sexta-feira, 31 de maio de 2019

Só contra todos

    "L'idiot"/"Durak" de Yuriy Bykov  (2014) é um filme que enfrenta a corrução numa pequena cidade russa por intermédio de Dmitri/Artyom Bystrov, um canalizador que estuda e receia que um prédio-dormitório esteja para ruir.
    Pede o apoio da presidente da câmara e das autoridades locais que, primeiro perturbadas, acabam por revelar a negligência daquele caso e o aproveitamento pessoal, entre outros, dos meios disponibilizados para reparar o dito edifício. Por isso nada fazem naquela emergência a não ser queimar os papéis que os comprometem.             
                     
    Dmitri é teimoso e insiste na evacuação do edifício mesmo depois do ajuste de contas local e de abandonar a família. Porque, se tiver razão, estarão em causa 800 vidas, o que ele considera importante e justificar a sua acção.
    A corrupção, que parece ser um problema que afecta a Rússia actual e uma boa parte do mundo contemporâneo, é aqui deslindada de forma clara e frontal, sem paliativos ou desculpas, por um pequeno homem que acaba por pôr em causa tudo e todos, para seu próprio mal afinal pois ninguém acredita no seu alerta e o prédio em causa não vem abaixo - daí o título dostoievskiano. 
   Também argumentista, autor da música e da montagem, Yuriy Bykov dá muito bem conta de si, com um realização contrastada e dinâmica que vai, por exemplo, do plano fixo longo ao travelling longo com toda a pertinência e equilibra dramaticamente o filme. A fotografia é de Kirill Klepalov. Não será, pois, um acaso que se fale do cineasta a propósito de um eventual cinema novo russo nos nossos dias.
    Passou esta semana no Arte.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Talvez escrever

   "Em Chamas"/"Burning" do sul coreano Lee Chang-dong (2018), que já nos dera entre outros "Poesia"/"Shi" (2010), é um filme muito bom, bem elaborado narrativamente e bem construído cinematograficamente. Tem argumento de Jungui Oh e do cineasta baseado em conto de Haruki Murakami.
   Com uma encenação em largura e em profundidade, o filme acompanha Lee song-so/Yoo Ah-in que se prende a Shin Hae-mi/Jeon Jong-seo, que conhecera na infância, antes desta viajar para África, para logo a seguir ao regresso a perder em favor de Ben/Steven Yeun. Fazendo que avança sem avançar, andando em círculo, abre a partir do sonho do protagonista, com as chamas que Ben dissera atear a estufas e o subsequente desparecimento de Shin Hae-mi.
                      
    Escritor sem livro que quer seguir William Faulkner, Lee song-so escreve antes do final violento que fora precedido pelo regresso inesperado da sua mãe e pelos objectos de Shin Hae-mi em casa de Ben, incluindo o gato, Bolha, que não era visível em casa dela e ali surge tal como o relógio cor-de-rosa dela.
    Feito de silêncios e elipses, tem uma música não indiferente que, sem cair na sopa audiovisual de hoje, permanentemente comenta, sublinha, contrasta em contraponto e inventa.
    A fotografia é de Hong Kyung-pyo, a música do conhecido Mowg (Lee Sung-hyun) e a montagem de Kim Da-won e Kim Hyun. A realização é sempre serena e segura, centrada no que é importante, mesmo se vazio, sem esquecer o fora de campo.
   Trata-se de mais um filme muito bom, sério, misterioso e profundo, que há que preencher nos seus enigmas e nas suas elipses, de um cineasta que merece a nossa melhor atenção. Prémio da melhor realização do Cinema Asiático 2018.

domingo, 26 de maio de 2019

Rejeitada

  "Uma Mulher Doce"/"Krotkaya", de Sergei Loznitsa (2017) é um bom filme do também documentarista ucraniano, diferente dos anteriores do cineasta de que contudo não desmerece.
   Uma mulher, doce/Vasilina Makovtseva, numa pequena vila russa recebe devolvida a encomenda que enviou por correio para o marido, preso na Sibéria. Sem explicações sobre tal devolução.
   Resolve então dirigir-se ao local em que ele se encontra para saber o que se passa. Desde o início, na estação dos correios e no autocarro, percebe-se o mal-estar reinante. Depois de uma viagem de comboio, a mulher doce adormece numa estação, sono de que é despertada para um percurso tormentoso em que se depara com recusa atrás de recusa.     
                       Sergei Loznitsa: ‘A Rússia não tem passado nem futuro, apenas um presente infinito’
  Depois de encontrar a defensora dos direitos humanos e de assistir do exterior a uma cerimónia de homenagem ao director da prisão, quando tentavam violá-la ela é acordada de novo na estação onde adormecera do que afinal tinha sido um sonho durante o sono. 
  Mesmo se em parte sonhado, o retrato da Rússia actual é duro e impiedoso, concentrando em si os pesadelos do passado, do presente e do futuro na descrição do percurso kafkiano da protagonista. E terá sido efectivamente sonho?
  Com o rigor estético a que Loznitsa nos habituou, geométrico antes da abertura do sonho, caótico depois, e grande importância do fora de campo é mais um bom filme dele, com fotografia de Oleg Mutu e montagem de Danielius Kokanauskis, sem música que não seja a diegética. Um filme moderno que segue em frente sem ceder em nada.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Eufórico

     Depois de "Spring Breakers: Viagem de Finalistas"7"Spring Breakers" que tinha chamado a atenção para ele, Harmony Korine realizou "The Beach Bum: A Vida Numa Boa"/"The Beach Bum" (2019) que se pretende comédia moralista. Com o seu habitual euforismo, o resultado é fraco.
     No silly state da Florida, um poeta de má vida e pobre, Moondog/Matthew McConaughey, casado com uma mulher rica, Minnie/Isla Fisher, perde esta num acidente de viação. No testamento ela deixa-lhe uma fortuna no caso de ele publicar um romance de sucesso.
                                  The Beach Bum Photo
        Com a filha, Heather/Stefania LaVie Owen a querer que ele se submeta a desintoxicação e reabilitação, ele foge para regressar à boa vida com o amigo Lingerie/Snoop Dog e continuar a escrever. Até que um livro de poemas seu é premiado.
        Tratada em tom de comédia, a ideia do poeta fora do sistema e contra ele é boa e funciona limitadamente como parábola num filme muito silly. Obra de adolescente, que o realizador continua a parecer.
       Contando com argumento de Harmony Korine, fotografia de Benoit Debie, música de John Debney e montagem de Douglas Crise, está longe de convencer mas percebe-se no actual momento político americano, em que vale tudo. O cineasta precisa de crescer e deixar filmes frágeis embora bem intencionados para fazer coisas mais sérias e sólidas, pois mesmo como realizador ainda não ultrapassou a incipiência satisfeita, aliás com muitos fãs sobretudo adolescentes.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Pura beleza

    "Três Rostos"/"Se rokh" é o mais recente filme de Jafar Panahi (2018), um realizador iraniano impedido de sair do seu país que mesmo assim tem conseguido continuar a trabalhar e a fazer os seus filmes saírem para o mundo. O que é muito bom porque nos permite conhecê-los.
    Aqui uma jovem que quer estudar no conservatório em Teerão para ser actriz, Marziyeh Rezaei, abre o filme com um apelo dramático num vídeo enviado por telemóvel ao cineasta. Vai ser a companheira dele, Bahnaz Jafari, actriz muito conhecida, a insistir em que partam na demanda da autora do apelo desesperado.
                     Trailer português do filme 3 Rostos
     O filme vai descrever o percurso de carro até aí chegarem, cheio de episódios pitorescos, alguns dramáticos, como o dos camponeses que se afastam quando percebem que não vêm ajudá-los, outros caricatos, como o do touro das bolas dde ouro. Já na ponta final o encontro com a rapariga por intermédio da amiga dela Maedeh Erteghaei, juntamente com a referência à velha actriz e cantora de antes da revolução que vive isolada e será, vista à distância enquanto pinta, o terceiro rosto, invisível.
    Com grande sobriedade, o cineasta segue um caminho de inspiração em Abbas Kiarostami - o do suicídio, o do percurso, o do enquadramento com aberturas rasgadas nas casas -, inteiramente transformada mas reconhecível na própria simplicidade e subtileza do filme, que termina também ele em plano fixo sobre a estrada serpenteante.
    Tem argumento do cineasta e Nader Saeinar distinguido em Cannes 2018, fotografia de Amin Jafari e montagem de Mastaneh Mohajer e Panah Panahi. Um grande filme com tratamento diferenciado da imagem, que inclui reflexos, cenas nocturnas e uma ou outra desfocagem do fundo, que não dispensa uma referência à situação do cineasta no seu país. Aqui  o recomendo.

sábado, 18 de maio de 2019

Das primeiras

   Doris Day (1922-2019) contracenava com Clark Gable em "Amor de Jornalista"/"Teacher's Pet" de George Seaton (1958), que foi um dos primeiros filmes que vi e não mais esqueci.
                          doris day james stewart o homem que sabia demais
    Especializou-se na comédia romântica ligeira dos anos 50 e 60 mas Hitchcock escolheu-a para "O Homem Que Sabia Demais"/"The Man That Knew Too Much" (1956), remake de um seu filme inglês de 1934, em que contracenava com James Stewart e cantava "Que sera sera". 
   Bonita e expressiva, foi também cantora popular, que foi como começou em 1938 antes de chegar ao cinema em 1948, de que se retirou em 1968 para se dedicar à televisão. Guardo dela uma boa recordação.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

O jogo do galo

    "Clash"/"Eshtebak", a segunda longa-metragem do egípcio Mohamed Diab (2016), é um filme terrível e sufocante passado em 2013 com presos no interior de um camião, decorriam os confrontos entre a Irmandade Muçulmana e os militares no Egpto.
    Tudo começa com a prisão de dois jornalistas americanos mas depois vão-se-lhes juntando membros e não membros daquela irmandade. Num espaço reduzido, em tentativa de diálogo com os militares, a situação dos presos torna-se penosa e aflitiva.         
                       
    Uma criança descobre numa parede os riscos do jogo do galo, o que contribui para amenizar entre vizinhos e conhecidos que nem sempre se dão bem. Entre os presos há duas mulheres, uma enfermeira e a outra mais jovem, religiosa.
    Sem espaço para o qual se expandir, o filme concentra-se no interior, para o final em movimento, e nas esperanças efémeras de libertação. Tem argumento de Khaled Diab e Mohamed Diab, fotografia de Ahmed Gabr, música de Khaled Dagher e montagem de Ahmed Hafez. A realização, muito boa, explora o espaço concentracionário sem dele sair e os actores são excelentes.
    É um bom filme dramático, violento, não aconselhável e pessoas sensíveis e passou na noite de ontem no Arte.

Três irmãos

   "Une maison sans toit"/Haus Ohne  Rach" da alemã de origem curda Soleen Yusef (2016) é um primeiro filme com interesse, um road movie sobre três irmãos que querem levar a mãe morta para o seu Curdistão iraquiano natal, para ser aí inumada junto do seu falecido marido, pai deles.
    Só um dos filhos sabe desde o início, como os seus tios e primos maternos sabem, que o pai deles tinha sido um traidor ao serviço de Sadam Hussein, com cujo regime colaborara, o que leva a família da falecida a opor-se ao projecto no próprio terreno curdo, ameaçado pelo DAESH.
                                
    Há um  taxista atrevido, desavenças e acusações mútuas entre os três irmãos, que mantêm, porém, o seu objectivo e após muitos esforços, com momentos hilariantes e absurdos à mistura acabam por convencer quem na família materna se lhe opunha e levar por diante o que pretendiam.
   Simples e bem feito, com atenta, variada e rica composição visual e também sonora, tem argumento da realizadora, fotografia de Stephan Burchardt e montagem de Hannes Bruun, sem música a não ser diegética - do leitor de cassetes do taxista. Passou na semana passada no Arte e deixa boa impressão sobre Soleen Yusef, que desde então se tem dedicado à televisão.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Novo e inventivo

   Depois de "O Polícia"/"Ha-shoter" (2011) e "The Kindergarten Teacher" (2014), que tinham chamado internacionalmente a atenção para ele, o israelita Navad Lapid estreou "Sinónimos"/"Synonymes" (2018), Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim deste ano.
    É um filme duro e estranho, de inspiração auto-biográfica, sobre um israelita que, cumprido o serviço militar em Israel, vai para Paris onde espera encontrar o que ambiciona. Durante a sequência de abertura, em que se descobre nu num apartamento deserto, Yoav/Tom Mercier encontra ou é encontrado por dois parisienses, Emile/Quentin Dolmaire e Caroline/Louise Chevillotte, que o salvam e passam a ajudá-lo.
    Emile pretende ser escritor mas não passa da página 42 do seu livro e Yoav cede-lhe pequenas histórias suas, escritas na sua terra. O primeiro fala ao segundo de um presente em que se esgotaram as perversões e ambos têm um encontro musical de sedução, notável.
   Por entre alusões à Guerra de Tróia e à extrema direita francesa armada, Yoav vai-se desembaraçando em França com o seu dicionário de sinónimos francês, sempre à procura de palavras próximas, não sem algum desajustamento que, depois da sessão fotográfica, desemboca na sua aprendizagem de francês por ter casado com Caroline e na subsequente revolta dele quando interrompe um concerto.
                                  
      O filme termina com Yoav a tentar arrombar a porta do apartamento daqueles que o tinham acolhido, onde tinha começado, não sem que antes Yaov exija de Emile a devolução das histórias que lhe oferecera.
      Tem grande inventiva visual e sonoro, com planos espantosos do protagonista a caminhar pelas ruas de Paris de cabeça baixa, com composição colorida e figurativa dos planos e com uma dinâmica que permite acompanhar o movimento constante de Yoav, o que ele diz e o que lhe acontece.
      De uma rara violência comprimida que no final explode, "Sinónimos" é um belo filme muito físico, intenso e provocador, que nos desinquieta do nosso conformismo instalado. O plongé do protagonista sozinho à noite frente a Notre Dame de Paris é muito bom e elucidativo.
      Com excelente, não-convencional e inventivo uso da linguagem do cinema, tem argumento de Navad Lapid e Haim Lapid, fotografia de Shai Goldman e montagem de Neta Braun, François Gedigier e Era Lapid a quem é dedicado, sem música que não seja dirgética. Os actores são notáveis, com destaque para Tom Mercier.
      "Sinónimos" de Navad Lapid é grande, raro cinema, em que o espectador tem de se dispor a participar para o completar na sua plenitude. Se o fizer perceberá a crítica do filme do sionismo agressivo e de um liberalismo passivo e vulnerável, por Yoav aproximados e tomados como equivalentes. O júri de Berlim, presidido por Juliette Binoche, não se enganou. Tem estreia em Portugal marcada para amanhã, quinta-feira.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Boa fama

    Jean-Claude Brisseau (1944-2019) foi um importante cineasta francês em cujos filmes a mulher, o erotismo e o sexo tiveram papel predominante, que se tornou conhecido sobretudo pela trilogia "Coisas Secretas"/"Choses secrétes" (2002), "Os Anjos Exterminadores"/"Les anges exterminateurs" e "À Aventura"/"À l'aventure". Muito apreciado pela crítica mais esclarecida, os seus filmes levantaram polémica em França.
     Senhor de um estilo cinematográfico além de uma temática próprio, soube ser irónico e crítico, o que o tornou mais interessante pois quebrou a potencial monotonia dos seus filmes. Com bom gosto, tratou temas escabrosos de uma maneira apropriada, ligando mesmo sexo e misticismo.
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      Numa obra não muito extensa, avultam "Le bruit et la fureur" (1988), "Noce blanche" (1989), "Céline" (1992), "L'ange noir" (1994) e "Les savates du bom Dieu" (2002). Os seus dois últimos filmes longos. "A Rapariga de Parte Nenhuma"/"La fille de nulle part" (2012) e "Que o Diabo nos Carregue"/"Que le diable nous emporte" (2018) culminaram da melhor maneira um percurso pessoal rico e original. 
      Havia nos seus filmes uma intensidade especial que os tornava únicos e impedia a indiferença, tornando-o um dos principais cineastas franceses do seu tempo, com repercussão internacional.. Aqui o recordo sentidamente na hora da sua partida.

sábado, 11 de maio de 2019

Hegemónico

   "Vingadores: Endgame"/"Avengers: Endgame" de Anthony e Joe Russo (2019), que depois de dois "Capitão América" é o segundo "Vingadores" que dirigem, com argumento de Christopher Markus e Stephen McFelly sobre personagens criadas por Stan Lee e Jack Kirby e banda desenhada de Jim Starlin, novo record de bilheteira no fim de semana da sua estreia na América, é um grande espectáculo fastidioso e cansativo e uma nulidade como cinema. Eu explico-me.
    Sempre fui avesso ao universo dos super-heróis da Marvel, de que este é o 22º filme, que sei ter grande número de adeptos em especial entre os mais novos, Compreendo que seja importante para o imaginário americano, estreitamente vigiado, e reconheço o interesse da articulação entre banda desenhada e cinema, mas não vou mais longe do que isso.
    Sem qualquer apoio científico, de que obviamente não precisa, o filme recupera o hoje clássico "Regresso ao Futuro"/"Back to the Future" de Robert Zemekis (1985, 1989, 1990) com a ideia da viagem no tempo até um ponto a partir do qual se encontrariam duas realidades diferentes. A ontologia digital do cinema de que falam Thomas Elsaesser e Malte Hagener em "Film Theory" (2010) encontra aqui o seu apogeu.
                                     
       Com miséria de ideias e miséria de imagens, empastadas e caóticas, e de música pomposa, só se entende como propaganda interna e internacional da América mas só convence quem estiver convencido já, o que não é de maneira nenhuma o meu caso. Embora perceba que mais do que nunca os Estados Unidos precisam de se mostrar como vencedores imbatíveis.
     Ressalvo a destruição em cinzas arrastadas pelo vento do monstruoso vilão no final e a presença, dois ou três minutos de Tilda Swinton careca. Mas vejam para perceberem completamente a indigência a que, sempre com grande espectáculo, chegou na actualidade o cinema americano, já não de Hollywood mas de Silicon Valley. 
      Tem potencial lúdico sobretudo junto da juventude que é o que na sociedade do entertainment mais interessa. Mas o cinema americano e não só vai passar a ser como isto, mero divertimento muito rentável contra quaisquer outras considerações de índole cultural ou artística. Até porque para os americanos isto é arte e cultura americana, evidentemente. 
      Hegemónico, assim o cinema americano continua a dominar o mercado do cinema e já não a sua qualidade, como no passado chegou a acontecer. Detestável e indispensável, como muita coisa que acontece nos nossos dias.

Pensar duro

     O meu Claudio Magris é um grande escritor que, enfrentando os temas mais difíceis no ensaio e na ficção tem desenvolvido uma obra extraordinária. Triestino, ele tem sabido acolher e prolongar Italo Svevo com mestria, conhecimento, escrita elaborada e densa.
    Quando envereda pela ficção vai ao encontro dos lados mais obscuros e violentos da história para os trazer à luz da actualidade, como acontece em "Um outro Mar", "E Então Vai Entender", "Às Cegas" e "Uma causa improcedente", também ensaio histórico.
     No ensaio ele tem publicado livros, como "A História Não Acabou" e "Alfabetos", que reúnem o que escreveu para a imprensa italiana e outros textos de circunstância em que atinge extremos de completude e profundidade em termos sempre muito bem informados. O que desenvolve nos textos mais curtos sobre o quotidiano em "Instantâneos". 
     Por exemplo em "Alfabetos" tem palavras que são plenamente actuais sobre o século XX e o nosso tempo, nomeadamente sobre o "nacionalismo" (págs. 288-295), que se destacam num panorama completo sobre a europa-central e de sudeste, sobre escritores e literaturas como a praguense e a norueguesa em que revela inteiro conhecimento de causa.
                                         Danúbio        
      Grande escritor e grande pensador que é, não se queda pelos lugares-comuns sobre temas e autores mais conhecidos, antes entra onde a vida doeu e dói sem complacência nem compromissos que não sejam consigo próprio e com a verdade. 
     Editado em português pela Quetzal, Claudio Magris é um grande nome da literatura mas também da teoria da literatura e da cultura, hoje em dia indispensável por a partir do passado nos permitir entender de maneira meridianamente clara o presente.
      Por muito que se divague sobre a originalidade do presente, é preciso conhecer a história sem facciosismo, como ela decorreu e os seus acontecimentos mais importantes se enquistaram, enredaram e expandiram de forma ofensiva e desumana. Será insuficiente e errado pensar o presente sem essa informação desenvolvida da história geral e da história da cultura.
                       claudio-magris
     Sem minimizar nada, ele ergue-se a toda a sua dimensão de escritor nas saborosas e judiciosas crónicas improvisadas sobre o presente, o quotidiano actual, e nas obras de ficção em que atinge um fulgor incomparável.
     Mas a sua obra-prima é "Danúbio", o livro que o tornou mais conhecido e é um dos mais importantes do nosso tempo. Por aí em especial passa um saber da escrita e da literatura raro e de grande densidade.
    Agora torna-se necessário entender plenamente a dimensão filosófica e crítica do seu pensamento. Um grande escritor pensa e faz-nos pensar como leitores, por muito duro que  seja o seu pensamento como é o caso de Claudio Magris. O mais é o folclore literário dos best-sellers internacionais, de que ele está completamente afastado e eu também.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Cumprir as regras

     Forçar a nota narrativamente sem forçar a mão esteticamente é o que faz Gus Van Sant no seu último filme, "O Mar de Árvores"/"The Sea of Trees" (2015), um melodrama forçado e esforçado, muito artificial para pretender ser mais humano.
    Alterna o passado do casal com o presente do marido, Arthur Brennan/Matthew McConaughay que procura o melhor sítio para morrer em Aokigahara, uma densa floresta no Japão na proximidade do Monte Fuji. O japonês que aí encontra, que não sabe o caminho de saída e ele procura salvar, Takumi Nakemura/Ken Watanabe, diz-lhe estar no purgatório e que cada uma das flores que se abrem representa uma alma que chegou ao seu destino. 
                      Matthew McConaughey and Ken Watanabe in The Sea of Trees, Gus Van Sant latest full length feature film.
 
Even the best can sometimes get it wrong.  The Sea of Trees will no doubt be seen as a surprising glitch in Gus Van Sant’s otherwise exquisite contribution to contemporary cinema, like a slightly bland and warped sidestep. In a story about depressed men, Matthew McConaughey and Ken Watanabe, immerged in a forest at the foot of Mount Fuji, talk about their lives in hushed tones, about the regrets and the time gone by too fast, all beneath a constant drone of pompous violins and a sickly syrup that seems to drip over inch of the screen. The film, not particularly touching and never quite as spectral as it would like to be, disappointed both the willingly finicky spectators at the 2015 Cannes Film Festival and his die-hard fans, us included.
 
A few years earlier with Gerry (2002), Gus Van Sant was already filming in his static, dead-end way with people searching for themselves, playing games of hide and seek with death. But that was done with infinitely more grace and risk. At a beachside press conference in Cannes he briefly and placidly noted the difference between the two films, “In The Sea of Trees the heroes are more contemplative than lost. They talk about their life, while in Gerry they disappear completely into the landscape…” The director of Will Hunting, now 63, is no longer of an age where he needs to justify his choices. 
       No passado, a mulher dele, Joan/Naomi Watts, alcoólica, é operada a um tumor na cabeça que se revela benigno... mas morre logo a seguir num acidente de viação, para lhe reaparecer enigmaticamente convocada pela flor amarelo Inverno de que o japonês tinha falado sem ser percebido por Arthur e no lugar onde ele o tinha deixado, debaixo do seu casaco.
      Apesar da ostensiva alusão japonesa, não é Kenji Mizoguchi nem nada que se pareça, concentrando no seu final um simbolismo forçado, "para americano ver" mas que, dada a construção do filme, com boa vontade até funciona. 
       Sem recorrer às figuras de estilo que tornaram o cineasta conhecido desde "Gerry" (2002), tem uma pretensão excessiva e forçada à falta de melhor. Mas mesmo o seu extremar do artifício joga com os lugares-comuns do melodrama nos termos da sua complexidade, o que acaba por o justificar.
     Tem argumento de Chris Sparling, fotografia de Kasper Tuxen, música de Mason Bates e montagem de Pietro Scalia. Correcta, a realização é de Gus Van Sant. E é um filme do realizador de "Elephant" (2003), que nem sequer lhe fica mal e por isso merece ser visto.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Bem visto

    Com argumento de Carlos Saboga, "O Caderno Negro"/"Le cahier noir" de Valeria Sarmiento (2018) baseia-se em "O Caderno Negro do Padre Dinis", de Camilo Castelo Branco", continuação dos seus "Mistérios de Lisboa" que Raoul Ruiz fez em filme (2010) e em mini-série televisiva (2011).
   Centrado numa criança, Sebastien, com duas mães, Laura/Lou de Laäge e Suzanne de Monfort/Jenna Thiam, nenhuma das quais a mãe verdadeira dele, concentra-se na primeira e no seu percurso em tempos de Revolução Francesa na perseguição dele, entretanto confiado à segunda, entre Roma e Inglaterra.
     Há um pai cardeal, Rufo/Stanislas Merhar, e uma mãe desaparecida num esquema conhecido do romancista português. O filme começa mesmo com dois envenenamentos. Cruzando-se com personagens verídicas da Revolução Francesa, preserva muito bem o mistério sobre o conteúdo do "caderno negro" na sua construção leve e elíptica, que integra porém a paternidade da protagonista. 
                       
     Decidido "O Caderno Negro" segue sempre em frente salvo um flash back justificado, sem  demoras nem atalhos cumprindo um percurso narrativo que cativa e prende nos seus mistérios e nas suas reviravoltas, o que não impede a não uniforme estética do filme, que se compreende.
     Segue o rumo do filme anterior com inspiração e leveza, sem a grande complexidade formal dele mas com muito boa gestão da complexidade narrativa que tem por uma realização com múltiplas referências, até no cinema português, mais que competente sábia, o que ressalta logo da escolha da redução em vez do aumento da narrativa e dos meios de a desenvolver.
     Prolongando a inspiração ruiziana dos "Mistérios de Lisboa", em que aliás participou também Valeria Saemiento cujo filme anterior foi "Linhas de Wellington" (2012), este  um belo filme sobre a complexidadee da realidade e dos seus mecanismos, rodado em Lisboa e nas suas proximidades, com fotografia de Acácio de Almeida, música de Jorge Arriagada e montagem de Luca Alverdi.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Simples e feliz

    O documentário do brasileiro Walter Salles "Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang"/"Jia Zhang-ke by Walter Salles" (2014) é um filme imprescindível por, com a participação indispensável do cineasta chinês, permitir a este contar a sua história e a história dos seus filmes.
   Com largo recurso a excertos de filme, cumpre com eficácia o seu projecto, permitindo-nos acompanhar o cineasta chinês durante a visita na actualidade aos locais da sua infância e dos seus filmes, dando a palavra também à sua mãe e à irmã mais velha, aos actores - Hongwei Wang, Zhao Tao, Jiang Wu - e técnicos que trabalham com ele. Tudo muito esclarecedor sobre ele e o seu método de trabalho no cinema.
                       Walter Salles vem a Lisboa apresentar documentário sobre realizador chinês Jia Zhang-ke
    Escrito por Walter Salles, realizador nomeadamente de "Central do Brasil" (1998) e "Diários de Che Guevara" (2004), e o francês Jean-Michel Frodon, especialista no cinema chinês e em Jia Zhang-ke, deixa este falar sobre o que para ele é importante no cinema - a autenticidade dos seus actores, os temperamentos que encontra quando começa a filmar, as dificuldades que, ao contrário das facilidades, resultantes da rotina, o estimulam - e na vida - ganhar perspectiva para ver melhor o seu próprio país, a história e o presente da China e dos chineses.
   Esclarecendo os problemas dos primeiros filmes do cineasta com a censura, permite-lhe ao contar a sua história e a do seu pai evocar também a história mais recente da China. De caminho identifica a globalização com a americanização e a solidão da internet.
   Um filme muito recomendável por nos permitir conhecer melhor um dos grandes cineastas da actualidade, autor de "Xiao Wu" (1997), "Plataforma"/"Zhantai" (2000), "O Mundo"/"Shijie" (2004), "Dong" e "Still Life - Natureza Morta"/"San xia hao ren" (2006), "24 City"/"Er shi si cheng  ji" (2008), "Histórias de Shanghai - Quem Me Dera Saber"/"Hai shang chuan qi" (2010) e "China - Um Toque de Pecado"/"Tian zhu ding" (2013) entre outros.
    Neste filme Jia Zhangt-ke, que tem trabalhado  entre o documentário e a ficção, mostra-se um homem simpático e desembaraçado, com ideias claras, palavra fácil e bom poder de comunicação (sobre ele ver "Integridade", de 3 de Março de 2019).