quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

No impasse

   "L'économie du couple"/"After Love" (2016) é a sétima longa-metragem do belga Joachim Lafosse, um filme da maior qualidade e interesse.
   Decorre na sua maior parte no interior da casa de Marie/Bérénice Bejo e Boris/Cédric Khan, um casal em ruptura, com duas filhas gémeas, Jade/Jade Soentjens e Margaux/Margaux Soentjens. Trata-se entre eles da decisão dos protocolos do divórcio, o que, por entre acusações e recriminações mútuas, não é fácil pois ele não quer abandonar a casa.        
   Para além da narrativa cerrada com as interpretações a cargo de bons actores, o filme tem uma planificação justa que explora planos de duração superior à média, o que facilita o trabalho dos actores mas também confere ao filme características visuais e até sonoras próprias, assim tornado fluido e sereno ao tratar de um conflito aceso.
                      
    A passagem de  Babou/Marthe Keller e a abertura do casal em separação aos amigos de ambos vem tornar tudo mais claro num conflito agravado pelas diferenças sociais de origem de Marie e Boris.
   Conta com argumento e diálogos de Fanny Burdino, Joachim Lafosse e Mazarine Pingeot com a colaboração de Thomas van Zeyden, fotografia de Jean-François Hensgens e montagem de Yann Dedet. Sem música, o filme centra-se nas suas personagens em conflito de uma forma inteligente, concentrada e bem trabalhada em termos fílmicos, o que torna o acesso e a compreensão do espectador mais fáceis. 
   Com uma realização precisa e atenta a tudo, do pormenor ao todo, em "L'économie du couple" Joachim Lafosse mostra as razões pelas quais é actualmente um nome de referência no cinema europeu. Passou ontem à noite no Arte.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

De passagem em fuga

  O mais recente filme do alemão Christian Petzold, "Em Trânsito"/"Transit" (2018), tem adaptação dele de uma novela de Anna Seghers. Dedicado a Harun Farocki (1944-2014), tem várias particularidades que o tornam uma obra cinematográfica notável.
  Passado durante a invasão nazi da França na II Guerra Mundial, não assume a época e a circunstância em termos visuais, apenas narrativamente agarrado a elas e no espaço de cidades francesas progressivamente ocupadas do norte para o sul. De resto, os cenários, o vestuário, os acessórios e os adereços são da actualidade, o que cria um desfazamento não inocente mas muito produtivo. Como se tudo decorre-se num espaço-tempo abstracto
   Além disso, é acompanhado por uma voz-off narrativa que só no final recebe imputação ao dono do bar a quem Georg/Frantz Rogowski conta em Marselha o que lhe aconteceu desde o início: o seu encontro em Paris com um escritor que lhe confiou duas cartas e uma missão antes de morrer.
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    Contando com bons ambientes, são contudo as personagens o mais assinalável deste filme: Marie/Paula Beer, a mulher do escritor cuja identidade Georg assume para efeitos de sair por mar para o México - apesar de ele próprio passar a escrever também -, o médico que a acompanha, Richard/Godehard Giese, e sobretudo Melissa/Maryam Zaree, refugiada magrebina surda-muda com o seu filho pequeno, Driss/Lilian Batman, que joga futebol. Num filme bilingue, alemão e francês.
    O passado rebate-se sobre o presente de forma muito original e inventiva, de modo tal que o presente ecoa o passado tendo-o como referência permanente. As personagens de Georg e Richard cruzam-se por causa de Driss e debatem-se por causa de Marie para ver quem parte com ela e para onde, enquanto Melissa e o filho desaparecem sem deixar rasto. E há ainda uma mulher mais velha, arquitecta/Barbara Auer, que circula em perda até parecer recuperar para se deixar cair.
    Construído sobre a memória e o esquecimento entre personagens mas também entre épocas históricas que acreditamos não se repetem, "Em Trânsito" é um filme muito bom e conseguido sobre o poder de sugestão, que inclui o final em que Georg julga ver quem lhe acaba de ser dito que morreu. O que levanta a questão de quem conta e quem é contado. A remissão para "Casablanca" de Michael Curtiz (1942), evidente, é assim superada.
    Com fotografia de de Hans Fomm, música de  Stefan Will e montagem de Bettina Böhler, este mais um filme notável do cineasta mais importante do novo cinema novo alemão.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Ver e mostrar

   Há escritores que além dos livros por que são mais conhecidos, prosa ou poesia, mantêm uma atenção desperta para a arte, como se trabalhando em dois tempos, vários movimentos. Trazem-me aqui a esse respeito o português João Miguel Fernandes Jorge e o inglês Julian Barnes, figuras destacadas nas literaturas respectivas.
   Começando pelo segundo, que tem uma obra conhecida e distinguida maioritariamente traduzida em português, a partir da sua permanência prolongada em França ele, que já tinha explorado na sua escrita Gustave Flaubert, dedicou um livro à arte deste país a partir do século XIX: "Keeping an Eye Open" (Londres: Jonathan Kape, 2015).
    Trata-se de uma obra inteligente em que, com bom gosto e boa informação, o autor escalpeliza a arte dos séculos XIX e XX hoje patente nos museus franceses e mundiais como tempos de apogeu da pintura na transição do romantismo para o impressionismo e depois deste para o modernismo, num percurso de dois séculos.
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    Mas Julian Barnes não se limita a estudar cada artista obra a obra, pois imagina a situação vivida por aqueles que cada quadro representa ou a vida de cada pintor, para o que usa a sua escrita soberba, elegante e clara, que todos apreciamos, a partir de testemunhos de época, o que acaba por transformar este livro num híbrido de ensaio e ficção.
   Já o português trata em "Longe do Pintor da Linha Rubra" (Patavina, 2017) - que reúne textos seus posteriores a 2008, ano de "Processo em Arte" (Lisboa: Relógio d'Água), a sua anterior recolha de textos -, sobretudo da arte portuguesa antiga e contemporânea mas também da grande arte estrangeira, depois de em "Mirleos" (Lisboa: Relógio d'Água, 2015) em poesia se ter dedicado à arte do passado. 
    E ele tem um saber que lhe permite entrar na arte pictórica, escultórica ou outra em museus e exposições, que o leva muito para além do comum da crítica de arte a explorar espaços museais e o íntimo exterior de cada obra fornecendo-lhe o contexto artístico e histórico. De facto, ele sente e pensa aquilo que escreve de uma maneira pessoal a partir de cada peça, em exegese esclarecida de cada obra ou artista.  
    Na sua apreciação de cada obra estudada, J. M. F. J. continua a encantar-nos com o seu gosto cultivado e bem informado e com a sua escrita densa, uma escrita muito própria que provém da poesia mas se transmuta na prosa, o que faz toda a originalidade e profundidade do autor.  
   Têm em comum o inglês e o português olharem atentamente e cada um deles ver com a sua própria informação e o seu próprio conhecimento da arte que, francesa, portuguesa ou outra continua a ser arte e por esse motivo a merecer a nossa melhor atenção que precisa, porém, de ser esclarecida e iluminada.
                        Longe do Pintor da Linha Rubra           
    Ambos pensam aquilo que escrevem em função do significado objectivo de cada obra mas também a partir de uma subjectividade não inocente mas cultivada, que se rebate sobre a subjectividade de cada artista. Um e o outro pensam a arte que houve e que há com um saber e um brio especiais, que os leva a esclarecer-nos recriando cada obra e a criar aforismos próprios sobre a criação artística..
     Agora o escritor inglês trabalha aqui predominantemente numa área de história da arte enquanto o poeta português se dedica mais à filosofia da arte, aliás com inteira pertinência. Com projectos diferentes, João Miguel vai, contudo, mais longe em pensamento da arte do que Barnes na sua análise atenta sobretudo ao picante histórico da biografia de artistas e da circunstância quadros célebres.
    E noto que enquanto Julian Barnes está atento ao melhor da arte francesa e europeia de Oitocentos e Novecentos, João Miguel Fernandes Jorge volta-se também para alguns dos mais proeminentes artistas portugueses contemporâneos. Claro que o que este escreve "não tem rede" salvo os seus próprios escritos, incluindo poéticos, anteriores, enquanto aquele tem atrás de si um julgamento já formado e estabelecido pela história da arte.
    Vale a pena lê-los a um e ao outro, e o livro de Julian Barnes merecia ser traduzido para português. Quanto à edição do livro português ela é de uma nova editora, a Patavina, que aqui saúdo neste início pela qualidade desta edição e à qual desejo o melhor futuro.

Uma memória

   Compositor e músico, Michel Legrand (1932-2019) foi o principal participante musical da nouvelle vague francesa, nomeadamente nos filmes de Jacques Demy, o que o tornou parte integrante dela. Mas sobreviveu-lhe, pois numa carreira muito longa continuou a compor e a fazer arranjos para cinema já depois de ela morte e enterrada.  
                                Michel Legrand
    Foi assim um dos principais compositores de música original para cinema, o que é diferente das selecções musicais praticadas na actualidade. Com um estilo pessoal próprio e com o seu acrescento musical a cada filme, de que a sua música fazia parte integrante. Especialmente no cinema encantado de Jacques Demy por causa da música dele.
   Aqui o recordo e lhe presto homenagem, fazendo votos de que a sua criação musical sirva de inspiração e incentivo na actualidade.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Uma longa viagem

    Jonas Mekas (1922- 2019), que agora nos deixou, foi uma lenda do cinema independente experimental e de vanguarda americano. Natural da Lituânia, fugiu com o seu irmão Adolfas (1925-2011) do campo de trabalho em que tinha sido internado pelos nazis em 1944. Entre 1946 e 1948 estudou filosofia na Universidade de Mainz. 
     Em 1949 emigrou para os Estados Unidos com o irmão, e aí veio a criar a revista Film Culture em 1955 e a impulsionar o New American Cinema Group em 1960, enquanto rodava os seus primeiros filmes com uma Rolex 16mm.
    Co-fundador da Film-Makers' Cooperative em 1962, tornou-se o principal animador do cinema underground nova-iorquino, criando com P. Adams Sitney e outros os Anthology Film Archives, cinemateca do filme experimental, em 1970. 
                               Jonas Mekas
   Também poeta e mais tarde professor, foi autor de uma obra cinematográfica muito importante de que se destaca o seu diário filmado "Diaries, Notes and Sketches". Uma obra injustamente mal conhecida em Portugal mas que marcou o cinema americano e mundial.      
   Homem despretensioso, soube imprimir a tudo o que fez um cunho pessoal distintivo e uma notável independência de espírito. Os seus filmes foram mostrados sobretudo em museus, o que dá uma ideia do prestígio artístico que os rodeou.
   Aqui recordo e recomendo Jonas Mekas, grande homem do cinema que a todos aconselho pelos seus filmes, pela sua tenacidade e pelo seu exemplo. Contemporâneo de Andy Warhol, John Cassavetes e Stan Brakhage, ele permanece como referência incontornável do melhor do cima até aos nossos dias.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Com elegância

     Depois de "O Cavalheiro com Arma"/"The Old Man & the Gun", com argumento e realização de David Lowery (2018) baseado no artigo de David Grann no The New Yorker, o actor e co-produtor do filme Robert Redford anunciou a sua retirada do cinema, o que chama especial atenção para o filme.
    Começou por trabalhar para a televisão e logo a seguir no cinema na década de 60. Actor destacado do cinema americano, a partir de 1980 também realizador, além do que é responsável pelo Sundance Institute e pelo Sundance Film Festival, o que o torna uma figura incontornável do cinema do último meio século.
     O filme beneficia do seu carisma na interpretação de Forrest Tucker, assaltante de bancos cuja carreira prospera em 1981, depois da sua fuga de San Quentin em 1979 e antes de terminar abruptamente. Num ritmo calmo, desenrola-se ao sabor dos encontros dele, primeiro com Jewel/Sissy Spacek, depois com o polícia que o persegue, John Hurt/Ben Affleck, encontros alternados com os assaltos dele com os seus dois cúmplices, Teddy/Danny Glover e Waller/Tom Waits, e com a perseguição policial. 
                       
     O encanto do filme centra-se no seu protagonista a que Redford confere a elegância que ele reclama nos assaltos e com Jewel e também o ar vivido de quem já 16 vezes fugiu da prisão, mas ele beneficia também da inclusão de excertos de filmes, mesmo com o próprio Redford novo, e de utilizar bem citações do passado dele como actor em jeito de homenagem.
    "O Cavalheiro com Arma" conta com fotografia de Joe Anderson, música de Daniel Hart e montagem de Lisa Zeno Churgin, enquanto os actores estão muito bem e a realização é certa e encontra sempre as melhores soluções.
     O sorriso de Forrest Tucker a que o final se alude confunde-se com o do próprio Robert Redford, que aqui especialmente elogio recordando os seus filmes com Robert Mulligan, Arthur Penn, Abraham Polonsky, Alan J. Pakula e Sidney Pollack, de quem foi actor-fétiche, bem como a sua parceria com Paul Newman em "Dois Homens e um Destino"/Butch Cassidy and the Sundance Kid", de George Roy Hill
    Aplausos para uma carreira formidável e votos da continuação do maior sucesso para o seu Sundance Film Festival (ver também "Dignidade e respeito", de 21 de Junho de 2017).

domingo, 20 de janeiro de 2019

Conflito

     No primeiro volume dos "Textos Filosóficos" de Marco Túlio Cícero agora publicados pela Gulbenkian, ao jeito de diálogos, que vinha da Grécia, o antigo político romano faz, na discussão das Academias Antiga e Moderna, um resumo das principais correntes filosóficas da sua época, provenientes elas também da Grécia, que vale a pena trazer aqui brevemente.
     Segundo ele há que atender ao Epicurismo, ao Estoicismo e ao Cepticismo que ele próprio defende, embora o grande confronto seja entre Epicuro e Lucrécio de um lado, Zenão como "cabeça de fila" do outro.
      Resumidamente, na disputa entre o bem e o mal, o Epicurismo identificava-os com o prazer e a sofrimento, o Estoicismo com a virtude e o vício. Outras correntes vindas também da Grécia anterior adoptavam certas nuances, como os Peripatéticos, ou seguiam princípios diferentes, como os Sofistas e os Cínicos.
     A parte de razão de cada um decorre dos princípios e das consequências deles retiradas, nomeadamente por meio de silogismos, muito para além da simples contraposição do prazer e da virtude, como hoje em dia é comum serem resumidos Epicurismo e Estoicismo. A grande separação dava-se no que cada uma das escolas considerava "supremo bem" e também quanto à "felicidade".
     Tudo isto se encontra desenvolvido em "As Últimas Fronteiras do Bem e do Mal", ainda no primeiro volume, e depois no segundo, "Diálogos em Túsculo", de um ponto de vista mais prático.
    Retomada noutros destes textos filosóficos, a questão foi transmitida como conflito pela Antiguidade ao futuro e revelou-se prenhe de consequências. Não será difícil, de facto, verificar a influência da doutrina da virtude no Cristianismo e a desconfiança deste em relação ao Epicurismo.
                                    LIVRO TEXTOS FILOSOFICOS
     Por sua vez, Cícero exerceu grande influência em filósofos cristãos, como foi o caso notável de Santo Agostinho, que a ele terá ido buscar informação e conhecimento.
     Interessa aqui assinalar também o debate a que Karl Marx submeteu o Epicurismo na sua tese de doutoramento sobre "Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro", datada de 1841. Quanto mais não seja para constatar a não uniformidade do pensamento do Epicurismo, sujeito a evoluções em épocas sucessivas. O mesmo será, aliás, válido para o estoicismo.
     Mas o que aqui me traz é aconselhar os "Textos Filosóficos" de Cícero agora acessíveis em português numa tradução capaz, que permite ajuizar de toda a argumentação do seu tempo, séculos II-I A. C, a respeito de cada uma das duas grandes escolas de pensamento herdadas por Roma da Grécia. Em diálogo que permite avaliar o que milita a favor e contra cada uma delas, na argumentação e na pena do grande tribuno.
     Mesmo hoje em dia Epicurismo e Estoicismo são palavras do vocabulário comum, usadas por quem desconhece os conceitos que lhes estiveram ligados na origem e as razões desde o início invocadas de uma e outra parte neste debate. 
     Porque as obras de Cícero são muito claras e marcaram uma época e o futuro dela, aqui as aconselho sem restrições na edição da Gulbenkian da responsabilidade de J. A. Segurado e Campos, que fornece todo o contexto, num novo tempo que parece ter feito as suas escolhas, que interessa discutir. Para ver se entendemos melhores os nossos desentendimentos.
     Lembro ainda que de Epicuro foram publicadas em português as "Sentenças Vaticanas" e as "Máximas Principais" em 2017 pelo jornal Público.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Pensar junto

    Depois de "Ninfa moderna: Essai sur le drapé tombé" (2002) - que tem edição portuguesa de 2016 com tradução de António Preto na Imago/KKYM -, "Ninfa fluida: Essai sur le drapé-désir" (2015) e "Ninfa profunda: Essai sur le drapé-tourmente" (2017), no seu prosseguimeto Georges Didi-Huberman vai publicar este ano "Ninfa dolorosa: Essai sur la mémoire d'un geste", sempre na Gallimard.
   Justamente conhecido pelos seus livros sobre história e antropologia da arte, o autor, também filósofo, entre muitos outros livros tem igualmente publicados seis volumes de "L'oeil de l'histoire" nas Éditions de Minuit e o oportuno "Soulèvements" (Paris: Gallimmard/Jeu de Paume, 2016 - catálogo de exposição).
  Começa mesmo por definir "Ninfas: divindades menores sem poder «institucional», mas irradiantes de uma verdadeira potência para fascinar, para transtornar a alma e, com ela, todo o possível saber sobre a alma. Também perigosas, como o são a memória - quando identificada até aos seus continentes negros -, o desejo, o próprio tempo..." (2002, pág. 7, a tradução é minha).
   Melhor ou pior, todos conhecemos a maioria das imagens em causa nestes livros, mas a sua leitura atenta e em contexto pelo autor fá-las falar de maneira nova e diferente no seu todo e em cada uma das suas partes.
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    Mas os títulos desta série das Ninfas são enganadores pois, embora trate delas ao longo da história da arte, cada um dos livros transborda a propósito de cada uma delas para outros campos, nomeadamente a visão moderna da cidade e a fotografia no primeiro.
   Numa escrita densa mas clara o autor vai procedendo a associações diversas dentro de um mesmo campo e entre eles por forma a convocar a expressão "pensar junto" (pág. 93), o que eleva cada livro para um patamar superior de interesse e qualidade. Deste modo passa de imagens sacras para realidades e imagens profanas de um modo que as enobrece todas.
   Sem qualquer espécie de pruridos, Georges Didi-Huberman trata de uma iconografia da arte, com análise detida de cada obra, na sua maior parte reproduzidas junto ao texto, o que permite o confronto  visual ao leitor.
   Não me escusarei a dizer que a primeira Ninfa, a moderna, assume referências expressas a Aby Warburg, a Walter Benjamin mas também a Charles Beaudelaire na sua abordagem da iconografia moderna e de cada peça juntamente com a realidade que convoca em cada caso, nomeadamente a da cidade que é (quase) sempre e inevitavelmente Paris.
                                      Georges Didi-Huberman
   Já a segunda Ninfa, a fluida, é todo ele construído sobre os estudos de Warburg sobre Sandro Botticelli e Domenico Ghirlandaio, felizmente publicados em português (Imago/KKYM, 2012 e 2015, com tradução de Artur Morão), com especial atenção às intensidades que percorrem, aéreas e genitais, "A Primavera" do primeiro. E aqui é feita inteira justiça às obras e aos pintores estudados mas também, e até especialmente, ao fundador da iconologia num livro que termina sobre o cinema e a escola líquida do cinema francês segundo Gilles Deleuze, aliás numa perspectiva nova.
   Lembro que no início deste século XXI o autor tinha já publicado "L'Image survivante. L'Histoire de l'art et temps de fantômes selon Aby Warburg" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2002), época de que data a maior parte deste livro, e que ao mesmo António Guerreiro dedicou em 2018 "O Demónio das Imagens - Sobre Aby Warburg" (Lisboa: Língua Morta).
   Por sua vez a terceira Ninfa, a profunda, ocupa-se de Victor Hugo, romancista, poeta, filósofo mas também desenhador, de que o autor descobre uma poética de imanência do meio, do mar, da terra e do vento em composições antropomórficas das tormentas e do tormento, no prosseguimento da anterior mas com a identificação entre o fluido e a mulher. A inspiração de Hugo no "Da Natureza das Coisas" de Lucrécio (Lisboa: Relógio d'Água, 2015) é desenvolvida com pertinência e bons resultados.Também no essencial este volume foi escrito na mesma época dos anteriores, 2002-2003.
   Este ciclo das Ninfas, que vai agora continuar com a dolorosa, anunciado para Março deste ano, nasceu quase lateralmente na obra de Didi-Huberman mas, ampliado pelo seu uso no ensino e pela publicação de excertos, está a assumir agora uma dimensão própria que lhe confere uma nova centralidade na obra do autor, ela própria central na actual história e antropologia da arte, uma obra que aqui recomendo e a que voltarei.

sábado, 12 de janeiro de 2019

A casa dos mortos

   Assombardo pela morte, "The House That Jack Built - A Casa de Jack", o mais recente filme do dinamarquês Lars von Trier (2018) descreve, sobre argumento seu a partir de ideia de Jenle Hallund, episódios da vida de Jack/Matt Dillon contada em cinco incidentes por ele próprio ao diabo que lhe calhou, Verge, interpretado fatalmente por Bruno Ganz, que foi anjo para Wim Wenders em "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin" (1987).
  A conversa decorre em off, enquanto nas imagens vemos Jack, um psicopata obsessivo compulsivo, lidar em circunstâncias diferentes com as suas sucessivas vítimas, na maioria femininas, com a maior frieza. A primeira vítima do serial killer é interpretada por Uma Thurman.
   De uma violência brutal, "A Casa de Jack" remete para a mesma patologia em dirigentes políticos e noutros intervenientes bélicos ao longo da história do século XX por forma a prevenir-nos dos horrores que se podem estar a aproximar de novo, que estarão mesmo a desabrochar agora entre nós.        
                     
   Cada assassinato é apresentado como um acto separado, com as suas motivações gratuitas (o que significa sem motivos que não os fantasiados pelo serial killer) e o seu tratamento próprio, de modo a fazer ressaltar em episódios descontínuos o caso clínico grave de Jack, que surge também em breves mas repetidas imagens desfolhando folhas com palavras escritas em tamanho que as torna legíveis.
   Abundantes, as referências à arte não disfarçam, antes integram o tom da diiscussão entre o ódio do protagonista e o amor que, paradoxalmente, lhe contrapoe Verge. A casa que Jack quis construir em diversas ocasiões e deitou sempre abaixo acaba por ser, justificadamente, a casa dos que matou.
   O epílogo, já com os dois interlocutores presentes e retomando o diálogo inicial, fala de uma catábase sem anábase, como é próprio desde a Antiguidade. 
  Num filme moderno Lars von Trier usa sempre muito bem o fora de campo e a música. Recomendo-vos este filme muito bom, que tem fotografia de Manuel Alberto Claro e montagem de Jacob Secher Schulsinger e Molly Malene Stensgaard, para que se perceba com o que se lida na ocorrência desta psico-patologia grave em qualquer pessoa. E tenham o cuidado de remover as ameaças de hoje.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O imprevisto

    Pascal Quignard é um conhecido escritor francês com uma obra dividida entre a literatura e a filosofia. São conhecidos em Portugal alguns dos seus livros de ficção e o primeiro dos (até agora) dez volumes de "Dernier royaume", "As Sombras Errantes" (Lisboa: Gótica, 2003), um ciclo de pendor reflexivo e filosófico, embora tenha sido "Tous les matins du monde", feito em cinema por Alain Corneau em 1991, que o tornou mais conhecido.
    Em 2014 publicou em França "Critique du jugement" (Paris: Galilée), um título kantiano, para, como ele escreve, depois de ter deixado de ter de julgar por razões profissionais nas diversas actividades que exerceu, nomeadamente no ensino e na edição, reflectir sobre esta questão tão debatida em diversas disciplinas, entre as quais a filosofia - entretanto abandonara todas as suas actividades, essas e outras, para se dedicar exclusivamente à escrita. Com base, portanto, na experiência e no distanciamento.
    Trata-se de mais um livro excelente de um escritor muito considerado  em França e que conheço razoavelmente em especial na área filosófica. Dividido em quatro partes - 1. Krisis, 2. Phthonos. 3. Creatio, 4. Publicatio -, parte da discussão da questão da verdade para proceder depois à crítica do julgamento a partir da sua experiência e com base na filosofia, antiga e moderna, e na Bíblia, com extensão ao pensamento oriental, muito na linha do que tem feito a filosofia contemporânea.  
    O percurso da verdade para o julgamento tem distintas marcas heideggerianas, o que não surpreende num livro com influências do filósofo de "Ser e Tempo", embora ele não seja directamente convocado pelo autor no seu discorrer contínuo. Centra-se no julgamento popular do espectador na violência do combate de arena na Roma Antiga e depois no processo de criação artística, nomeadamente literária. Socorre-se de Espinosa e Kant (a publicação das três críticas em coincidência com a Revolução Francesa), Schopenhauer e Nietzsche, Freud e Lacan. Nota coincidências (Lully, Vermeer e Espinosa nasceram no mesmo ano). Ocupa-se das outras artes, nomeadamente do cinema em que refere a dificuldade do sonho explícito e o preto e branco (do mudo) - págs. 218-220.
     Com o seu jeito habitual de escrever fragmento atrás de fragmento, Pascal Quignard tem aqui um pensamento inquieto que saltita entre o longo (raro), o médio e o curto fragmento, no que atinge uma profundidade e uma clareza notáveis com largo recurso directo a citações e a breve narração de episódios da história (Marcel Proust, Emily Brontë, W. A. Mozart, entre outros), às vezes da sua história pessoal (a queima do seu livro "La Nuit sexuelle" em 2007).
                      
      Esse pensamento integra, ao contrário do que é dito no início, a crítica dos que julgam na nossa sociedade como ele julgou, quebrando tabus de ordem jurídica, política, social, religiosa e mediática com grande pertinência e apoio, por vezes, sobretudo na última parte, com algum exagero, noutros casos com algum pessimismo, justificado no contexto criado.
      O longo percurso pela história enriquece sobremaneira a argumentação, com algumas citações preciosas, tanto mais fecundas quanto mais raras e pouco conhecidas. A extensa listagem de palavras, susbstantivos e adjectivos, a respeito de certos assuntos aumenta a clareza e exemplifica exaustivamente os conceitos.
      Eis um belo livro filosófico original e criador - que acrescenta conhecimento -, em que de forma pertinente o imprevisto assume lugar de relevo. A preferência pela sombra, pelo escuro, sempre justificada, torna-o mais interessante num avanço imparável que, sem ignorar Deus, recusa o vazio. E o princípio repetido é o "não julgues" de Cristo a João.
      A perspectiva crítica é de desafio e curiosidade, o resultado forte e demolidor. Teria todo o interesse a tradução portuguesa pelo menos dos escritos filosóficos de Pascal Quignard, que já passou por Pedro Eiras em "Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos" (Deriva Editores, 2010).
     Destaco um excerto de um fragmento:
     "O fim da montanha é uma tensão como o fim do abismo é a vertigem. O fim da arte é a maior tensão possível. É o princípio da arte barroca. Tensão do estilo tendido entre os dois pólos do tempo desejante.
      Esta emoção gira sobre si mesma; vai cair; é uma vertigem.
      Deus não compreende aquilo que ele é." 
      (pág. 193, a tradução é minha).