domingo, 29 de julho de 2018

Odiosos e poderosos

    O mais recente filme do austríaco Michael Haneke, "Happy End" (2017), tem também argumento seu e é mais um grande filme deste realizador de referência, com lugar de destaque no cinema contemporâneo.
   O segredo do filme é desenrolar-se em Calais, no noroeste de França, onde como se sabe se aglomeram em condições miseráveis refugiados que tentam rumar a Inglaterra. Pois é aí que vivem os Laurent, família abastada e desesperada, com o seu patriarca, Georges/Jean-Louis Trintignant, a filha Anne/Isabelle Huppert e o filho Thomas/Mathieu Kassowitz, a filha do primeiro casamento dele, Eve/Fantine Harduin, e o filho do primeiro casamento dela, Pierre/Franz Rogowski.
    A teia que se tece entre eles é dramática e odiosa, com o mais velho, senil, a procurar a morte por todos os meios, Anne ocupada com os negócios da empresa familiar, com o filho e o noivo, Lawrence Bradshaw/Toby Jones, Thomas em transição do seu segundo casamento para uma nova amante, Eve perplexa e Pierre revoltado. 
                      
     A realidade mais do que a ideia de morte que atravessa todo o filme é a de uma morte auto-inflingida, por suicídio ou eutanásia, e em cada personagem se percebe um desespero agudo em alheamento total em relação ao que acontece ao seu lado, na "selva de Calais" e Pierre traz para o segundo casamento da mãe. Pela televisão chegam notícias de "cenas da luta de classes" do outro lado do Canal da Mancha.
      Sufoca-se neste filme de horrores, que segundo André Dias no nº 2 da nova revista Electra "...é mais seu prenúncio que denúncia, é o cinema de extrema-direita; mesmo que esta nele não se reveja" ("A sobrevivência da abjecção", páginas 166-171) num extravasar de abjecção consistente com a obra anterior do cineasta. Na sessão em que assisti ao filme soou da assistência um grito de indignação durante a cena final.
     Com fotografia de Christian Berger e montagem de  Monika Willi, sem música a não ser diegética este um filme que se desdobra em ruídos, silêncios e palavras, sem dar tréguas ao espectador e sem as permitir às personagens.
      Absolutamente indispensável de ver com os olhos bem abertos, lembrando "Os Malditos"/"La caduta degli dei"/"Götterdämmerung", de Luchino Visconti (1969). Para que o prenúncio funcione como aviso.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

O lugar onde

     "The Place" de Paolo Genovese (2017) é um filme concentrado e denso passado no mesmo local, um café com aquele nome, em volta de um homem, Valerio Mastandrea, sentado a uma mesa, que vai recebendo sucessivos indivíduos.
      Cada um deles tem um pedido a fazer que, para ser obtido, tem de ter como contrapartida um determinado comportamento, em geral violento, de cada qual. A narrativa divide-se em diversos casos que se vão interligando à volta do polícia, da criança de seis anos, do cego e da velhinha.
                      
     Sem sair do seu local único, o filme evolui à medida das sucessivas visitas das suas personagens ao homem sentado e das evoluções de cada caso que lhe contam e de que ele pede pormenores. E cada caso é diferente e é sempre narrado só verbalmente, sem nunca ser mostrado.
       Ao ritmo dos encontros e do que é dito e narrado, "The Place" estende as malhas de que se tece narrativamente, com escolhas sucessivas de diferentes personagens contra o acordado. No final, cansado, o homem acaba por trocar de lugar com a empregada do café sem que seja nunca revelada a sua própria identidade.
      Com argumento do realizador e Isabella Aguilaar sobre história de Christopher Kubasik, tem fotografia de Fabrizio Lucci, música de Maurizio Filardo e montagem de Consuelo Catucci. Compenetrado mas expressivo, Valerio Mastandrea está especialmente bem entre os intérpretes, num bom filme cujo maior limite reside no carácter estereotipado das diferentes personagens perante um interlocutor enigmático e omnipotente. Mas percebe-se o potencial do jogo.

sábado, 21 de julho de 2018

Parricida

    Depois de "Home - Lar doce lar/"Home" (2008) e de "Irmã"/"L'enfant d'en haut" (2012), "Journal de ma tête" (2017) é a terceira longa-metragem de ficção de Ursula Meier, desta vez feita para a televisão e inspirada em factos reais passados na Suíça, e mais um excelente filme.
   A cineasta e co-argumentista diz-se inspirada pelo pintor contemporâneo belga Michaël Borremans na criação visual deste filme muito trabalhado cinematograficamente, denso, duro e dramático.
                       Kacey Mottet Klein dans "Journal de ma tête", un film d'Ursula Meier issu de la collection "Ondes de choc".
   Com argumento de Antoine Jaccoud e da realizadora, parte do diário escrito por Benjamin Feller/Kacey Mottet Klein, enviado por ele pelo correio à sua professora de francês, Esther Fontanel/Fanny Ardent, antes de assassinar o pai e a mãe.
    Muito bem desenvolvido até localizar o lugar vazio na sala de aula, o filme privilegia no seu início os planos de pormenor que são menos sistemáticos a partir do inquérito judicial conduzido pelo juiz Mathieu/Jean Philippe Écoffey, que vem justificar a criação de um terceiro ponto de vista.
                                       Une scène de "Journal de ma tête", un film d'Ursula Meier issu de la collection "Ondes de choc".
     Esther culpa-se perante si própria e perante o juiz de eventualmente ter exercido influência nefasta sobre o seu aluno pelo seu método de ensino e por não ter prestado a devida atenção ao que ele escrevia. Muito bem trabalhada em termos cinematográficos, a memória dele dos seus actos desperta violentamente na prisão. E Benjamin, depois de sair em liberdade seis anos passados sobre o seu julgamento, parte com ela, com quem passara já um fim de semana de licença.
     Num filme relativamente curto, ressaltam as excelentes interpretações com destaque para os dois protagonistas, a fotografia é de Jeanne Lapoirie, a montagem de Nelly Quettier e a música de Keegan De Witt com excertos de música clássica muito bem escolhidos e utilizados. 
     Sem ser seguido à letra, é patente o modelo foucaultiano de "Moi, Pierre Rivière..." (1973), que esteve na origem do admirável filme de René Allio em 1976. Parte da mini-série "Ondes de choc", passou na noite de ontem no Arte.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Antes do centenário

   Uma das mais importantes e influentes vanguardas dos anos 20 do século XX no cinema, o expressionismo alemão considera-se inaugurado por "O Gabinete do Dr. Caligari"/"Das Cabinet des Dr. Caligari", de Robert Wiene (1919), com argumento de Carl Mayer e Hans Janowitz. Considerado um marco da história do cinema, com mais filmes do mesmo realizador, típico embora não terá sido o mais importante do expressionismo.
  De facto, no mesmo ano de 1919 iniciam-se as obras de Fritz Lang e Friedrich W Murnau: "As Aranhas"/"Die Spinnen" (1ª parte), do primeiro, "O Rapaz de Azul"/"Der Knabe in Blau (Der Todessmaragd)" e "Satanás"/"Satanas", do segundo. Nomes maiores de toda a história do cinema com filmes de excepcional qualidade, obras fundamentais e uma extraordinária repercussão internacional. Em 1917 tinha sido criada a UFA, Universum Film Aktiengesellschaft, tornando possível uma produção alemã dos filmes alemães, anteriormente dominada pela Nordisk.
   Com influência do teatro alemão, nomeadamente de Max Reinhardt, que em 2013 dirigiu o filme "A Ilha dos Bem-Aventurados"/"Die Insel der Seeligen, o expressionismo alemão foi a expressão no cinema de um movimento mais largo, proveniente da pintura e das outras artes, nomeadamente das pesquisas de Die Brücke, fundada em 1905 por Ernst Ludwig Kirchner, e do Die Blaue Reiter, fundado em 1912 por Vassily Kandinsky, Paul Klee e Franz Marc. Teve precursores em "O Estudante de Praga"/"Der student von Prag", do dinamarquês Stellen Rye (2013), no primeiro "Golem" de Paul Wegener e Henrik Galeen (1914) - haveria um segundo, "Golem"/"Der Golem - Wie er in die Welt kam", de Wegener e Carl Boese (1920) - e em "Homunculos", de Otto Rippert (2016).
    No seu seio é comum distinguir o caligarismo, o kammerspiel e o expressionismo propriamente dito. O primeiro parte do filme inicial e como ele explora o claro-escuro, o contraste de luz e sombras desenhados nos cenários distorcidos em que, monstruosas, as personagens se inscrevem. Com ele Henri Langlois identificava todo o movimento. O segundo foi um cinema de câmara, no duplo sentido de espaços fechados e de movimentos da câmara-aparelho de filmar e teve o seu expoente em Murnau com "O Último dos Homens"/"Der Letze Mann" (1924), com argumento de Carl Mayer.        
                       Image result for nosferatu 1922
      Muito diversificado, ter-se-á caracterizado pelo espiritual não-psicológico numa vida não-orgânica das coisas, decorrente da intensificação da luz e dos seus contrastes, com o cone a sustituir o círculo e a esfera, ângulos e triângulos pontiagudos em vez de linhas curvas ou rectangulares.
     Em "A Imagem-Movmento", Gilles Deleuze caracteriza-o mais pela alternância - de claro/escuro, de luz/sombra - contra a alternativa do espírito da abstração lírica. Como uma oposição infinita, como uma linha perpetuamente quebrada, com subordinação do extensivo ao intensivo, em que os contrastes se atenuam e surge mesmo o primeiro colorismo no cinema.  Um mundo em que os autómatos, os robots e os fantoches se tornam sonâmbulos, zombies ou golems que exprimem uma vida não-orgânica.
       Destacam-se "O Doutor Mabuse"/"Doktor Mabuse Der Spieler" e "A Morte Cansada"/"Der Müde Tod" (1921) e "Os Nibelungos"/"Die Niebelungen" (1924), de Lang, "Nosferatu, o Vampiro"/"Nosferatu, Eine Simphonie des Grauens" (1922), "Tartufo"/"Tartüff" (1925) e "Fausto"/"Faust" (1926) de Murnau, "O Gabinete das Figuras de Cera"/"Waschfigurenkabinett", de Paul Leni (1924). Robert Wiene faz "Genuine" (1920), "Raskolnikov" (1923) e "As Mãos de Orlac"/"Orlacs Hände" (1924), Hans Kobus "Torgus" (1920), Karl Heinz Martin "Von Morgens bis Mitternachts" (1920), Arthur Robison "Schatten" (1922), E. A. Dupont "Baruck" (1923) e "Variedades"/"Variete" (1925) e o romeno Lupu Pick faz "Rail"/"Scherben" (1922) e "A Noite de São Silvestre"/"Sylvester" (1923), com argumento de Carl Mayer, dois filmes que aliam kammerspiel e expressionismo.
       Além de argumentistas como Carl Mayer, colaborador habitual de Murnau, são de referir os cenografistas Heinz Poelzig, Robert Herlth ou Walter Röhrig, directores de fotografia como Fritz Arno Wagner e Karl Freund, além de actores como Conrad Weidt, Lya De Putti e Emil Jannings entre muitos outros..
                     
     Pessoalmente, contra Deleuze considero o expressionismo alemão no cinema uma verdadeira vanguarda mas, por ter estado muito ligado ao romantismo e à filosofia alemã do século XIX - embora reconheça com Kracauer que ele antecipou os fantasmas que haviam de surgir na Alemanha nos anos 30 - tenho dificuldade em considerá-lo plenamente moderno por ter prolongado a  cultura alemã de oitocentos.
   Cumprido em 1926, sucederam-lhe ainda alguns filmes, nomeadamente de Lang, como "Metropolis" (1927), "Matou"/"M" (1931) e "O Testamento do Dr. Mabuse"/"Das Testament des Dr. Mabuse" (1933), mas a partir de então surgiu na Alemanha um cinema mais realista, ligado à crise económica e social do país, em que se destacou G. W. Pabst, Walter Ruttman no documentário, no que terá correspondido no cinema à nova objectividade. E tinha surgido também em 1922 a animação de sombras de Lotte Reiniger.
     Na América em meados dos anos 20, Murnau aí dirigiu filmes míticos, como "Aurora"/"Sunrise" (1927), enquanto Lang saiu da Alemanha depois de convidado para dirigir o cinema alemão em 1933, foi primeiro para Paris, depois para os Estados Unidos onde desenvolveu uma segunda parte muito profícua da sua obra durante 20 anos, em que a marca do expressionismo esteve menos presente que na do Murnau americano.
   Com os seus contrastes, o expresionismo alemão influenciou nomeadamente Josef von Sternberg, Orson Welles (a iluminação ao fundo do cenário) e o filme negro. Lang e Murnau terão sido os seus nomes fundamentais embora o expressionismo típico tenha passado mais por outros. E deviam estar há muito editadas em português as excepcionais monografias de Lotte H. Eisner sobre os dois, o que, com o conhecimento dos filmes deles, poderia contribuir para evitar juízos precipitados.

sábado, 14 de julho de 2018

Atravessar o deserto

   "O Meu Amigo Pete"/"Lean on Pete", de Andrew Haigh (2017), é a quarta longa-metragem deste realizador inglês, a seguir a "45 Anos"/"45 Years" (2015), e deixou-me uma excelente impressão.
   Com argumento do próprio realizador baseado em novela de Willy Vlantin, acompanha um rapaz de quinze anos, Charley/Charlie Plummer, desde a casa paterna, Ray/Travis Fimmel, em Portland, Oregon, até à casa da tia, Margy/Alison Elliott em Laramie, Wyoming, num percurso inesperado durante o qual ele encontra Del/Steve Buscemi, criador de cavalos de corrida de curta extensão, e a sua jóckey Bonnie/Chloë Savigny.
   Na companhia destes - ele uma personagem característica e saborosa, que detesta o shopping e os computadores - Charley afeiçoa-se a um cavalo perdedor, com o nome de Lean on Pete (em português "inclinação por Pete"), com o qual acaba por fugir para evitar o seu envio para a morte no México. Entretanto, tem a notícia da morte do pai, passa a procurar a tia e o seu afecto pelo cavalo torna-se maior. Quando se encontra só com ele em pleno deserto americano conversa com ele ("quem desespera dos homens...", escrevia o outro), até ao acidente de automóvel fatal.
                      
     Quer isto dizer que a viagem de Charley é de iniciação, levando-o do caos paterno para a luz de Laramie - a tia Margy trabalha na biblioteca pública e ele aí poderá prosseguir os seus estudos. Atrás de si fica a memória de bons americanos que o ajudaram, da natureza envolvente, diurna e nocturna, e sobretudo do seu amigo Lean on Pete.
    Com uma excelente realização, atenta às personagens e aos cenários, com particular relevo para a natureza no seu lado cósmico, "O Meu Amigo Pete" tem excelente interpretação de Charlie Plummer muito bem acompanhado em especial por Steve Buscemi, fotografia de Magnus Nordenhof Jonck, música de James Edward Barker e montagem de Jonathan Alberts. Apanha o sopro de um jovem perdido entre humanos e na natureza, que mesmo depois da travessia do deserto e da morte de Lean on Pete continua a sonhar com este.
     Foi considerado pelo The New York Times como um dos dez melhores filmes do ano até agora, primeiros seis meses de 2018. Não tem nada a ver com o cinema que se faz actualmente na América salvo na área do cinema independente e por isso surpreende ainda mais. E Andrew Haigh é decididamente um nome a reter e acompanhar no cinema actual.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

A vontade e o dever

    "La reine garçon"/"The Girl King" é um filme do finlandês Mika Kauismäki (2015) sobre a famosa rainha sueca do  século XVII, Cristina, que já tinha sido tratada no cinema nos anos 30 por Rouben Mamoulian em "A Rainha Cristina"/"Queen Christina", com Greta Garbo (1933).
    Agora a cores, o irmão mais velho de Aki Kaurismäki realiza um excelente filme de produção internacional, em que Cristina é interpretada por Malin Buska de forma superior. Presa de amores inconvenientes por uma aia, a Condessa Ebba Sparre/Sarah Gaden, que ela domina, é pressionada pelo Chanceler Axel Oxenstiema/Michael Nykvist e pela mãe, Maria Eleanora de Brandenburg/Martine Gedeck, a ter um herdeiro e pelo primeiro a deixar a fé luterana em favor da igreja católica romana.
                                       The Girl King
     Rainha ilustrada, ela chama para junto de si o grande filósofo europeu do seu tempo, René Descartes/Patrick Bauchau, para a esclarecer sobre as paixões, o que apresenta o maior interesse tanto mais quanto ele vem a ser eliminado pela corte. Debatendo-se entre a vontade e o dever, a protagonista acaba por adoptar Karl Gustav Kasimir/François Arnaud como herdeiro e renunciar. Virgem.
      Composto de planos pictóricos de grande beleza, o filme tem fotografia de Guy Dufaux, música de Anssi Tikanmäki e montagem de Hans Funck. Somos informados no final de que a Rainha Cristina está sepultada em Roma, ao lado dos papas.
     Com elegância e bom gosto, o mais velho dos Kaurismäki oferece aqui um filme do maior interesse, apresentado esta semana no Arte. Os filmes dele não nos chegam e deviam chegar, pelo que se justifica uma recuperação da sua obra, como a de Aki iniciada há quatro décadas, entre nós, quanto mais não seja pela Cinemateca Portuguesa.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Intrigante

     "O Boneco de Neve"/"The Snowman", do sueco Tomas Alfredson (2017), é um filme policial baseado em romance de Jo Nesbo, um escritor norueguês extensamente publicado em Portugal. Um bom filme, seco e bem construído.
    Um caso de Harry Hole/Michael Fassbender, envolvido com a ex-mulher, Rakel/Charlotte Gainsbourg, e o actual marido dela, Mathias/Jonas Karlsson, com mulheres assassinadas misteriosamente e um boneco de neve associado a cada crime.
                      snowman killer and michael fassbender
   Depois das inevitáveis reviravoltas e dos habituais falsos suspeitos, o final acaba por se juntar ao início: uma paternidade não querida e o afogamento da mãe do criminoso na infância dele, por onde o filme tinha começado. Poderia ser um filme melhor se as questões envolvidas apresentassem maior originalidade, mas estas questões de pais e filhos são muito correntes nos romances policiais, clássicos e modernos.
  Sem nada de especial acrescentar - há apenas a nova colega de Harry Hole, Katrina Bratt/Rebecca Ferguson, filha de um ex-detective, Rafto/Val Kilmer - também não deslustra no âmbito do policial do Norte da Europa. Hitchcock chamava-lhe "whodonit" e evitava-o, mas hoje em dia, com a preocupação de mostrar e explicar tudo, é o que está a dar.
   Tem argumento de Peter Straughan, Hossein Amini e Soren Sveistrup. Os géneros caracterizam-se no cinema pela repetição do mesmo esquema, raramente pela novidade. E depois de "Deixa-me entrar"/"Lät den räten komma in" (2008) e "A Toupeira"/"Tinker Tailor Soldier Spy" baseado em John le Carré (2011), Tomas Alfredson confirma aqui ser um bom cineasta.   

Outra rainha

   Depois de "A Rainha"/"The Queen" (2006), o veterano Stephen Freaars não deixou os seus créditos por mão alheias e realizou "Victoria & Abdul" (2017), sobre os últimos dias de vida da famosa e longeva monarca.
    Trata-se da amizade entre a Rainha Vitória/Judi Dench e um indiano, Abdul Karim/Ali Fazal, que se desloca a Londres para o jubileu dela, quando a Índia era a "jóia da coroa" britânica. Uma tal amizade não é bem vista pelo herdeiro da coroa, pelo primeiro-ministro e pela corte, até porque ele lhe mente sobre o seu passado, como eles descobrem.      
                      
    Apesar disso a rainha gosta Abdul e da mulher/Suck Ojla, mandada vir da Índia, tudo perdoa a quem foi seu professor e amigo, e ele fica junto dela até ao fim. O interesse que o filme reveste reside em esta amizade estranha ter sido revelada recentemente, em 2010, em termos históricos, pelo que ele tem por base factos reais.
    Sem nada de especialmente importante em termos cinematográficos, tem argumento de Lee Hal baseado em livro de Shrabani Basu, realização sóbria e justa de Frears, em que se destaca a morte da rainha, grandes cenários e guarda-roupa e grande interpretação de Judi Dench. A fotografia é de Danny Cohen, a música de Thomas Newman e a montagem de Melanie Oliver.
    É um filme que aconselho pelo carácter insólito da narrativa e como curiosidade sobre uma personalidade histórica importante, que sem este filme não atingiria a visibilidade que agora com ele adquire. Não sendo um grande filme a não ser em termos de produção, tem suficientes motivos de interesse entre os quais ser mais um filme de um dos mais destacados cineastas britânicos da actualidade a trabalhar em Hollywood.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O futuro é agora

      "Fahrenheit 451", do americano Ramin Bahrani (2018), não é um remake do filme de 1966 de François Truffaut "Grau de Destruição"/"Fahrenheit 451", mas um novo filme baseado na mesma novela de Ray Bradbury.
      Alheio ao moralismo beato do então jovem cineasta francês, remete para um futuro dominado pelo Capitão Beatty/Michael Shannon, que obriga os seus servos bombeiros, entre os quais Guy Montag/Michael B. Jordan, Amon Davis em criança, a pegarem fogo a todos os livros existentes. Contra os que pensam de maneira diferente, "enguias", tratados como "terroristas". Na América.
      Clarisse/Sofia Boutella, agente dupla, trabalha para o lado dominante como denunciante mas pertence ao grupo daqueles que decoraram livros para os fazerem passar para o futuro. Com ela Guy vai aproximar-se do grupo resistente, uma sociedade secreta com as suas regras, tomar consciência e rebelar-se, até ao fim. 
                       plano critico fahrenheit 451 plano critico 2018 HBO
       É muito bom que este filme de ficção-científica tenha sido feito este ano por um americano, aliás bem feito embora sem nada de especialmente notável que não seja uma realização escorreita, tipo Série B, e a narrativa, bem esgalhada e com boas interpretações. De facto, é agora que, sob a actual administração, todos os perigos, desta e de outra natureza, pairam sobre a América e sobre o mundo, com réplicas muito perigosas na Europa. Quem faz o que eles fazem também queima livros, já o fez ou vai fazer, sem que isso seja sequer o pior de que são capazes.
       Dizem os ingénuos, do Arte e outros, que os anos 30 do século XX na Europa não se repetem mas eles estão a repetir-se sob a designação inócua de "populismos", com apoio crescente das populações insatisfeitas com as hesitações da direita e a tibieza da esquerda tradicionais, que perdem apoio em favor deles como então.
      O filme tem argumento de Amir Naderi e adaptação de Ramin Bahrani, fotografia de Kramer Morgenthau e música de Antony Partos e Matteo Zingales. As referências deste filme de Ramin Bahrani aos Estados Unidos da América são expressas e não enganam. Estejam atentos e intervenham, pois, fértil, o ovo da serpente já rebentou e a estirpe é a mesma. É preciso que aqueles que rejeitam estas forças as detenham eficazmente na sua ascensão muito perigosa, as derrotem e façam reverter. Antes que seja tarde, se o não for já - como este filme, com a última esperança nas asas de uma pequena ave, isto tem todo o ar de ir acabar muito mal.

Uma referência

     Claude Lanzmann (1925-2018) foi um documentarista francês incontornável, com os filmes que fez sobre o holocausto que é absolutamente indispensável conhecer. Se se quiser conhecer bem o cinema e a história do século XX 
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     Participou na Resistência durante a guerra, foi contemporâneo do existencialismo e dos existencialistas Sartre e Beauvoir e traçou para si próprio um rumo de intransigência relativamente à II Guerra Mundial, incluindo nos seus filmes, a que se manteve fiel até ao fim. Na sua obra avulta o monumental "Shoah" (1985), com várias ramificações e sequelas, como "Tsahal" (1994) e "Sobibor, 14 Octobre 1943, 16 heures" (2001), todas elas do maior interesse.
      E sobre esse assunto defendeu uma ética muito importante, criticando o que entendeu e mantendo-se fiel a si próprio. Homens como ele fazem muita falta no cinema, sobretudo neste momento. (Ver sobre Lanzmann "Os testemunhos: tetralogia", de 24 de Janeiro de 2018, e "A tetralogia completa e o mais", de 31 de Janeiro de 2018).

domingo, 1 de julho de 2018

Uma exposição central

    Está patente na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, a exposição "Clareira - Escultura 1984-2018" de Manuel Rosa, que visitei quando de uma das minhas idas recentes à Cinemateca Portuguesa.
     Nascido em Beja, o artista fez a sua formação na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, começou em 1981 no Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, em Évora, e teve a sua primeira exposição individual em 1984 na Galeria Módulo. Desde então tem participado em exposições colectivas em Portugal, Itália e Espanha e fez onze exposições individuais.     
                       <strong>Sem Título</strong>, 1996<br>
  Ferro fundido, 82x765x265cm
    Manuel Rosa é, assim, uma das grandes figuras da escultura portuguesa contemporânea, presente nos principais museus portugueses, que esta exposição importante permite conhecer. As suas esculturas trabalham formas diversas, circulares, longas, figurativas e não figurativas, elementos materiais do quotidiano, formas geométricas mais abstractas e a figura humana, com destaque para os torsos. 
     Esta uma exposição muito boa que, sob o signo do "materialismo espiritual", tem curadoria de Manuel Costa Cabral e Nuno Faria e apresenta a característica de ser antológica, com peças em gesso, bronze e calcário, entre outros materiais, numa linguagem muito própria com exploração do cheio e do vazio, que tem evoluído em diferentes direcções.
    Quando forem à Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, atravessem a Rua Barata Salgueiro e visitem a SNBA, uma grande casa das artes sempre com excelentes exposições, que já ali estava antes dela e onde passou a primeira retrospectiva de Jean Rouch em Lisboa. Esta exposição está até 21 de Julho. E se quiserem subir a mesma rua, agora com escadinhas, estão a dois passos do Jardim Botânico.