudicou mas também acabou por beneficiar.
      O lugar principal acaba por ser o de Kay Graham/Meryl Streep, accionista do jornal que, ao dar o seu consentimento ao prosseguimento da divulgação pelo Post dos relatórios secretos, põe em jogo uma posição financeira maioritária e uma venda contra o seu amigo Robert McNamara/Bruce Greenwood, Secretário da Defesa de Kennedy e Johnson, e contra os conselhos amigos de Fritz Beebe/Tracy Letts, entre outros. E a questão das "amizades políticas" está muito bem tratada e ultrapassada, corria o primeiro mandato de Richard Nixon, no início dos anos 70.
    Mas Spielberg aponta alto neste seu filme político, pois em termos de realização convoca repetidamente "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" de Orson Welles (1941). Mesmo sem exceder as remissões da mise en scène, com plongés e contra-plongés a propósito, nomeadamente em escadas, um grande-plano sobre  a câmara solto, fica bem ao cineastra recordar o filme fundador do cinema moderno americano, que era também sobre jornalismo e política.
                      http://amazonasatual.com.br/wp-content/uploads/2018/01/the-post.png
        De resto, com a participação dos seus colaboradores habituais na fotografia, Janusz Kaminski, na música, John Williams, e na montagem, Michael Kahn e Sarah Brosher, sobre argumento de Liz Hannah e Josh Singer a realização é muito boa, pendular entre os protagonistas mas seguindo atentamente os jornalista que seguem a pista do relatório já divulgado parcialmente, com destaque para Ben Bogdikian/Bob Odenkirk, para o divulgar o mais completamente possível.
           Com o Times paralisado, cabe ao Post prosseguir o mesmo caso, a mesma causa. Com um final empolgante, em corrida contra o tempo enquanto se espera a decisão do Supremo Tribunal, o desfecho optimista não se consuma sem abrir a porta para o caso seguinte, o Watergate, que mereceu a Alan J. Pakula "Os Homens do Presidente"/"All the President's Men" (1976).
           Agora o maior destaque vai para a grande interpretação de Meyl Streep no seu primeiro trabalho com o cineasta, que a confirma como a mais importante actriz americana do seu e nosso tempo. Tom Hanks, actor habitual do realizador, está sóbrio e contido. Aliás todo o cast é impecável, participando do sucesso artístico do filme.
           É claro que é a liberdade de imprensa que aqui está em causa, esteio sólido da democracia americana neste caso como nos nossos dias. Ao fazer o seu trabalho ela não ofende senão os que a tal se proporcionaram, na política como no espectáculo. Doa a quem doer. Defendida por Steven Spielberg com toda a pertinência num filme memorável e muito recomendável. 

domingo, 28 de janeiro de 2018

A festa do cinema

     O mais recente filme da saga, "Star Wars: Episódio VIII - Os Últimos Jedi"/"Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi", de Rian Johnson (2017), vem desenvolver a narrativa desta space-opera para delícia dos seus muitos seguidores em todo o mundo. O sucesso de box- office foi aquele que se sabe, como filme é fraco, o que não preocupa ninguém.
     Foram oportunamente assinaladas na imprensa portuguesa as incongruências científicas deste filme - por Nuno Crato no Observador de 9 de Janeiro (a força da gravidade, explosões em pleno espaço sideral, etc) -, mas tudo, mesmo a inconsistência, os erros científicos, até com contra-argumentos o espectador é predisposto a aceitar pelos responsáveis da saga, criada em 1977 por George Lucas, que agora incluem a Disney, em benefício da fantasia da ficção-científica no cinema.
     Com um cast de luxo, que inclui Adam Driver, Laura Dern, Benício Del Toro e Carrie Fisher numa das suas últimas aparições no cinema, o filme puxa do lado do prestígio e da popularidade, que não lhe faltam.
     Cada vez mais para os mais novos e os muitos fãs, como filme é fraco, mas face ao grande espectáculo também ninguém se preocupa com isso, repito. Agora morre Luke Skywalker/Mike Hamill, depois de Han Solo/Harrison Ford ter morrido no filme anterior, "Star Wars: O Despertar da Força"/"Star Wars: Episode VII - The Force Awakens", de J. J. Abrams (2015), mas essa é a catarse de um filme em que é o percurso até aí chegar, no duelo final, que mais tempo dura.
                     https://metrouk2.files.wordpress.com/2017/12/star-wars-the-last-jedi.jpg
      Frente aos heróis da Resistência há Snoke/Andy Serkis e o jedi Kilo Ren/Adam Driver, contra os quais se batem Luke e a também jedi Rey/Daisy Miller, enquanto as complicações se multiplicam do seu lado com Finn/John Boyega e Rose Pico/Kelly Marie Fran, Poe Dameron/Oscar Isaac, a vice-almirante Holdo/Laura Dern e a Princesa Leia/Carrie Fisher, nem sempre de acordo sobre o melhor caminho a seguir. Com a Força, subjacente, explicitada em personagens, em actos e em palavras, e o Mal muito claramente identificado por americanos para americanos e para todo o mundo.
     Mas como não reconhecer nas personagens deste filme, com argumento do realizador que já nos tinha dado "Looper - Reflexo Assassino"/"Looper" (2012), os lugares-comuns do filme de acção e de aventuras, da morte do super-vilão ao falso desertor, da fidelidade e do heroísmo de todos à astúcia e habilidade dos heróis jedi, cada um deles com a sua história pessoal, passando pelo cúmplice feito com o inimigo e pelo amor desesperado mas redentor. Justamente como na narrativa popular, nos contos de fantasia. E lá estão o Yoda, C-P30, Chewbacca, R2-D2, BB8 para manter a continuidade da equipa.
      O que se poderia considerar "insuficiências" na fotografia de Steve Yedlin, que deixa por vezes a desejar, na música de John Williams, que com o stereo se torna agressiva, na montagem de Bob Ducsay, sem conseguir imprimir ritmo ao que o não tem, na própria realização, que se limita a juntar as várias partes criadas separadamente, fica a dever-se ao facto de o filme ter sido feito para ter uma versão 3D, a melhor que por isso vos aconselho. O que neste caso, sem constituir ainda a justificação estética do sistema, que dela não precisa pois lhe basta existir e dizer "estou aqui" para se apresentar, justifica muitas coisas.
      Ninguém, contudo, se preocupa com outra coisa que não seja o desenvolvimento da narrativa, com os seus heróis e vilões, as suas peripécias e o seu desenlace. Trata-se, pois, de cinema popular que não é grande coisa como filme, mas é bom ter presente que os filmes populares, para confusão dos historiadores, teóricos e críticos, também fazem o cinema e mesmo a parte mais importante da sua história. Siga a festa, portanto, até ao próximo episódio, mas não se deixem "comer" pela fantasia do "espectáculo do cinema". Quer dizer: entrem na história sem problemas, vejam com atenção, distraiam-se e saiam com precaução (sobre esta saga ver "Lateral", de 30 de Julho de 2017).

sábado, 27 de janeiro de 2018

Sem próxima vez

     Por razões profissionais, estive muitos anos todas as semanas alguns dias no Porto e aí me habituei a frequentar a Livraria Leitura com regularidade. Das últimas vezes que lá fui era patente a redução do seu espaço, já com uma só entrada pela Rua José Falcão, a redução e o definhamento dos livros. Nos últimos anos tinha deixado de importar livros estrangeiros, mas tinha ainda um acervo muito importante.
    Já depois da sua fase "histórica", ali passei manhãs e tardes às voltas com livros, no meio deles, alguns dos quais só ela tinha, e assim tornei-me familiar de todo o seu espaço, de todas as suas secções em melhores tempos e dos seus competentes e simpáticos vendedores. Ali, onde cheguei a assistir ao lançamento de novos livros e onde me aconteceu encontrar amigos que não via há muito, formei alguma da minha melhor memória dos livros, das livrarias e do Porto.                
                      
    Os tempos não vão de feição para a actividade livreira mas para o negócio do livro (por enquanto), e nestas condições tanto faz que uma livraria tenha ou não história. Os livros, esses, continuam a existir, e como lembram Eco e Carrière ("Não contem com o fim dos livros": Lisboa, Gradiva, 2017) não estão para desaparecer - não contem com isso.
    De cada vez que lá ia deixava um livro para comprar na visita seguinte. Aqui me despeço com tristeza dos meus amigos da Livraria Leitura, que das últimas vezes que lá estive não escondiam já a sua apreensão quanto ao futuro daquele espaço. Ao Fernando Fernandes fica agora o encargo de contar em livro a história da livraria que fundou e dirigiu durante muitos anos.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Os testemunhos: tetralogia

      O Arte transmitiu ontem, terça-feira, os dois primeiros episódios da tetralogia "Les quatre soeurs", de Claude Lanzmann (2017), "Le serment d'Hippocrates" e "La Puce joyeuse", que recolhe os testemunhos de quatro mulheres que sobreviveram ao Holocausto.
     Muito ao seu jeito, ele entrevista-as uma a uma, recolhendo depoimentos inéditos e fundamentais sobre a experiência de encarceramento feminino em campos de concentração e de extermínio nazis, desde o seu transporte até à vida que aí viveram com outras e outros sob o comando e as ordens dos seus algozes.
                      http://www.fondationshoah.org/sites/default/files/styles/max_1300x1300/public/1%20-%20M%C3%A9moire/M2017-Film-Les%20quatre%20soeurs.jpg?itok=nUTTm7rl
     Na vasta extensão de filmes longos que tem dedicado ao assunto, o cineasta, conhecido e identificado pelo monumental "Shoah" (1985), vai completando um quadro diversificado que conduz ao mesmo resultado: o horror do nazismo, o cortejo de horrores e de crimes que ele deixou atrás de si, presenciados em concreto uns atrás de outros. O impensável tornado realidade vivida até à morte, no que cada uma sofreu, no que cada uma viu e viveu, Ruth Elias desde os 19 anos, Ada Lichtman desde os 10, e por isso pode testemunhar.
      A vida destas mulheres foi então tremendamente difícil e dura, mas por uma razão ou por outra acabaram por escapar a uma morte antecipada e anunciada. É preciso vê-las e ouvi-las atentamente para perceber plenamente e não esquecer. Os dois últimos episódios de "Les quatre soeurs" passam no Arte na terça-feira da próxima semana. Estejam atentos porque isto é importante sobre o início da vida de mulheres que chegaram a idades avançadas.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Até ao mar

     "Uma Mulher Não Chora"/"Aus dem Nichts"/"In the Fade", de Fatih Akin (2017), cineasta alemão de origem turca, é um belo filme sobre o terrorismo da extrema-direita neo-nazi, renascente e impune na Alemanha como noutros lados.
    Dividido em três partes, "família", "tribunal" e "mar", não abandona uma mulher, Katja Sekerci/Diane Kruger, a quem matam o marido, Nuri Sekerci/Numan Acar, de origem curda, e o filho, Rocco/Rafael Santana, num ataque com uma bomba artesanal. Após o grande choque inicial, ela acompanha o seu advogado, Danilo/Denis Moschitto, em tribunal como parte queixosa no processo contra a mulher que viu no local do atentado, Edda Möller/Hanna Hilsdorf, e contra o companheiro e cúmplice dela, Andre Möller/Ulrich Brandhoff.
     Frustradas as expectativas de ver feita justiça por um advogado hábil, Haberbeck/Johannes Krisch, e um tribunal timorato perante o fantasma do "erro judicial", Katja segue o par absolvido até à Grécia, de onde viera a falsa testemunha com o documento falso. Essa parte final do filme reveste grande intensidade dramática e está muito bem resolvida em termos fílmicos até ao fim.
                                     http://cinemas.nos.pt/_layouts/15/Cinemas/Handlers/RenderImage.ashx?file=50078.jpg
      Não se trata de alarmismo mas de casos reais acontecidos na Alemanha já neste século XXI e que a progressão eleitoral da extrema-direita na Europa e noutros lados, além dos actos de terror, vem confirmar ser um perigo real e iminente nas sociedades democráticas.
      Diane Kruger tem uma excelente interpretação, justamente premiada em Cannes, e o filme tem um grande equilíbrio nas suas três partes, cada uma fechando sobre as imagens do passado da família, e entre elas. O que nem sequer espanta, pois Fatih Akin é um dos melhores cineastas alemães e europeus da actualidade.
     Com cada personagem e cada acontecimento no seu lugar certo, "Uma Mulher Não Chora" mostra também de forma clara os pontos pelos quais os neo-nazis se caracterizam: o ódio ao estrangeiro, ao diferente, demonizados e atacados sem qualquer preocupação ou remorso. 
       Ver para crer neste filme com argumento do próprio cineasta e Hork Bohm, fotografia de Rainer Klausmann, música de Josh Homme e montagem de Andrew Bird. Globo de Ouro para o melhor filme em língua estrangeira deste ano.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Depois do centenário

     Uma vez comemorado o centenário da Revolução de Outubro de 1917, a que aqui fiz uma breve alusão (ver "A mobilização dos sonhos", de 9 de Novembro de 2017), importará destacar os principais cineastas que, depois da nacionalização da indústria do cinema em 1919 e da sua reorganização em 1922, fizeram a grandeza da denominada "vanguarda dos anos 20" no cinema soviético. Brevemente, como se impõe.
     Já aqui fiz também uma referência a Sergei Eisenstein (ver "Um contra o outro", de 24 de Março de 2017), e de facto ele foi o nome central dessa "época de ouro" do cinema, de que foi também professor e teorizador em livros que não estão traduzidos em português. Nos seus filmes trabalhou sobre os progressos de David W. Griffith na criação de uma linguagem cinematográfica, que desenvolveu e aperfeiçoou sobretudo na montagem em filmes como "A Greve"/"Stacka" (1924), "O Couraçado Potemkine"/"Bronenosec Potemkin" (1925), "Outubro"/"Oktjabr" (1927) e "A Linha Geral ou O  Velho e o Novo"/"General'naja Linija ou Staroe i novoe"(1929). Há quem o considere o melhor cineasta de sempre.
                      https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgykkgeKQIDA9ytrZuZZCcJ152CBoKDUv1B8__tEOy85DoARTjb9cH2EUqSQ3ISoRXlUxAKBeYIAgXeGtqNWnj1vT-vxt6zKl2s9zXpszF_kECqBxhfZaPkd5zNWSOf9YOH8gTsVniYPLQ/s640/potemkin1-e1433067857268.jpg
    Além dele, e tendo mesmo começado no cinema antes dele, destacou-se Dziga Vertov, um dos pioneiros do documentarismo como género cinematográfico (ver "Também no documentário", de 9 de Novembro de 2017), que no seu caso fez a propaganda da revolução e do regime.
    Importará mesmo reconhecer e sublinhar o carácter propagandístico do cinema desta vanguarda, que se compreende por a revolução ter sido pouco antes e os anos 20 terem sido a época de arranque e consolidação dela. Nesta perspectiva, os documentários de Vertov, primeiro no Kino-Nedelia (1919), depois Kino-Pravda (1922), mais tarde no Kino-Glaz (1924) entre muitos outros, tiveram um significado e um alcance muito especiais, muito embora as suas obras-primas tenham sido "Avante, Soviete!"/"Chagai, Soviet! ou Mossoviet" e "A Sexta Parte do Mundo"/"Chestala tchast mira" (1926), "O Homem da Cãmara de Filmar"/"Tchelovek s kinoapparatom" (1929), "Entusiasmo ou Sinfonia do Donbass"/"Entuziasm ou Simphonia Donbassa" (1930) e "Três Cantos para Lenine"/"Tri pesni o Lenin" (1934).
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     Mas esta vanguarda tinha começado com a FEKS, a Fábrica do Actor Excêntrico, fundada em 1922 por Grigori Kozintsev, Leonid Trauberg e Sergei Youtkevitch, enquanto, experimetalista e formalista, Lev Kulechov inventava o efeito de montagem com o seu nome com o actor Mosjoukine e fazia filmes segundo o modelo do cinema americano, como "As Aventuras Extraordinárias de Mister West no País dos Bolchevistas"/"Ncobycajnye prikljucenija Mistera Vesta v strane Bol'sevikov" (1924), "O Raio da Morte"/"Luc smerti" (1925) e "Dura Lex"/"Po zakonu" (1926). Mas há que assinalar também outros cineastas importantes como Gregori Kozintsev e Leonid Trauberg, que vieram a realizar "A Nova Babilónia"/"Novyj Vavilon" (1929) e nos anos 30 a "trilogia dos Maximos".
      Nomes grandes ao nível dos maiores foram, contudo, Vsevolod Pudovkin e Alexandr Dovjenko. O primeiro, que também escreveu sobre o argumento e a realização, ficou conhecido por filmes como "A Mãe"/"Mat'" (1926), a partir de Maximo Gorki, "O Fim de São Petersburgo"/"Konec Sankt-Peterburga" (1927) e "Tempestade na Ásia"/"Potomok Cingis-hana" (1928), e terá seguido a figura da "tomada de consciência" nos seus filmes. O segundo foi o grande panteísta do cinema soviético, com filmes como "Zveniroga 1928) "Arsenal" (1929) e "A Terra"/"Zemlja" (1930), mais tarde "Ivan" (1932) e "Aerograd" (1935), que lhe valeram e valem um lugar cimeiro que nem sempre lhe foi reconhecido.
                      https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi8fp8ZHwSuLOFDejNjkublASFiotYEGAcdOEiL3QzdO2_n1EW56DeoYwD7a-7IZ80J9Ktgb88jnRf57yeHg-C_i-j0vLL6VB5YcX-BUkja_1Q9X0XwEL2BHZBY_JrYblhjASI36-1xfYw/s1600/Captura+de+ecra%CC%83+-+2012-04-20,+04.16.27.png
     Com o cinema mudo foram realizados ainda grandes filmes, como "Aelita", de Yakov Protazanov (1924), e já no final da década Esther Choub inaugurou o filme de arquivo com uma trilogia iniciada com "A Queda da Dinastia Romanov"/"Padenie Dinastii Romanovykh" (1927) e surgiu Boris Barnett, à margem da vanguarda e voltado para a comédia e o melodrama, com "A Rapariga da Caixa de Chapéus"/"Devuska s korobkoj" (1927), "Moscovo em Outubro"/"Moskva v Oktjabre" e "A Casa da Rua Troubnaia"/"Dom na Trubnoj" (1928), mais tarde "Okraina" (1933) e "À Beira do Maar Azul"/"U samago sinego morja" (1936), 
     Tudo antes do fatídico ano de 1934 e da aprovação do "realismo socialista" como política do partido e do regime para as artes e a cultura. Depois disso, e apesar de alguns filmes valiosos, com destaque para Mark Donskoï, que se estreara ainda no cinema mudo e tivera o seu primeiro grande filme com "O Canto da Felicidade"/"Pesn'o scast'e" (1934), a vanguarda extinguiu-se com a censura estalinista aos seu nomes maiores, a que apenas Pudovkin terá escapado incólume.
                        https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhe-YljKos8AZxdSG9WXUOD18ceZtVKZwxl93SQ1SOF7PyvTWVju8a2YClC9UYvQIwhSUrugTDiQTRkB9DUP1YNsf8hFHfDOwV32FVrAO6__EVKYDtWZ4S99yChyoMsbqakJoiG2aKW3_da/s1600/aelita+4.jpg
     Por vezes denominada construtivista por causa de Vertov e Eisenstein, esta vanguarda, que foi precedida por Maiakovsy e coincidiu temporalmente com a francesa e com o expressionismo alemão, foi sobretudo política e estética. Mas só por si valeu no cinema como um dos seus momentos mais importantes.  A  "época de ouro" do grande cinema soviético terá terminado com "Alexandre Nevsky"/"Alexandr Nevskii", de Eisenstein (1938), quando já se tinha estreado no cinema Mikhail Romm com "Bola de Sêbo"/"Pyska" (1934), baseado em Guy de Maupassant, seguido de "Os Treze"/"Trinadcat" e "Lenine em Outubro"/"Lenin v Oktjabre" (1937), que o celebrizaram.
    Antes da Revolução de Outubro tinha-se distinguido Evgueni Bauer, recuperado e reavaliado depois do fim do regime fora de qualquer vanguarda como o primeiro grande cineasta russo. Depois só com o seu "cieema novo" dos anos 60 o cinema soviético voltou a ver-se reconhecido um lugar de evidência, com Andrei Tarkovski, Otar Iosselliani, Sergei Paradjanov, Elem Klimov, Larissa Chepitko, Andrei Mikhalkov-Kontchalovski e Nikita Mikhalkov entre outros.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Protesto visível

    "Três Cartazees à Beira da Estrada"/"Three Billboards Outside Ebbing, Missouri" é a terceira longa-metragem do inglês Martin McDonagh, depois de "Em Bruges"/"In Bruges" (2008) e "Sete Psicopatas"/"Seven Psychopats"  (2012), que tinham deixado boa impressão.
     Centra-se numa mãe, Mildred/Frances McDormand, que protesta através de cartazes colocados ao longo de uma auto-estrada pouco frequentada contra a falta de progresso na investigação do assassinato da sua filha e contra quem a dirige, Willoughby/Woody Harrelson.
     A partir daqui é traçado o retrato de uma pequena comunidade do Sul dos Estados Unidos, com especial atenção prestada à esquadra de polícia, Willowghby, que tem um cancro, e o seu ajudante Dixon/Sam Rockwell, que vive com a mãe de quem depende, mas também ao agente de publicidade Red Welby/Caleb Landry Jones, à própria Mildred e ao filho dela.
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        Numa segunda parte, depois da morte e substituição de Willoughby, o filme abre-se, a violência aumenta e também a hostilidade de Mildred em relação ao seu ex-marido e à sua jovem nova mulher, ela que não fora de todo alheia à morte da própria filha. Depois de um anti-clímax, o filme tem um final em aberto entre ela e Dixon, gravemente queimado na investida dela contra a esquadra.
          Com produção e argumento do próprio realizador, trata-se de um filme pitoresco e picaresco embora dramático e crítico, que conta com grandes interpretações no registo certo, que nem sempre é fácil numa comunidade isolada, pouco esclarecida e dominada pelos abusos policiais.
        Contando com fotografia de Bern Davis, música de Carter Burwell e montagem de John Gregor, é um filme a ver e degustar no seu encantamento lento e rugoso. A conclusão do limitado Dixon para Mildred é universal: o que é preciso é falar bem inglês.

Valioso

      Segundo o Arte, que o emitiu esta semana, "Por Detrás do Candelabro"/"Behind the Candelabra" de Steven Soderbergh (2013), que foi feito para televisão, representa um ponto de viragem na obra do cineasta americano, que depois disso trabalhou para a televisão e fez apenas uma longa-metragem para o cinema (ver "Bons rapazes", de 11 de Setembro de 2017).
        Trata-se de um filme baseado no livro de um dos protagonistas, Scott Thorson/Matt Damon, sobre o seu convívio com Liberace/Michael Douglas, célebre vedeta como entertainer da televisão americana nos anos 70 e 80 do século XX.
        Mantendo fielmente de início a fim o ponto de vista de Thorson, "Por Detrás do Candelabro" traça um retrato impiedoso mas veraz da vedeta e da comunidade homossexual masculina de Los Angeles, Hollywood incluída. No mundo fechado de tal comunidade, torna-se penoso seguir a relação dos protagonistas quando Liberace está no auge da sua popularidade e vende para o exterior, para as suas inúmeras fãs, a ideia de que está prestes a escolher noiva.
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          Os constrangimentos da comunidade gay antes da SIDA são uma coisa, os segredos guardados por essa comunidade sobre um convívio difícil e sujo, feito de manhas e cumplicidades, são outra, o que muito bem o filme distingue do mesmo passo que levanta o véu sobre o mundo do espectáculo americano.
         Com fotografia e montagem do próprio Soderbergh, como ele costuma fazer nos seus trabalhos mais pessoais, é um filme que quebra tabus e conta com grandes interpretações. Depois dele o cineasta anunciou que se retirava do cinema e acabou por regressar. Vamos ver se o que se segue depois de "Sorte à Logan"/"Logan Lucky" (2017) confirma que aqui esteve a mudança. 
            Num filme inteligente e bem feito, sob as vestes do entretenimento fica a crítica implacável de um meio numa determinada época, mas também do próprio sistema.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

As coisas que mudam

    "O Amante de Um Dia"/"L'amant d'un jour" é o último filme de Philippe Garrel (2017), em que ele revisita, obsessivamente, os seus temas favoritos entre homens e mulheres.
   Gilles/Éric Caravaca é professor universitário de filosofia e tem uma relação com uma aluna, Ariane/Louise Chevillotte, quando a sua filha Jeanne/Esther Garrel, da idade dela, regressa a casa depois de ter rompido com o namorado. A partir daí as coisas complicam-se e as relações anteriores sofrem desenvolvimentos e seguem novos caminhos.
    No exigente preto e branco a que nos habituou, o cineasta dedica-se a estabelecer sempre novas variações sobre premissas de base essencialmente idênticas: as coisas que mudam e como mudam, as coisas que duram e como duram entre um par, entre diversos pares. E, qualquer que seja a decisão, ela é sempre discutida.
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    Num filme em que morrer de amor é um simulacro de ameaça e em que o tema central é a fidelidade, no amor e até na guerra, o interesse mantém-se, mesmo pela maneira como ele é construído em imagens e sons, nomeadamente nos diálogos constantes. Desse ponto de vista, da construção fílmica de espaço e tempo, Garrell é um dos cineastas franceses mais interessantes da actualidade.
   Com Jean-Claude Carriére, Caroline Deruas Garrel e Arlette Langmann de novo no argumento com o realizador neste filme de separações circulares, no início e no final, a fotografia é de Renato Berta, a música de Jean-Louis Aubert e a montagem de François Gédigier.
    Desde que Carrière e antes dele Caroline Deruas passaram a colaborar como argumentistas nos seus filmes, ela a partir de "Un été brûlant" (2011) ele a partir do anterior "À Sombra das Mulheres"/"L'ombre des femmes" (2015), sente-se um novo interesse, como que um renascimento de Philippe Garrel, um dos mais importantes cineastas contemporâneos.

sábado, 6 de janeiro de 2018

O mesmo sonho

      "Corpo e Alma"/"Teströl és lelekröl" é o último filme da húngara Ildiko Enyedi, 18 anos depois da sua anterior longa-metragem, "Simon mágus" (1999), e 28 anos depois de "O  Meu Século XX"/Az én XX, századom"(1989), o seu único filme a estrear entre nós.  Despretensioso, confirma e desenvolve a ingenuidade desse filme anterior.
     O chefe dos serviços financeiros de um matadouro, Endre/Morcsányi Géza, tem o mesmo sonho durante o sono que a nova controladora de qualidade, Mária/Alexandra Borbély, que tem uma memória superior, exacta. Ele é muito mais velho do que ela. 
      Com pequenos apontamentos sobre o meio, em que são de assinalar a contratação de um novo jovem trabalhador, um assalto e uma velha mulher da limpeza além da psicóloga e do terapeuta de Mária, o filme centra-se nisto.  
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   Em tom de comédia romântica, "Corpo e Alma" explora a solidão dos protagonistas até ao seu difícil encontro final - se não fosse difícil não se justificava o filme em termos de melodrama
   Com belos animais nos sonhos (veados) a contrastarem com os pobres animais do matadouro, embora trabalhe bem o seu centro narrativo não passa de um amável entretenimento com ostensivo subtexto e implicações óbvias, especialmente valioso em tempos de leveza. No final os protagonistas deixam de sonhar, na floresta o lago fica vazio.
   Tem argumento da própria realizadora, fotografia de Máté Herbai, música de Adam Balazs e montagem de Károly Szalai. O pós-comunismo tem destas coisas na Hungria: tanto Béla Tarr como Ildiko Enyedi. Anoto que a cineasta tem, entretanto, trabalhado para a televisão.

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Começar o ano

     Barbara (1930-1997) foi uma cantora francesa famosa, que viveu o tempo da geração de Georges Brassens e Jacques Brel no topo da canção em língua francesa.
      "Barbara" de Mathieu Amalric (2017) é um filme estranho, com Jeanne Balibar a desdobrar-se entre Brigitte, a actriz que num filme que está a ser rodado interpreta a célebre cantora, e a própria Barbara. O mistério deste filme desprende-se de ser preciso saber quando é a actriz e quando é a cantora que ela interpreta que está em cena, o que nem sempre é fácil.
       Há também algumas imagens de arquivo da própria Barbara, mas em volta da sua personagem e de quem a interpreta no filme dentro do filme gira o essencial deste filme, em que as outras personagens são simples apontamentos - relevo para Amalric como Yves Zand e para Aurore Clément como Esther, a mãe de Brigitte.           
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        Sobre uma cantora que teve um lugar muito especial na sua geração, o filme de Mathieu Amalric destaca-se em especial devido à prodigiosa interpretação de Balibar e consegue construir o mistério e o encanto daquela que evoca. Da parte dele, também actor, há um tour de force notável como realizador, que cria o filme segundo regras próprias não convencionais.
        Mas é Jeanne Balibar quem transporta este filme aos ombros, com grande capacidade interpretativa e também como cantora. Por ela e por Barbara vale a pena vê-lo. Sem decadência nem de uma nem da outra, esta é uma obra depois do vértice e do vórtice, em casas vazias outrora habitadas e em cenários de estúdio, com jardins de Inverno por perto.
         Com argumento de Amalric e Filippe Di Fosco a partir de ideia de Renaud Legrand e Pierre Leon, tem fotografia de Christophe Beaucarne e montagem de François Gédigier este filme que ganhou o prestigiado prémio Louis Delluc em 2017.