quinta-feira, 31 de maio de 2018

Feira do Livro 2018

       Depois de uns dias de descanso merecido, tenciono ir à Feira do Livro de Lisboa nos seus últimos dias. Sem grande premeditação de compras, para passear, ver e comprar o que me apetecer.
       Tenho mesmo assim em vista os livros de José Bragança de Miranda sobre Jorge Molder e de Sérgio Mah sobre Paulo Nozolino, publicados pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, e as Folhas da Cinemateca sobre Paulo Rocha e Fernando Lopes, agora anunciadas. A propósito, manifesto satisfação pela anunciada retrospectiva de António-Pedro Vasconcelos, programada para Junho e Julho pela Cinemateca Portuguesa.
                     
       Vou também comprar os últimos números da Colóquio/Letras, da Granta e da Telhados de Vidro, que ainda não tenho. E devo passar interessado pelos últimos livros editados em português de Antonio Tabucchi e Karl Ove Knausgärd e por livros filosofia.
        Além disso, vou estar atento aos Livros do Dia, o que vos aconselho, porque reservam sempre surpresas. Desejo-vos boa festa do livro e boas compras.

Um belo filme

   "Les nuits blanches du facteur"/"The White Nights of the Postman"/Belye nochi pochtalona Alekseya Tryapitsyna", de Andrei Kontchalovski (2014) é um belo pequeno filme de um cineasta russo de referência que há muito não nos chega.
    Num meio rural em volta do Lago Kenozero, no nordeste da Rússia, um carteiro, Lyokha/Aleksey Tryapitsin, circula entre diversos habitantes, casas e problemas, enquanto o tempo que passa, sem fazer esquecer o passado tem novas exigências.
                      
    Em obediência a uma estratégiia de realização baseada no plano fixo, muito longo apenas no lago, Andrei Kontchalovski consegue, com excelentes enquadramentos e bons intérpretes, muitos deles locais, um belo filme atravessado por personagens pitorescas, pelo sonho (o gato cinzento) e pelas histórias infantis (a feiticeira do lago), que assombram um quotidiano em que o futuro irrompe perto do fim.
    Com argumento do cineasta e Elena Kiseleva, tem fotografia de Alexandr Simonov, música de Eduard Artemev e montagem de Sergey Taraskin. Leão de Prata para a melhor realização no Festival de Veneza em 2014.
     Passou ontem à noite no Arte.

terça-feira, 29 de maio de 2018

A água e o mar

    Quando da apresentação em Cannes do seu último filme, sobre o Papa Francisco, Wim Wenders declarou ao Arte que gosta de trabalhar nos seus filmes a emoção sem distanciamento, o que já sabíamos, lhe fica bem e o seu filme imediatamente anterior, "Submersos"/"Submergence" (2017) confirma.
    Depois de se terem conhecido de perto e de referências ao Hades, o escocês James More/James McAvoy parte para África onde trabalha no apoio ao fornecimento de água às populações mas também com um encargo dos serviços secretos relativamente a terroristas jiadistas, enquanto Danielle Flinders/Alicia Vikander prossegue a sua pesquisa científica submarina sobre as camadas de água do mar no norte do Atlântico. 
    O trabalho os mantém próximos mesmo quando distantes, e o segredo da construção do filme reside nos flash-backs dos protagonistas para o seu encontro no ano anterior, que os mantêm em sintonia e presentes um para o outro e revelam o que aconteceu antes.
                      Wim Wenders Submergence Film Poster
      Em África as coisas revelam-se difíceis para ele, feito prisioneiro, ao mesmo tempo que ela prossegue o seu trabalho no Mar da Groenlândia. Distantes pensam um no outro ao recordarem o seu encontro em França, um ano antes. Aí ele encontra razões para resistir, e mesmo depois do falso fuzilamento, do diálogo com o médico presa de ambiguidades e da tentativa de o converterem ao islão, consegue chamar o apoio aéreo americano. Sem se juntarem fisicamente, no fim permanecem unidos.
    Com um estilo elegante e sóbrio, Wim Wenders consegue aqui mais um bom filme, que desperta a emoção sem grande esforço nem o jogo comum com os estímulos habituais. Tudo é feito em surdina e por sugestão da relação entre os protagonistas, ambos nos limites mas ligados pelo elemento líquido do mar e da água, símbolo da vida.
     Contando com argumento de Erin Dignam a partir de novela de J. M. Legard, "Submersos" tem fotografia de  Benoît Debie, música de Fernando Velásquez que, embora grandiloquente, está bem utilizada, e montagem de Toni Froschhammer. Vamos esperar com confiança pelo filme seguinte do cineasta, o documentário "Papa Francisco: Um Homem de Palavra"/"Pope Francis: A Man of His Word" (2018), que se anuncia para breve.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Um homem do cinema

     Crítico e programador de cinema, António Loja Neves (1953-2018) foi um conhecedor esclarecido e sapiente do cinema, a que dedicou o melhor da sua atenção e do seu esforço.
                     Morreu o jornalista António Loja Neves
    Animador incansável das lidas do cinema entre nós, era conhecido de todos e estimado por todos no meio. Exigente nas suas escolhas, caracterizadas pelo bom gosto, foi sempre uma espécie de "fiel da balança" do cinema em Portugal.
     Caracterizando-se pessoalmente pela simplicidade e cordialidade, a sua partida deixa-me consternado e o seu lugar no cinema em Portugal fica vazio. Partilho com a sua família e os amigos este momento de profunda dor.

Sem palavras

      Façam copy/paste.    
https://www.francetvinfo.fr/faits-divers/paris-l-incroyable-sauvetage-d-un enfant_2774026.html
                      L'homme a escaladé l'immeuble pour venir en aide à l'enfant./ Capture écran @HabibBibou

Uma bela homenagem

     O flme "O Labirinto da Saudade", de Miguel Gonçalves Mendes  (2018), revela-se um belo ensaio em filme sobre Eduardo Lourenço, o famoso ensaísta e filósofo português, com a participação dele próprio.
     Juntando-lhe um belo conjunto de personalidades, Abi Feijó, Lídia Jorge e Gonçalo M. Tavares, José Carlos de Vasconcelos, Pilar Del Rio e Ricardo Araújo Pereira, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Álvaro Siza, procede a uma divagação a partir do livro homónimo do homenageado e em diálogo recolhe palavras dele e dos outros.   
                       Resultado de imagem para o labirinto da saudade filme
      Com recurso aos meios do cinema e da animação bem utilizados, é um filme singelo que presta serviço à cultura portuguesa e aos que lá andam de forma desinibida e feliz, centrando-se numa personalidade fulcral sem recalcar o elemento político, antes sublinhando-o com imagens de época.  
      Conta com argumento do realizador, que já tinha feito em 2010 o documentário "José e Pilar", de Sabrina D. Marques e Diogo S. Figueira, tem um feliz tratamento do espaço, simultaneamente labiríntico e onírico, e uma boa utilização das palavras escritas.
      É sempre melhor quando o objecto da homenagem merecida, que discorre longamente sobre Portugal, Espanha e Brasil e não se esquece de recordar Agostinho da Silva, está vivo e participa. Passou na passada quarta-feira na RTP1 e estreou em sala no dia seguinte.








sábado, 26 de maio de 2018

Carisma

    "Os Dois Amigos"/"Les deux amis" de Louis Garrel (2015), depois de três curtas a sua estreia na realização de longas-metragens, que não tinha visto quando da sua estreia em Portugal, passou esta segunda-feira no Arte e deixou-me uma impressão mitigada.
   Com um dos dois amigos, Clément/Vincent Macaigne, loucamente apaixonado, o outro, Abel/Louis Garrel, tenta convencer Mona/Golshifteh Farahani. Mas entretanto... O realizador/actor inspira-se na literatura francesa num argumento de que é co-autor com Christophe Honoré, nomeadamente em Caprices de Marianne de Alfred de Musset, e na nouvelle vague para um filme suave, que não chega a grandes alturas, a que não aspira, no seu voo ligeiro. 
                     
         A realização e as interpretações têm bons momentos, mas é tudo ainda vago e fluido, sem nada que permita aproximá-lo de Godard ou Philippe Garrel, o pai, suas referências explícita, para além de certos pontos e traços. Cita bem La Fontaine, em Parole de Socrate : "Ami, rien n’est plus commun que le nom, rien n’est plus rare que la chose.", e o filme é mesmo assim feito com brio.
        Com fotografia de Claire Mathon, música de Philippe Sarde e montagem de Joëlle Hache, a sua maior qualidade é não abandonar um tom de ironia e leveza, o que o marca e o torna conseguido. 
        Está bem para começar na longa-metragem, espera-se mais e melhor na continuação de um actor que não perde na realização o seu carisma pessoal..

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Gigantes

    Júlio Pomar (1926-2018) foi um pintor e artista plástico - desenho, gravura, cerâmica, escultura - fundamental do século XX português. Começou com o neo-realismo, de que quando foi para Paris nos anos 50 se afastou para a arte moderna, em que foi figura central. Referência também do ponto de vista político, mesmo depois da sua morte a sua obra e o seu legado continuam a desafiar-nos. Continuem a visitá-lo no atelier-museu com o seu nome em Lisboa.
                                      A leiloeira adiantou que "já há alguns interessados na aquisição" da tela
      Philip Roth (1933-2018) foi o maior nome da literatura norte-americana contemporânea, com uma obra de reflexão inquieta e profunda sobre o seu país e o seu tempo. É incompreensível e imperdoável que, tendo recebido as grandes distinções literárias do seu país, não lhe tenha sido atribuído o Nobel da Literatura. Para perceber em profundidade a América do nosso tempo e conhecer o melhor da literatura americana, de que foi um dos nomes mais importantes, é preciso ler os seus livros, editados em português.
                      Philip Roth: 'Writing for me was a feat of self-preservation'
     Foi uma honra ter vivido no tempo destes dois gigantes, que marcaram a arte portuguesa e a literatura americana, respectivamente, para além de quaisquer fronteiras. Cada um deles provou que é no espaço da criação pessoal própria na sua área de eleição que cada um de nós atinge os limites do humano que o justificam. O que é tanto mais importante quanto as capacidades pessoais são maiores. Aqui me despeço de ambos, os recordo e os aconselho. 

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Distinção

    António Arnaud (1936-2018) foi um homem de grande qualidade e um político distinto, responsável como governante pela criação do Serviço Nacional de Saúde, que todos, em especial os mais desfavorecidos, lhe devemos e a que o seu nome ficou indossoluvelmente ligado.
                      António Arnaut está a trabalhar em nova lei de carreiras para o Sistema Nacional de Saúde
     Sem paciência para a pequena querela ou a intriga política nem feitio para o carreirismo, mesmo depois de se retirar da vida política activa permaneceu como referência democrática e ética, que continuará a ser.
   Homem da grandes causas e de grandes sentimentos, não se vergou ao oportunístico compromisso político, permanecendo uma figura exemplar e uma voz crítica de respeito e respeitada. Aqui o recordo na sua partida e aponto como exemplo a seguir pelos mais novos, que devem conhecer o seu pensamento e o seu trabalho, receber o seu legado cívico e político prosseguindo-o.

A pessoa certa

    "Madame Hyde", de Serge Bozon (2017), proporciona a Isabelle Huppert mais uma excelente interpretação no papel de Madame Géquil, professora que só ensina teoria mas nas suas experiências pessoais se carrega de electricidade e assim se torna mortal Madame Hyde.
    Muito bem ambientado num liceu do subúrbio e com boas interpretações, o filme levanta a questão das relações professor-alunos enquanto acompanha a evolução, primeiro, a transformação, depois, da protagonista, que tem um aluno preferido que tenta instruir, Malik/Adda Senani. O contacto dela com os alunos passa de difícil a exemplar, para espanto de todos. 
     Com bons e sóbrios efeitos especiais, é um filme que contrasta o extraordinário com o comum e trata a história clássica original de Robert Louis Stevenson de forma diferente e inspirada. Serge Bozon volta a dar boa conta de si, nomeadamente no início e no surgimento de Madame Hyde.
                                      Madame Hyde
    Malik vem a considerar a sua professora como "a pessoa certa" e, de facto, às vezes as pessoas certas têm alguma coisa de especial que nos faz aceder ao que elas dizem, o que naquele caso é fundamental para passar a comunicação.
     A narrativa fascinante do ser que se duplica deu já origem a vários filmes notáveis no cinema, numa genealogia em que destaco aqui o filme de Rouben Mamoulian de 1931, com Frederic March, o de Victor Fleming de 1941, com Spencer Tracy, o de Jean Renoir, de 1959, com Jean-Louis Barrault, o de Jerry Lewis de 1963 e o de Stephan Frears de 1996, com Julia Roberts e John Malkovich, a que este se vem agora juntar com uma magnífica Isabelle Huppert..
     Roman Duris como o reitor e José Garcia como Pierre Géquil cumprem bem. A fotografia é de Céline Bozon, a música de Benjamin Esdraffo e a montagem de François Quiqueré na quinta longa-metragem do realizador, co-argumentista com Axelle Ropert. O cinema francês continua a reservar-nos belas surpresas.    

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Memória poética

   "Coração de Cão"/"Heart of a Dog", da cantora e performer Laurie Anderson (2015), é um exemplar filme independente americano ao jeito do underground de New York feito pela viúva de Lou Reed (1942-2013) em memória dele.
    Com grande imaginação e criatividade, a história da cadela torna-se história pessoal, cultural e universal, com as imagens subjectivas próprias, os olhares para a câmara e o comentário pessoal em off, que recorre a Wittgenstein, Kierkegaard, David Forster Wallace e ao livro tibetano dos mortos, e o filme torna-se ensaio na aliança entre imagem do cinema e pensamento.
                       Run Extended! Laurie Anderson’s “Heart Of A Dog” Now Playing Until January 13th
  Não tinha visto quando estreou em Portugal e vi agora quando passou no Arte, em La lucarne, na noite da passada segunda-feira. Apreciei imenso tudo aquilo que a realizadora consegue fazer em cinema, com o cinema, sem abdicar da sua criação pessoal, antes com ela.
 Contando com uma referência política detida ao armazenamento de dados pessoais pela segurança interna do governo americano depois do 11 de Setembro de 2001, este um filme sensível e inteligente sobre o mundo em que vivemos, sem complacência nem receios, nem mesmo no cruzamento entre o amor e a morte: "toda a história de amor é uma história de fantasmas".
  Com largo recurso à animação e às palavras escritas, "Coração de Cão" de Laurie Anderson é um belo filme moderno, vivo e sentido. Recomendo vivamente.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Contra a evidência

   "The Ottoman Lieutenant", de Joseph Ruben (2017), é um bom filme deste cineasta menos conhecido da Nova Hollywood dos anos 70 e que eu saiba não estreou comercialmente em Portugal. Passou ontem à noite num dos canais TVCine sob o título "Amor em Tempos de Guerra".
    Situado em 1914, no início da Guerra Mundial, na Anatólia, parte de um hospital de campanha cristão americano para onde vai como enfermeira voluntária, contra a vontade dos pais, a protagonista de 23 anos, Lille/Hera Holmar, depois da morte do seu irmão, que queria ser médico. Logo em Istambul trava conhecimento com o tenente Ismail/Michiel Huisman, que tem de lidar como oficial com uma situação complexa que envolve arménios divididos entre os que ficam e os que vão ao encontro das tropas russas.
                      https://i0.wp.com/www.kitapsozler.com/wp-content/uploads/2017/04/osmanli-subayi-the-ottoman-lieutenant.jpg
      Contra a evidência que a levaria a escolher o médico americano, Jude/Josh Hartnett, ela apaixona-se pelo tenente otomano que acaba por morrer depois de uma missão muito arriscada, na sequência da ajuda que tenta prestar a um grupo de arménios presos.
        Com uma realização muito boa, a inclusão de excertos de actualidades da época, filmado em belíssimos cenários naturais na Turquia e com actores muito bons, justos nos papéis respectivos - entre os quais Ben Kingsley como Woodruff, o fundador do hospital -, apresenta de forma simples mas muito bem o confronto de culturas entre cristãos e muçulmanos e uma situação que havia de conduzir ao genocídio arménio no ano seguinte.
      Tem argumento  de Jeff Stockwell, fotografia de Daniel Aranyó, música de Geoof Zanelli e montagem de Nick Moore e Dennis Virkler. Como se fosse um pequeno filme da série B, que pelo seu orçamento talvez seja, passa quase despercebido mas merece ser visto pela limpidez e o brio com que é feito. E é apenas a terceira longa-metragem de Joseph Ruben desde o início do século, depois de "Misteriosa Obsessão"/"The Forrgotten" (2004) e "Presa na Escuridão"/"Penthouse North" (2013).

segunda-feira, 14 de maio de 2018

O cão zero

      Primeira longa-metragem de Wes Anderson depois de "Grand Budapest Hotel" (2014), o novo "Ilha dos Cães"/"Isle of Dogs" (2018) é um filme de animação em stop-motion que, com construção complexa - os recuos no tempo - apresenta uma fábula moralista enfática.
     Spots/voz de Liev Schreiber, o cão zero que guardava o pequeno Atari/voz de Koyu Rankin a mando do tio, Mayor Kobayashi/voz de Kinuzahi Nomura, e desaparecera, depois de muitos esforços e reviravoltas caninas é finalmentte encontrado pelos seus pares e com os seus dentes-projécteis vai ser fulcral para a possibilidade de distribuição do antídoto da gripe dos cães e a deposição do ditador.
                     
    Com uma jovem estudante americana muito bem colocada, Tracey Walker/voz de Greta Gerwig, aprecia-se neste filme a matilha de cães isolados na "ilha do lixo" para que foram deportados e sobretudo a arte de Wes Anderson, também co-produtor e argumentista a partir de história sua com Roman Coppola, Jason Schwartzman e Kinuichi Nomura,, num rumo que o aproxima mais uma vez de Tim Burton.
    A fotografia é de Tristan Oliver, a música de Alexandre Desplat e a supervisão da montagem de Andrew Weisblum num filme poético e bem humorado. As vozes contam-se entre a nata dos actores americanos de hoje, o que é significativo. É melhor tecnicamente, como técnica de animação stop-motion do que como filme, especialmente dedicado ao mais novos, sem deslumbrar mas sem deslustrar.
   Agora nada de confusões, pois o cineasta é um autor de corpo inteiro no actual cinema americano, com uma obra apreciável e coerente atrás de si, que aqui continua um percurso criativo pessoal interessante e de cuja inventiva há ainda muito a esperar.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

O cheiro da vida

    "24 Frames", o filme póstumo (2017) de Abbas Kiarostami, célebre cineasta iraniano e cidadão do mundo, passou esta semana duas vezes na Cinemateca Portuguesa. Consegui vê-lo na segunda sessão.
    Partindo de imagens da pintura ou da fotografia, ele, que foi também um grande fotógrafo, constrói um filme em filigrana sobre a vida natural, animal, vegetal e mineral, com a intervenção dos quatro elementos, terra, ar, água e fogo, este de forma discreta - o fumo no primeiro frame, os escapes mais adiante - com uma precisão visual estarrecedora.
    Utilizando sempre o plano fixo, ele começa com a exploração do terço inferior da imagem e caminha para o seu terço superior no final, com vários frames que exploram o centro real e virtual, geométrico de cada plano, desenhado pelas próprias configurações da natureza com animais no meio. A partir do esquema extremo de "Five Dedicated to Ozu" (2003), com duração mitigada: 4 minutos e meio cada plano.                     
                     
          Num filme que tinha planeado mais extenso e já não pôde concluir - foi finalizado pelo seu filho Ahmad Kiarostami -, ele socorre-se da natureza, que tantas vezes o inspirou na fotografia e no cinema, para imprimir movimento ao que antes fora fixo ao dar-lhe uma outra duração temporal.
         Transbordando o seu génio criativo, Abbas Karostami deixa-nos como última obra um filme exacta e precioso em que o homem só surge esporadicamente nos frames 14 e 15 e em dois dos últimos apenas em ruídos fora de campo - soberba a motosserra e consequência. Mas não é ele o único predador da natureza, que comporta a sua predação própria.
         Quase sem humanos e quase contra eles, sem diálogos este um filme vitalista sobre a vida trabalhado em filigrana, filtrado pela objectiva de um cineasta superior que trabalha geometricamente o espaço e a profundidade de campo mediante quadros dentro do quadro, um grande criador de quem continuamos todos a sentir a falta. 
         A preto e branco e a cores, com ruídos e por vezes com música inesperada, com cenários naturais e artificiais recortados de imagens suas, até com animação e efeitos digitais, com encantamento e espírito crítico esta a despedida sentida de um génio do cinema, que fecha sobre imagens do cinema num ecrã de computador.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Um cheiro de morte

   "Zama" de Lucrecia Martel (2017) é o mais recente filme desta grande cineasta argentina, um filme moderno como os seus anteriores e com uma excelente realização, com classe, não apenas qualidade.
   A partir do romance homónimo do também argentino Antonio Di Benedetto, obra-prima da literatura latino-americana, acompanha o protagonista, Don Diego de Zama/Daniel Giménez Cacho, nas terras do fim do mundo a que foi parar como corregedor colonial, que a encantadora Luciana Piñares de Lusugo/Lola Dueñas não consegue afastar do desejo de ser deslocado para outro lugar.
   Alucinado com a renitência do governador espanhol/Daniel Veronese em escrever ao rei de Espanha, depois de ter cedido no relatório exigido aceita dar caça ao perseguido Vicuña Porto/Matheus Nachtergaele, um brasileiro que não vence e lhe decepa os antebraços.      
                     
   Com a protecção ao escritor Manuel Fernandez/Nahuel Cano bem resolvida, o filme de Lucrecia Martel desenrola-se serenamente entre as suas diferentes peripécias, sem se tomar como filme de acção, antes contemplando em planos longos a partir de uma câmara fixa personagens perdidas numa terra belíssima mas agreste e desértica, estranha, onde Diego de Zama apodrece.
   Muito bem resolvido em termos visuais por uma excelente fotografia do português Rui Poças, com utilização sistemática dos vazios do espaço e o cheiro de morte que se desprende dos membros decepados, este um excelente filme que termina, como os anteriores da cineasta, sobre águas paradas que o protagonista com os antebraços decepados atravessa no fundo de um barco.
   Construído em exigentes planos fixos e com desfocagens calculadas ao fundo, este filme muito bem iluminado, enquadrado e realizado por Lucrecia Martel confirma que o seu nome não é convocado em vão como dos melhores do cinema contemporâneo.