sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Entre iguais

   Luis Buñuel nasceu em 1900 em Calanda, Espanha, e fez o seu primeiro filme, "Un chien andalou" co-Salvador Dali, em 1929. Manoel de Oliveira nasceu em 2008 no Porto, Portugal, e fez o seu primeiro filme, "Douro, Faina Fluvial" em 1931, mudo como o primeiro do outro mas que veio a ter duas versões sonoras.
   Quer um quer o outro enfrentaram circunstâncias adversas nos respectivos países, que levaram Buñuel, com passagem pelos Estados Unidos, a um exílio mexicano durante o qual desenvolveu uma parte muito importante da sua obra nos anos 50. Oliveira esteve sem fazer longas-metragens entre 1942 ("Aniki-Bobó") e 1963 ("Acto da Primavera"), um intervalo durante o qual se dedicou à curta-metragem e frequentou na Alemanha um curso sobre a cor no cinema.
  Nascidos com o cinema, puderam constituir-se com as obras respectivas como referências clássicas do cinema apesar da modernidade de ambos - modernos no início, no meio e no final das suas obras respectivas.
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    Mais desabrido e contundente um, mais requintado o outro, Buñuel procedeu a uma crítica demolidora da sociedade do seu tempo a partir de uma perspectiva surrealista, que atingiu o seu ponto máximo em"Los olvidados" (1950) e "O Anjo Exterminador"/"El ángel exterminador" (1962), após o que regressou à Europa onde fez os seus filmes finais. Por sua vez, Oliveira reflectiu na sua obra sobre a cultura portuguesa, a que esteve ligado no nosso segundo modernismo, e mundial, com cimos atingidos em "Amor de Perdição" (1978), "Francisca" (1981) e "Vale Abraão" (1993).
   As obras respectivas contam-se entre as mais importantes do cinema mundial, de que constituem pontos de passagem obrigatórios. Um despediu-se com "Este Obscuro Objecto do Desejo"/"Cet obscur objet du désir" (1977), o seu "Vertigo", enquanto o outro, sempre em diálogo com a cultura portuguesa, fez "O Gebo e a Sombra" (2012) como a sua longa-metragem final.
    Com um grande sentido da arte do cinema, tanto um como o outro contribuíram com filmes de grande alcance temático e grande impacto estético para a arte em que trabalharam. Oliveira chegou a fazer uma continuação de "Bela de Dia"/"Belle de jour", de Buñuel (1967), em "Belle toujours" (2006), o que confirma as afinidades entre ambos.
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   O universo pulsional do espanhol é até certo ponto retomado pelo português em termos mitigados, cruzados com outras marcas ligadas ao imaginário histórico e literário português sem prejuízo da crueldade, para o que talvez tenha contribuído o facto de o primeiro ter sido ateu e o segundo católico.
   Ambos se dedicaram também ao documentário, em especial Oliveira, participaram sempre nos argumentos dos seus filmes e passaram por França, onde fizeram alguns dos seus melhores filmes no decurso das respectivas carreiras, a de Luis Buñuel aí iniciada. Um contou com Catherine Deneuve também em "Tristana, Amor Perverso"/"Tristana" (1970), o outro com a filha dela, Chiara Mastroianni, em "A Carta"/"La lettre" (1998), e com o pai, Marcello, em "Viagem ao Princípio do Mundo" (1997). 
   Quer um e quer o outro marcados pela infância no início do século XX, Buñuel trouxe para os seus filmes os sinos de Calanda e o espírito de uma época, enquanto Oliveira não esqueceu nos dele o Porto da sua infância. Um e outro criaram personagens femininas de referência, em espaços narrativos e fílmicos abertos decidida e decisivamente à mulher, em especial como elemento perturbador.
   Foram reconhecidos em vida um como o outro, e a morte agiganta-os como os dois "monstros sagrados" ibéricos do cinema. Vale assim a pena vê-los aos dois ainda hoje um com o outro, um contra o outro para conhecer o que de melhor existe na história do cinema europeu e mundial.

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