sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Pequenos ladrões

    Depois de "O Terceiro Assassinato"/"Sandome no satsujin" (2017), que não vi, o japonês Hirokazu Koreeda realizou "Shoplifters - Uma família de pequenos ladrões"/"Manbiki kazoku" (2018) a partir de história e argumento seus, Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano.
     O filme arranca como crónica do quotidiano de uma família que se dedica a pequenos roubos nas lojas, da avó/Kirin Kiki até aos netos, Aki Shibata//Mayu Matsuoka, Shota Shibata/Jyo Kairi e Yuri/Miyu Sasaki, para, depois de familiarizados com cada um, se introduzir a dúvida que uma notícia de televisão lançara sobre a origem da filha mais nova. A partir daí as coisas começam a complicar-se, com a morte da avó, que deixa uma boa maquia, uma queda do filho Shota e a prisão dos pais, Osama Shibata/Lily Franky e Nobuyo Shibata/Sakura.Andô.
                      Shoplifters Movie Review
      Sem pretender fazer julgamentos sobre as personagens, o filme prende pela espontaneidade de tudo, pela simplicidade das personagens e pelo carácter óbvio da actividade a que elas se dedicam por razões elas também óbvias atentas as suas escassas posses.
      A culminar o conjunto de pequenas peripécias, o final está bem visto e não surpreende a não ser pela separação entre pais e filhos, lamentável mas inevitável mesmo com a dor envolvida - e a separação de Nobuyo e Shota está bem resolvida em termos fílmicos.
     "Shoplifters - Uma família de pequenos ladrões" de Hirokazu Koreeda é mais um bom filme que faz sentido na obra do cineasta de "Ninguém Sabe"/"Dare mo shiranai" (2004), "Andando"/"Aruitemo, aruitemo" (2008), "O Meu Maior Desejo"/"Kiseki" (2011) e "Tal Pai, Tal Filho"/"Soshite chichi ni naru" (2013) entre outros.
     Um filme que nos seduz e prende pela sua proposta narrativa e pelas suas qualidades formais, com fotografia de Ryûto Kondô, música de Hauromi Hosono e montagem do próprio realizador, o que aqui assinalo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Alto nível

     Bernardo Bertolucci (1941-2018) iniciou-se no cinema com o cinema novo italiano dos anos 60 - "La commara secca" (1962), "Antes da Revolução"/"Prima  della revoluzione" (1964) e "Partner", sobre o duplo a partir de Dostoievski (1968) - de que foi um dos nomes mais modernos e destacados, com Pier Paolo Pasolini. Marco Bellochio e Carmelo Bene. 
    Numa primeira fase a sua obra desenvolveu-se segundo parâmetros de exigência e grande qualidade, depois daqueles filmes com "O Conformista"/"Il conformista" baseado em em Alberto Moravia e "A Estratégia da Aranha"/"La Strategia del ragno" baseado em Jorge Luis Borges (1970), ambos de marcado cunho político. 
    Após esse início fulgurante, forte e pessoal, que o coloca decididamente do lado do cinema moderno e também do político, com "O Último Tango em Paris"/"Ultimo tango a Parigi" (1972), com Marlon Brando e Maria Schneider, belo filme que banaliza o escândalo parolo que o rodeou, "1900"/"Novecento" (1976), com Robert De Niro, Gérard Depardieu, Dominique Sanda e Alida Valli, grande fresco histórico em que excede o mero modelo viscontiano, "La Luna" com Jill Clayburgh sobre mãe e filho (1979) e "A Tragédia de um Homem Ridículo"/"La tragedia di un uomo ridicolo" com Ugo Tognazzi sobre o sucesso nos negócios (1981) torna-se um realizador internacional de filmes de prestígio e qualidade, que se tornam então indissociáveis do seu nome.. 
                      Bernardo Bertolucci
    Sempre contra o previsível do establishment, na sua obra vão seguir-se o oscarizado "O Último Imperador"/"The Last Emperor" (1987), "Um Chá no Deserto"/"The Sheltering Sky" baseado em Paul Bowles (1990), "O Pequeno Buda"/"Little Buddha" (1993) e "Beleza Roubada"/"Stealing Beauty" (1996), sempre com grandes assuntos, grandes personagens e grandes actores.
   Acaba por regressar a filmes mais pessoais já no século XXI, com "Os Sonhadores"/"The Dreamers" (2003) e "Eu e Tu"/"Io e te" (2012), como se na demanda da inocência perdida e irrecuperável da juventude, em que se situaram talvez os seu filmes mais pessoais e originais
    Guardo dele a memória do ímpeto inspirado dos primeiros filmes e da energia que o levou a erguer monumentos da história do cinema, do inconformismo com que quebrou barreiras e tabus, mesmo de filmar na Grande Muralha da China, em favor de uma beleza não apaziguada que, com o segredo do amor, da vida e da  morte, procurava.
     Figura respeitada e de grande relevo do cinema contemporâneo, soube guardar nos seus filmes um fio de ironia meridional e de contraste que marcava a distância da gravidade dos assuntos que tratava. Um grande senhor do cinema parte agora para desgosto de todos e perda da Sétima Arte.

sábado, 24 de novembro de 2018

Teatro épico

      Embora trabalhe como realizador desde 1998, o filipino Lav Diaz só começou a ser conhecido internacionalmente em 2013 com "Norte, the End of History"/"Hangganan ng kasaysayan" e tem-se caracterizado por fazer filmes muito longos. Conheço pouco da sua obra mas vi o seu penúltimo filme, "The Season of the Devil"/"Ang panahon ng halimav" (2018) no Lisbon & Sintra Film Festival deste ano.
     Baseado em personagens e factos reais das Filipinas em 1979, narra os desencontros entre Hugo Haniway/Piolo Pascual e Lorena Haniway/Shaina Magdayo, perseguidos pelos esquadrões da morte do ditador Narciso/Noel Sto. Domingo. Simplesmente, em vez de um método realista puro, o filme tempera-o com palavras cantadas pelas personagens, perseguidores e perseguidos.  
                      
       Daqui resulta uma obra marcada por um certo distanciamento, representando ostensivamente no presente do filme acontecimentos trágicos do passado. Desta forma moderna o cineasta se serve para criar uma obra tanto mais poderosa quanto mais distanciada, encenação do passado na actualidade em filme.
     Com recurso a repetições das mesmas canções, o filme reitera-se e repete-se para maior encantamento e justeza, na exibição da crueldade e da ameaça para persuadir a delação e na apresentação dos pobres perseguidos que esperam que alguém os liberte enquanto a tortura e as mortes se sucedem. Com a presença dos quatro elementos, terra, água, fogo e ar.
       Contando com realização, produção, argumento, fotografia e música de Lav Diaz, "The Season of the Devil" aumenta o seu impacto por usar um rigoroso preto e branco, ter muito escassa música e ser encenado com planos-médios em geral longos e com profundidade de campo, sem se aproximar muito dos seus actores. A estética do filme e o seu artifício de ser cantado convocam um distanciamento brechtiano no sentido mais profundo do seu "teatro épico".
     Moderno e não ingénuo, este é um cineasta filipino muito bom que, depois de Lino Brocka (1939-1991) e Brillante Mendonza, interessa conhecer e acompanhar na actualidade. Que merece ser conhecido na totalidade da sua obra, na Cinemateca Portuguesa por exemplo. Enquanto isso não chega, com o Indie, o Doclisboa e o Lisbon & Sintra Film Festival, uma razoável distribuição comercial e uma boa Cinemateca, Lisboa continua a afirmar-se como grande capital europeia do cinema.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

As cobaias

    O mais recente filme da francesa Claire Denis, "High Life" (2018), rima na obra dela com "Beau travail" (1999), baseado em "Billy Budd, Sailor", de Herman Melville, passado num navio, enquanto este se passa numa nave espacial: em qualquer dos casos estão em causa as tripulações.
    A bordo de uma nave que já saiu do sistema solar rumo ao pequeno buraco negro mais próximo da galáxia, um pai, Monte/Robert Pattinson, acompanhado pela sua filha bebé, Willow/Scarlett Lindsey, uma vez desocupada a nave dos tripulantes creoginizados recorda os tempos anteriores dele na Terra, do nascimento dela e deles juntos, com a procriadora Dr.ª Dibs/Juliette Binoche.   
                       High Life Trailer
    O que no filme anterior se passava entre homens passa-se aqui entre homens e mulheres, com estas a dominarem no seu papel sexual e procriador. Com a particularidade de todos os tripulantes terem sido condenados a prisão perpétua ou à morte na Terra e serem usados naquela missão como cobaias.
    Num final muito bom, pai e filha já adolescente/Jessie Ross, enfrentam, ao aproximarem-se do seu objectivo final, uma nave gémea que vem ao encontro deles. E o filme fica-se por aqui, pela sugestão. De acordo com o estilo da cineasta, "High Life", à semelhança de "Beau travail" faz largo uso de planos aproximados, grandes-planos e planos de pormenor. E a sua construção temporal enrolada é muito curiosa.
   Com argumento da realizadora, Jean-Pol Fargeau (que estivera no "Melville film") e Geoff Cox, tem fotografia de Yorick Le Saux e Tomasz Naumiuk, música de Stuart Staples e dos Tindersticks e montagem de Guy Lecome. 
   O filme passou no domingo no Lisbon & Sintra Film Festival, em que aconselho Lav Diaz na quinta-feira, 22 de Novembro, ás 19H 00M na Sala 2 do Monumental. Sobre Claire Denis  ver "Uma brincadeira", de 26 de Dezembro de 2017.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Esticar a corda

   Depois de "Nasceu uma Estrela"/"A Star Is Borne", de William A. Wellman com Janet Gaynor (1937), de "Assim Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne", de George Cukor com Judy Garland (1954), e de "Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne", de Frank Pierce com Barbra Streisand (1976), surge agora "Assim Nasce uma Estrela"/"A Star Is Borne" de Bradley Cooper com Lady Gaga (2018), um filme que tem dado que falar e com boa recepção crítica.
   Com argumento de Eric Roth, Bradley Cooper e Will Fetters baseado nos anteriores, o filme recupera a narrativa já conhecida, que actualiza para os nossos dias. Por aí nada de especialmente novo a não ser o melodrama, a realização que se ocupa mais dos actores que do espaço e o final que justifica a longa duração.
                      
        Não há outra justificação para repetir um sucesso no cinema que não seja a sua popularidade, e atrás dela o realizador, produtor e actor corre, tentando fazer obra nova e pessoal. O que consegue de modo a espantar e comover os espectadores de cinema actuais com um misto de musical cantado e de melodrama.
        Lady Gaga como Ally não decepciona os seus fãs e é a singing star da actualidade como as duas anteriores eram no tempo delas, enquanto Bradley Cooper como Jack explora bem os silêncios de uma personagem difícil num bom elenco em que se destaca também Sam Elliott como Bobby, o irmão dele. Talvez que o excesso de focalização do realizador em si própriio prejudique este filme, o que no entanto se justifica com o facto de ele se "ausentar" no final, típico melodrama.
        Ao explorar o melhor do musical e do melodrama no cinema americano, este "Assim Nasce uma Estrela" segue as pisadas de Robert Redford no segundo género para se afirmar na sua longa duração, por vezes fastidiosa e por isso excessiva, e alcança um bom nível que, com aspectos discutíveis como tornar-se uma colagem de momentos consecutivos, o torna apreciável. E o final está bem resolvido neste novo filme de repertório americano.
      Tem fotografia de Matthew Libatique, músicas e canções variadas  e montagem de Jay Cassidy. Talvez que uma marca importante do cinema americano contemporâneo, que não vive grandes tempos, seja justamente a tendência para a repetição. Pela sua duração em perda se compreende este remake de remakes feito por um actor/realizador de quem se anuncia agora "Bernstein".

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Vindos do mar

    "A Tartaruga Vermelha"/"La tortue rouge", do holandês Michael Dudok de Wit (2016) é um belo desenho animado com um número reduzido de personagens, um homem/Mickaël Dumoussaud, uma tartaruga-mulher/Maud Brethenoux e o filho deles/Elie Tortoix, numa ilha deserta.
    Ele ali foi parar devido ao acaso dos sucessivos naufrágios das jangadas por si construídas e ali encontrou a tartaruga vermelha que se metemorfoseou em mulher que, depois de lhe dar um filho e o ver crescer, de novo como tartaruga, com vida muito mais longa que a dele lhe sobrviverá.
                      Un film réalisé par le Néerlandais Michaël Dudok De Wit.
   Funcionando como parábola poderosa e expressiva sobre a vida, o amor e a morte num meio edénico, este filme poético e humanista tem uma animação perfeita e deixa margem para a imaginação do espectador o preencher nas suas elipses e omissões. Tem também cores soberbas e desenhos de uma grande qualidade e vivacidade, com realce para as cenas subaquáticas.
   O argumento é do realizador e Pascale Ferran a partir de história dele. Além disso, o filme adopta uma variada gama de planos sempre com grande a-propósito, tem uma música excelente de Lauren Perez Del Mar e montagem justa de Céline Kélépikis.
   Co-produção franco-belga-japonesa (Estúdio Ghibli) premiada em Cannes, "A Tartaruga Vermelha" passou ontem à noite no âmbito do Arte fait son cinéma.

domingo, 11 de novembro de 2018

Cinema no Arte

        Entre 12 e 26 de Novembro, Arte fait son cinéma regressa na sua quinta edição como grande mostra de algum do melhor cinema, uma iniciativa que aqui saúdo e aconselho.
        Muito estimado por este canal cultural franco-alemão, o melhor do cinema nem sempre tem a divulgação que merece e nem sempre é apresentado da melhor maneira. Aqui são mostradas produções recentes deste mesmo canal televisivo, algumas delas inéditas comercialmente entre nós.
                      Nanni Moretti et Margherita Buy dans Mia Madre de Nanni Moretti
     Neste festival bienal são programados agora por Olivier Père, entre outros, filmes da alemã Maren Ade, do iraniano Rafi Pitts, do finlandês Juho Kuosmanen, do italiano Nanni Moretti, dos franceses Mia Hansen-Love, Bruno Dumont e Sacha Wolff, numa programação que encontram completa aqui
https://www.arte.tv/fr/articles/arte-fait-son-cinema 
com entrevista aqui
http://cinema.arte.tv/fr/article/arte-fait-son-cinema

sábado, 10 de novembro de 2018

Sem ilusões

   "Fahrenheit "11/9" é o mais recente filme do documentarista americano Michael Moore (2018), em réplica ao seu anterior "Fahrenheit 9/11" (2004), indispensável para compreender a América actual sob a presidência de Donald Trump, eleito devido a circunstâncias infelizes do sistema político do país.
   O seu mérito maior reside em não se circunscrever à eleição e à presidência de Trump mas dar-lhe o contexto americano em tons crus e realistas, nomeadamente com o recurso à situação anterior da terra natal do realizador, também argumentista e produtor, Flint, Michigan, caso escandaloso de governo por um outro milionário. Nesse e noutros casos percebe-se bem a aberração de um sistema que permite e até favorece a escolha eleitoral não dos melhores mas dos mais ricos, dispostos a tudo para exercer o poder em benefício próprio e dos seus iguais.
  Mas com cumplicidades e repercussões internacionais, o caso Trump está muito bem apresentado como o de uma presidência disruptora tanto interna como internacionalmente, com ameaça para toda a humanidade em alguns casos enquanto põe em causa o respeito por elementares direitos humanos internamente.
                      UNITED STRAITS From sea to shining sea, Moore checks in with ordinary Americans who report feeling hosed like never before.
    Além disso este filme mostra como o actual partido democrata mereceu perder as últimas presidenciais e continua sem alternativas válidas para oferecer, enquanto na juventude parece residir o inconformismo propício a uma mudança.
    A parte final do filme sobrepõe a actualidade americana à ascenção do nazismo, nos anos 30 do século XX, no que faz muito bem ao carregar os traços daquilo que a alguns pode parecer inofensivo mas não é, contrariamente ao diagnóstico de pós-fascismo dos filósofos italianos que António Guerreiro citou no Ipsílon da semana passada.
    Essencial para os próprios americanos que julgam que o seu país se resume a um reality show, "Fahrenheit 11/9" de Michael Moore ajuda-nos a todos a compreender a actualidade, sem falsas esperanças nem ilusões, indo assim ao encontro das previsões que vêm sendo feitas por Slavoj Zizek entre outros. Tudo muito claro e bem documentado, orientado pelo comentário do cineasta sem preocupação de ser "artístico".
  Perante indiferença generalizada, prolonga-se uma situação inaceitável que as eleições intercalares desta semana vieram consolidar. E o inaceitável alastra a outros pontos do globo sem que se veja disposição para o contrariar e afastar os seus fautores, como numa espiral de ameaça provocadora e muito perigosa que urge combater e afastar.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Na nova ordem

    "Le disciple"/"The Student"/"(M)uchenik" é o penúltimo filme do russo Kirill Serebrennikov (2016), um cineasta desconhecido em Portugal e perseguido pelas autoridades actuais do seu país. Trata do reaparecimento disfuncional da religião na Rússia pós-comunista sem contemplações nem falsas esperanças.
    Veniamin Yuzhin/Pyotr Skvortsov é aluno de uma escola secundária em que se destaca pela sua obsessão bíblica, que cita a torto e a direito contra tudo e contra todos. A insatisfação que assim demonstra é um ponto a notar a seu favor enquanto o fanatismo para que descamba, com conflito com a autoridade religiosa e a colocação de uma cruz com crucificado na sala de aulas, diz tudo sobre a impotência do sistema, em que apenas uma professora, Elena Krasnova/Viktoriya Isakova, tenta perceber o seu caso e acaba resistindo ao despedimento que a atinge depois de Veniamin ter assassinado o seu discípulo coxo, crédulo e amantíssimo, Grigory Zaytsev/Alexandr Gorchilin, em segredo.
                        The Student Cannes Film Festival
     Longe de ser beatamente religioso, o filme, com argumento do realizador e Marius von Mayenburg baseado numa peça deste e que abre com um longo plano-sequência de mãe e filho em casa, põe o dedo numa ferida aberta, a de uma sociedade sem referências cívicas ou morais que a si própria se devora como uma serpente abocanhando a própria cauda.
    Não me interessam sobremaneira os diagnósticos de falência de um regime pseudo-democrático, de facto autoritário, nem de regresso da religião para preencher um vazio existencial, embora eles sejam relevantes. O que me impressiona neste filme é que todos querem ser iguais por uma bitola comum e rasteira, bem comportada, que o protagonista mesmo com os seus excessos, que incluem falsas acusações anti-semitas, leia-se fascistas, a par de catadupas de citações bíblicas, procura contrariar.
      Vítima do sistema pós-comunista, Kirill Serebrennikov é ameaçado e perseguido pelo regime por pôr em causa as relações dele com a Igreja Ortodoxa Russa, faz-me recordar outros cineastas como ele perseguidos pelo senhor Putin e leva-me a evocar Kira Muratova (1934-2018), recentemente falecida, que, vítima da censura comunista, apesar da qualidade dos seus filmes foi completamente ignorada nos 12 filmes realizados depois da queda do regime soviético. 
      Isto é tudo muito mais complicado do que vocês pensam. Este filme terrível e muito bom, com ressonâncias dostoievskianas, passou esta semana no Arte. Sobre o actual cinema russo ver "Vida sem amor", de 11 de Fevereiro de 2018.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Sala de oficiais

   No centenário do final da I Guerra Mundial, o Arte mostrou "La chambre des officiers", de Raymond Dupeyron (2001), um belo filme, inteligente e comovente que não conhecia, com argumento do cineasta a partir de romance de Marc Dugain.
    Decorre na sua maior parte numa enfermaria de campanha, a "sala de oficiais " do título, onde se aglomeram oficiais franceses feridos na cara, o mais visível da nossa identidade. Surpreendentemente, numa primeira parte os feridos, deitados, são olhados de cima por médicos e enfermeiras sem que eles próprio sejam mostrados, para depois ser dado o  contracampo sobre eles, em seguida surgirem já de pé e como iguais e no final em contra-plongé, que os segue predominantemente mesmo depois do fim da guerra e da saída do hospital daqueles que sobreviveram.
                                   La Chambre des Officiers
    Construído de forma simples mas convincente, "La chambre des officiers" é um filme dramático que conta com grandes actores, muitos deles representando com a cara tapada por causa dos ferimentos na cara - e colocar no mesmo plano Sabine Azéma e André Dussollier, como Raymond Dupeyron faz repetidamente, cita Alain Resnais com quem trabalharam juntos em diversos filmes.
    Simétrico, o filme começa com o embarque falhado de um oficial que se encontra com a mulher de outro que embarcou e termina com o regresso dos feridos sobreviventes a casa, onde os aguardam recepções diferentes no final de um percurso que a morte atravessa. Curiosamente, antes disso, quando todas as personagens e todos os olhares passam a equivaler-se surge também uma mulher ferida na cara. 
    A excelente fotografia, que trabalha cuidadosa e artisticamente o espaço. é de Tetsuo Nagata, a música discreta de Jean-Mochel Bernard e a montagem de Dominique Faysse num filme muito bom que não estreou comercialmente em Portugal.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Bater fundo

       Baseado no romance "Seara de Vento", de Manuel da Fonseca, escritor típico do neo-realismo português de quem já Luís Filipe Rocha tinha adaptado "Cerromaior" (1981), o mais recente filme de longa-metragem de Sérgio Tréfaut, "Raiva" (2017), é uma obra séria e exigente que traz de novo o cineasta de origem brasileira para lugar de destaque.
     Num preto e branco com a assinatura de Acácio de Almeida, o cineasta parte de uma adaptação sua para contar a história dos que nasceram pobres e hão-de morrer pobres face aos que nasceram ricos e hão-de morrer ricos, mítica do Alentejo durante o Estado Novo.
      Com grandes actores nos papéis principais - Sergi López, Isabel Ruth, Leonor Silveira, Catarina Wallenstein - e secundários - Diogo Dória, Luís Miguel Cintra, Herman José, José Pinto, Adriano Luz -, o filme decorre com planos fechados e grandes-planos, sobretudo de Amanda e Júlia e de Palma/Hugo Bentes, que contrastam com alguns planos gerais que situam geograficamente. Em planos de pormenor surgem três animais e de vez em quando ouve-se o vento.             
                      
    Sem música que não seja a diegética, o cante dos Mineiros de Aljustrel, e um Ave Maria de Schubert feminino e desafinado, pelo seu dispositivo visual "Raiva" não convoca a grande proximidade, que a escala dos planos e a narrativa por si mesmas chamariam, devido à fotografia trabalhada com grande apuro que, com alguns cenários, convoca uma certa artificialidade, mesmo teatralidade.
    O cineasta afasta-se, assim, de uma estética do neo-realismo no cinema, que poderia parecer uma primeira opção mas é hoje em dia datada, preferindo-lhe uma leitura actual da narrativa e da época, subjectiva e conseguida. E o prólogo com algumas cores constitui um pequeno e importante segmento introdutório, cujo fogo se prolonga ao longo do filme.
    Apesar de passar por uma facilidade de casting geradora de curiosidade junto das audiências, o uso de grandes actores em pequenos papéis não chega a comprometer num filme que consegue uma unidade e um equilíbrio apreciáveis.
    A proximidade que me parece pertinente é entre este filme e "Vidas Secas", do brasileiro Nelson Pereira dos Santos (1962), baseado no romance de Graciliano Ramos, o que a proximidade entre o Nordeste brasileiro e o Alentejo português durante o Estado Novo e a afinidade estética justifica. Apesar de todas as diferenças que a mais de 50 anos de distância, nos dois contextos estéticos e nos próprios filmes, são visíveis.

sábado, 3 de novembro de 2018

Uma presença

    Helena Ramos (1954-2018) foi uma figura popular e de grande qualidade da televisão portuguesa, que se distinguiu como apresentadora de programas de grande audiência sempre com simpatia e dignidade.
                      Reprodução 
    A sua figura iluminou por muitos anos os nossos ecrãs, a que nos prendeu pelas melhores razões, pessoais e profissionais. Os seus colegas dizem o melhor dela, corroborando, assim, a opinião dos espectadores sobre uma mulher de grande qualidade que foi uma grande profissional da comunicação audiovisual.
    Aqui deixo expressa a minha admiração pessoal por ela e acompanho os seus familiares e amigos no momento da sua partida prematura.