domingo, 28 de julho de 2019

Carlos Melo Ferreira: falecimento

Lamentamos informar que Carlos Melo Ferreira faleceu no hospital, no dia 27/07/2019.
O corpo estará depositado na capela mortuária da Igreja de São João de Deus, em Lisboa, a partir das 18h de 29/07/2019 (segunda feira).
Na terça feira, dia 30/07/2019, haverá uma missa às 10h seguindo-se o funeral às 11h para o cemitério o Alto de São João, em Lisboa, onde o corpo será cremado.

Deolinda Freitas (esposa)
André Ferreira (filho) 

quarta-feira, 10 de julho de 2019

João Gilberto (1931-2019)

   Foi o grande inventor da Bossa Nova como cantor, músico e compositor, um tipo de música que se internacionalizou e o tornou mundialmente conhecido e admirado em língua portuguesa. Inspirando-se no jazz, que também influenciou, e na música moderna brasileira, que ajudou a criar com António Carlos Jobim, João Gilberto revelou um talento extraordinário, que o fez merecer o sucesso que teve. 
                          
   A fama chegou-lhe nomeadamente através de  "Chega de Saudade" e "Bem Bom" e os seus méritos, a sua batida e a sua voz, foram muito importantes para o aparecimento da música popular brasileira. Emocionado, aqui me curvo sentidamente perante a sua memória.

sábado, 6 de julho de 2019

Pior não é possível

   "A Revolução Silenciosa"/"Das schweigende Klassenzimmer", de Lars Kraume (2018), com adaptação dele de um livro de Dietrich Garstka, é um filme baseado em factos reais que decorree na Alemanha de Leste em 1956, ano do levantamento de Budapeste, na Hungria, esmagado pelas forças soviéticas.
    Numa turma do ensino secundário em que se contam as presenças de Theo Lemke/Leonard Scheicher, Kurt Wachter/Tom Gramenz, Lena/Lena Klenka, Paul/Isahia Michalski e Erik Babinsky/Jonas Dassler, é decidido comprir numa aula dois minutos de silêncio pelos húngaros em luta, do que os alunos têm conhecimento por uma rádio americana.
    Numa escalada tremenda, que chega a levar à presença do Ministro da Educação Leste alemão, sucedem-se os interrogatórios cerrados sobre a causa e a iniciativa do protesto, que acabam por deixar Erik à margem do resto da turma, ele que vem a saber entretanto do verdadeiro destino do seu pai, morto no final da II Guerra Mundial - o que é acompanhado pela revelação a Theo e a Kurt do passado dos respectivos progenitores.
                                     
   Colocados uns contra os outros, os alunos adolescentes acabam todos por se acusar a si próprios pela origem do  protesto, pelo que são todos expulsos, a maioria resolvendo então partir para a Alemanha Ocidental, pois, dizem, "pior que isto não é possível".
   Libelo terrível contra um regime de terror e opressão até dos mais novos, este filme de Lars Kraume permite uma divulgação maior que a do livro em que se inspira dos tremendos dilemas morais, que passam pela delação, colocados pelas autoridades Leste alemãs aos mais novos, dilemas que nem aos adultos devem ser colocados. Tanta prepotência para acabarem em pouco mais de três décadas.
   Com realização muito boa de um homem que tem trabalhado para o cinema e para a televisão, tem excelentes interpretações, fotografia de Jens Harant, música de Christoph Kaiser e Julian Maas e montagem de Barbara Gies. Passou ontem à noite na RTP2.

terça-feira, 2 de julho de 2019

O melhor

    António Manuel Hespanha (1945-2019) foi um jurista e historiador eminente, homem de grande saber e cultura com uma vasta obra publicada sobre História, Direito e Ciência Política e um ensino de grande qualidade na Universidade de Coimbra e na Universidade Nova de Lisboa, de que foi professor catedrático. Foi Investigador Honorário do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e docente de outras instituições do Ensino Universitário.
                        Morreu o historiador António Manuel Hespanha
   Tendo-se ocupado, numa obra muito extensa e rica, entre outros assuntos da história dos descobrimentos, notou neles a ausência sistemática dos descobertos, do "outro lado", o das populações indígenas, que eles afectaram. Foi o melhor na sua área científica, em que deixa discípulos e influências. A comunidade científica perde com a sua morte uma das suas figuras mais destacadas

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Ainda de pé

  Não sendo fã do rock, tive curiosidade em ver "Rocketman", de Dexter Fletcher (2019), uma biografia de Elton John/Taron Egerton em adulto, cuja carreira segui por alto.
  Como pontos mais destacados do seu percurso o encontro com Bernie Taupin/Jamie Bell, letrista e grande amigo, e o encontro com John Reid/Richard Madden, que depois de seu amante se vai tornar um agente possessivo e difícil. 
   Bem construído em flash-back do protagonista, o filme é suposto contar a verdadeira história de Elton, produtor executivo. Acompanha-o desde uma infância problemática por causa dos pais até à cura de desintoxicação a que se submeteu há 28 anos.             
                                         
   Foi uma vida turbulenta e instável até essa altura, que mesmo assim lhe permitiu romper e singrar num meio difícil e ingrato em que é conveniente não cometer erros, o que ele acumulou. A dificuldade da descoberta da sua homossexualidade na época acabou por fazê-la reverter em benefício da sua arte e da sua identidade.
  A realização puxa para o musical no seu melhor e é correcta e funcional para um filme institucional. Quero com isto dizer que tem explosões de energia e de interesse mas não chega a soltar-se. O argumento é de Lee Hall, a fotografia de George Richmond, a música de Matthew Margeson e a montagem de Chris Dickens.
   "Rocketman" é uma boa biografia ficcionada de um grande compositor e cantor que marcou o seu e o nosso tempo, tornando-se uma vedeta milionária, conhecida e respeitada em todo o mundo.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Actriz francesa

    Edith Scob (1937-2019) foi uma actriz francesa de rosto e figura singulares, que se distinguiu desde os seus inícios no cinema com cinco Georges Franju nos anos 50/60 e teve depois uma carreira longa em que me compete destacar "A Via Láctea"/"La voie lactée" de Luis Buñuel (1969), "Casa de Lava", de Pedro Costa (1994), "Tempos de Verão"/"L'heure d'été" de Olivier Assayas (2008), cinco filmes de Raul Ruiz e "Holly Motors", de Leos Carax (2012).
                     Le cinéma français pleure la disparition d’Edith Scob: grand second rôle, elle est décédée à l’âge de 81 ans
    Beleza atraente e estranha, foi uma grande actriz de quem vou sentir muito a falta, pois era uma figura emblemática do cinema contemporâneo, à qual o cinema francês muito ficou a dever.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Génio

   "Os Olhos de Orson Welles"/"The Eyes of Orson Welles" do historiador inglês do cinema Mark Cousins (2018) é um bom filme biográfico que percorre a vida e a actividade do genial cineasta americano a partir de imagens e sons de arquivo, que a voz do realizador e argumentista anima ao comentar.
   Dividido em capítulos, chama em especial a atenção para os desenhos de Welles, actividade menos conhecida e muito reveladora apesar de tudo aquilo que o autor destruiu. Na sua vida privada são focados os aspectos mais importantes, nomeadamente das influências materna e paterna, das viagens que fez e de amores e casamentos, também de posições políticas.                 
                       
   Da obra é dado o devido destaque ao que fez para rádio, teatro e televisão, fora dos lugares comuns, com sons e imagens de arquivo de que destaco o seu "King Lear" live para a televisão nos anos 50, e da obra para cinema é devidamente realçado cada filme, cena a cena, no conjunto de uma obra muito importante, com o devido enquadramento teatral, artístico, pictórico, também cinematográfico, para os filmes shakespearianos e o filme kafkiano em especial.
    É possível fazer a história do cinema em termos não literários mas cinematográficos, como Mark Cousins já tinha feito em "A História do Cinema: Uma Odisseia"/The Story of Film: An Odyssey " (2011) e aqui exuberaqntemente confirma. 
   Deste filme sobre um génio trabalhado, mal amado e hoje em dia mal conhecido, decorre que a história do cinema pode ser leve, clara e divertida, como os tempos de hoje exigem, não algo de compacto e maçador.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Isto ainda vai acabar mal

   "Os Mortos Não Morrem"/"The Dead Don't Die" de Jim Jarmusch (2019) é mais um grande filme do nome maior do cinema independente americano. Seguindo na esteira de "Só os Amantes Sobrevivem"/Only Lovers Left Alive" (2013), dele recupera a temática, agora com zombies, e a actriz principal, Tilda Swinton.
   Em Centerville, "um belo lugar" na América, em consequência de alterações climáticas que levaram a que a Terra saísse do seu eixo, começam a acontecer coisas estranhas: o sol põe-se a desoras, aparecem animais mortos ou fora do seu sítio e sobretudo os mortos do cemitério voltam à vida.
   Os polícias encarregados do caso, o Chefe Cliff Robertson/Bill Murray (de "Broken Flowers - Flores Partidas"/"Broken Flowers", 2005), o agente Ronnie Peterson/Adam Driver (de "Paterson", 2016) e a agente Mindy Morrison/Chloé Sevigny, os únicos da pequena localidade, fazem o que podem com os conhecimentos que adquirem no próprio local, nomeadamente no restaurante e na loja de bugigangas locais, enquanto a dona da agência funerária local, Zelda Winston/Tilda Swinton, tenta fazer pela vida. 
   Há ainda o eremita Bob/Tom Waits, que encontra um livro, "Moby Dick" de Herman Melville, debaixo de folhas e de terra, três jovens turistas e duas crianças numa população que morre mas não morre. A receita para acabar com os mortos-vivos é cortar-lhes a cabeça, no que Zelda com a sua espada é perita. 
                       Dead Don't Die
    Para além das referências cinematográficas, que partem de "Nosferatu, O Vampiro"/"Nosferatu, eine Symphonie des Grauens", de F. W, Murnau (1922), as alusões políticas vão mais longe que nos filmes de George A. Romero, também citado, numa organização fílmica que se move muito bem entre o diegético e o extra-diegético, especialmente na música e com os dois protagonistas, actores que leram coisas diferentes do argumento.
   "Os Mortos não Morrem", no original o título de uma canção de Sturgill Simpson, é mais uma peça inteligente e muito boa na obra de um dos mais importantes cineastas americanos da actualidade, 
    Com argumento do realizador, fotografia Frederick Elmes e montagem de Affonso Gonçalves, este filme não é uma crítica superficial mas profunda da América contemporânea. A crítica será a arte de amar sobretudo quando está em causa um filme que pratica a crítica como arte de amar, radicalmente crítico como este é. Oiçam bem a voice over final e escutem bem a música durante o genérico de fim, depois de Zelda ter regressado às origens e tudo estar consumado.
    Claro que se pode reconhecer pessimismo nos sinais que anunciam o fim do mundo, mas pelos vistos não andamos muito longe disso se não formos todos a tempo de reverter situações climáticas que parece ainda não serem irreversíveis. Como filme de zombies este último de Jim Jarmusch arranca gargalhadas da assistência, em que deve sobretudo provocar má consciência.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Animação portuguesa

    "Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias" é uma curta-metragem da portuguesa Regina Pessoa (2019), agora distinguida com o Prémio do Júri e o da banda sonora em curta-metragem no Festival de Annecy, em França.
    No melhor estilo da realizadora, responsável por "História Trágica com Final Feliz" (2006) e  "Kali, O Pequeno Vampiro" (2002), refere-se ao seu tio, que foi contabilista.       
                       Tio Tomas
   Com linhas dinâmicas, que ora são rectas ora se encurvam em espiral, e uma música muito boa, é um belíssimo e também sentido filme que utiliza o preto e branco e a cor..
   Com Regina Pessoa a animação portuguesa continua no seu melhor.

Voltar ao princípio

   "Foxtrot" é a segunda longa-metragem de ficção do israelita Samuel Maoz (2017), depois de "Líbano"/"Lebanon" (2009), como este um filme muito bom e chocante apesar da sua simplicidade narrativa, que não formal.
    Os primeiros 40 minuitos passam-se entre a chegada ao casal Feldman, Michael/Lior Ashkenazi e Daphna/Sarah Adler, da notícia da morte do seu filho, Jonathan/Yonaton Shiray, a cumprir o servição militar, e a chegada posterior do seu desmentido: quem tinha morrido era outro com o mesmo nome. Logo aí a posição superior da câmara, em plongé, e a sua mobilidade dão conta do esmagamento e da desorientação do pai.                
                       
    No segmento seguinte acompanhamos Jonathan na barreira que vigia no deserto, as conversas sobre a guerra e o passado dele com os seus camaradas, até tudo chegar a um acto precipitado de violência  No terceiro segmento, mais curto, o casal apresenta-se conformado com a morte do filho, que surge no epílogo.
    Com ironia e subtileza, o filme constrói o seu mistério e resolve-o, com a sugestão dos passos de dança. Mantendo a agilidade de câmara apropriada, que não impede que ela se detenha em planos longos, "Foxtrot" não abandona a ideia de fluidez da passagem do tempo e de desnorte que acompanha as suas personagens. E inclui mesmo uma notável cena de animação.
    Com argumento do cineasta, tem fotografia de Giora Bejach, música escassa e muito boa de Ophir Leibovitch e Amat Poznansky e montagem de Arik Lahav-Leibovich e Guy Nemesh. .

quarta-feira, 12 de junho de 2019

As contas da morte

  Mrinal Sen (1923-2018) foi um importante cineasta indiano do século XX, autor de uma obra extensa e pessoal que rivalizou com Satyajit Ray (1921-1992) e Ritwik Ghatak (1925-1976) no cinema no seu entendimento ocidental, distante do de Bollywood.
  Com uma obra marcante iniciada em 1955 e centrada em Bengala, combativa e portadora de traços narrativos e estéticos próprios, não trabalhava desde 2002.
                      Mrinal Sen's death marks the passing of a golden generation of Bengali filmmakers that also included Satyajit Ray and Ritwik Ghatak.
    Dominique Noguez (1942-2019) foi um escritor, crítico e historiador do cinema que dedicou especial atenção ao cinema experimental e ao cinema underground, que tirou do desconhecimento e da invisibilidade com estudos de referência.
    Seymour Cassel (1935-2019) foi um actor de cinema e televisão americano com uma carreira longa, que ficou famoso pela sua participação nos filmes do cineasta independente John Cassavetes (1929-1989), cujo grupo de actores permanentes integrou com distinção.
                      Minnie and Moskowitz 1971
   Ruben de Carvalho (1944-2019) foi um lutador anti-fascista, várias vezes preso pela PIDE. Jornalista e homem de cultura além de comunista, foi deputado à Assembleia da República e vereador da Cãmara Municipal de Lisboa, e organizou a Festa do Avante desde 1976, o que lhe mereceu um lugar destacado no Portugal democrático. 
   Era um homem simpático e afável, de verbo fácil e senhor das suas ideias, que amava o fado, sobre o qual escreveu, e deixou a melhor impressão pessoal e humana em todos aqueles que o conheceram.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Fantasmas

   "O Segredo da Cãmara Escura"/"Le secret de la chambre noire", do japonês Kiyoshi Kurosawa (2016), é mais um filme no género em que ele começou por se notabilizar e se tornou mais conhecido: o filme de fantasmas.
   O que quer que se pense do assunto, e eu sou céptico, tem de se reconhecer a mestria do cineasta, tanto narrativa como cinematograficamente.
    Na Europa, um fotógrafo de daguerreótipos na actualidade, Stéphane/Olivier Gourmet, usa como modelo a filha, Marie/Constance Rousseau, e tem um novo assistente, Jean/Tahar Rahim. Enquanto a mulher do fotógrafo, Denise/Valérie Sibilia, morta, continua a aparecer, Marie é aceite num novo emprego em Toulouse e, por pressão de Thomas/Mark Zidi, empreendedor imobiliário apresentado por Vincent/Mathieu Amalric, Jean tenta convecer o patrão a vender a casa que habita no subúrbio por alto preço.
                       O SEGREDO DA CÂMARA ESCURA
  Marie  morre em consequência de queda pelas escadas... mas continua viva com Jean até ao fim, em que finalmente se ausenta da igreja.
   Kiyoshi Kurosava tem um estilo de realização elegante e integra da melhor maneira os fantasmas junto de gente assombrada por diversos motivos - Jean chega a falsificar a assinatura de Stéphane para atingir os seus objectivos, como se para sublinhar a falsidade de tudo. E vamos indo que a remissão para o século XIX, com o daguerreótipo, permite mergulhar no mistério da imagem para que o título remete.
  Tem argumento do cineasta e Hiromi  Kurosawa, fotografia de Alexis Kavirchine, música de Grégoire Hetzel e montagem de Véronique Lange. Prefiro Kiyoshi Kurosawa fora deste género, mas vê-se com interesse e sem fastio sobretudo se, como eu, não se acreditar em fantasmas. 

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O Norte

   Natural de Vila Meã, Amarante, Agustina Bessa-Luís (1922-2019) foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX, ao nível de Teixeira de Pascoais, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro ou José Saramago.
   Chamou a atenção especialmente com "A Sibila" (1954), um dos grandes romances do século, para a partir daí prosseguir uma obra muito importante centrada no Norte do país, que bem conhecia e a inspirou. Um tanto na senda de Camilo Castelo Branco, fez a crónica do século XX português nortenho com um sentido do mistério e do trágico, nomeadamente da tragédia familiar, e um grande conhecimento das classes sociais, da natureza humana e da história, de forma a atingir nos seus livros uma dimensão universal.
                       Agustina Bessa-Luís
    Aproveitada por Manoel de Oliveira, seu amigo e admirador, que a convidou para "Francisca" (1981) a partir de "Fanny Owen" e adaptou diversas vezes depois, em "Vale Abraão" (1993), "O Princípio da Incerteza" (2002) e "Espelho Mágico" (2005), acabou por ter uma fama extra-literária importante. 
    Mas distinguiu-se também na biografia, no teatro, na crónica, nas memórias e no ensaio. Afastada da vida pública desde 2006, permaneceu uma figura de referência, muito importante e influente das letras portuguesas. Na hora do seu passamento cumpre-me destacar a perda de uma grande senhora da cultura portuguesa e manifestar o meu respeito perante a sua memória.

SOPHIA

      Nome do saber em grego, Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) foi a poetisa portuguesa mais importante do século XX e um dos maiores nomes de toda a poesia portuguesa e europeia. Comemoram-se agora 100 anos do seu nascimento.
       Natural do Porto, aí conviveu com os grandes nomes da cultura e da literatura portuguesa do seu tempo, como Eugénio de Andrade e Agustina Bessa-Luís, num tempo em que Portugal vivia sob o jugo salazarista contra o qual alguns dos melhores, entre os quais ela, resistiram. 
       Limpída e inteira na sua poesia, que depois dos primeiros poemas de 1940 começou a publicar em 1944, nela se oferecia no que mais apreciava do mundo com uma sensibilidade apurada. Sem constrangimentos, que não suportava, no que escrevia nos revelava o mundo, que desdobrava para nós numa comunicação poética pessoal e afectuosa. De olhos secos.
                                        Wook.pt - O Nu na Antiguidade Clássica | Antologia de Poemas sobre a Grécia e Roma
       Comecei a lê-la cedo, quando era publicada pela Ática e pela Moraes Editora, e não deixei de a seguir através da sua arte poética e depois de O Cristo Cigano, do Livro Sexto e de Geografia, incluídas as suas "artes poéticas" O seu português filigranado acolhia uma sensibilidade terrestre e luminosa, mediterrânica e marínha, atenta a tudo como Reiner Maria Rilke, que me faz lembrar.
      Ainda hoje, diria que sobretudo hoje é fundamental conhecê-la, quanto mais não seja através das diversas publicações da sua "obra poética". Em prosa destaco os seus contos para crianças e o clássico "O Nu na Antiguidade Clássica"", agora reeditado com uma antologia de poemas seus sobre a Grécia e a Roma antigas. Aproveitem. Isto sem esquecer o seu teatro, os seus ensaios e as suas traduções - Eurípedes, Shakespeare, Claudel, Dante e, para o francês, de alguns poetas portugueses.
       O que ainda hoje mais me emociona e motiva, o que mais aprecio na poesia encontro-o inteiro e intacto, palavra a palavra, som a som na poesia dela. Por isso aqui a recordo como poetisa e como lutadora política.
                                 

"A minha vida é o mar o abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada"


   Muito do melhor que aprendi na vida foi com a poesia dela que o aprendi. A beleza e o que ela significa e esconde. Como abordar o mundo e estar na vida. Como viver cada dia como se fosse o último, como saborear o convívio com a morte. Como enfrentar a descoberta do que não sabemos.
   Que a passagem do centenário do seu nascimento, homenageando-a, desperte a curiosidade dos mais novos são os votos que aqui deixo espressos. Eu vou continuar a lê-la e a procurá-la nos poetas mais novos. Ela é muito boa para impedir o esmorecimento ou o adormecimento pois nos transmite, decantada, a vida sem nos dar a paz.
   (O que desconcerta quem não me conhece e me espera entre a boquilha da Natália e o cachimbo do David, bons poetas sem dúvida, é encontrar-me em poesia acima de tudo em Sena, Sophia, Herberto e no outro que era muitos - a seguir em Pessanha, Oliveira, Fiama e Belo, todos depois de Luís Vaz.)

domingo, 2 de junho de 2019

Dois irrmãos e o mais

    Em "Billy The Kid - A Lenda"/"The Kid", segunda longa-metragem do actor Vincent D'Onofrio como realizador (2019), dois irmãos, Rio Cutler/jake Schur e Sara Cutler/Leila George, acompanham os últimos dias do famoso bandido do século XIX americano, que se transformou em mito e tem inspirado múltiplos e desvairados filmes.
    Preso pelo inevitável Pat Garrett/Ethan Hawk, o Kid/Dane De Hann vai tentar evadir-se até o conseguir, enquanto os dois irmãos são separados por iniciativa do seu odioso tio paterno, Grant Cutler/Chris Patt. Com Rio, que é o narrador, ferido, mesmo assim este vai tentar ajudar o Kid.
                      
     Com conversas filosóficas, cenas nocturnas muito bem resolvidas visualmente e alguns planos gerais de um cavaleiro que percorre a planície, "Billy The Kid - A Lenda" resolve muito bem a morte de Billy em dois planos, o do tiro e o do homem caído, para depois se dedicar à busca de Sara por Rio com a ajuda de Pat.
    O filme beneficia por não acabar com a morte do bandido, como geralmente acontece, e acompanhar depois dela a história dos dois irmãos. No duelo entre Pat Garrett e Grant Cutler tudo é também bem resolvido, depois de uma primeira intervenção de Sara, pelo novo e diferente kid, o narrador a que o título original se refere.
      A excelente fotografia é de Matthew J. Lloyd, a música composta e tocada por Lathan Gaines e Shelby Gaines é muito boa e bem utilizada, enquanto o argumento é de Andrew Lanham. Num bom elenco, de que o realizador participa num pequeno papel, há sobretudo trabalhos de composição notáveis.
    Género nos nossos dias raro, o western teve uma história muito importante na Hollywood clássica. Este filme, mais sobrevivente que outra coisa, deixa muito boa impressão também e até sobretudo pela voz do narrador, que criando distância aumenta a empatia. Simultaneamente sagração de Billy The Kid na sua morte e reabilitação de Pat Garrett depois dela, tenta espreitar um futuro que ali ainda mal se vê.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Só contra todos

    "L'idiot"/"Durak" de Yuriy Bykov  (2014) é um filme que enfrenta a corrução numa pequena cidade russa por intermédio de Dmitri/Artyom Bystrov, um canalizador que estuda e receia que um prédio-dormitório esteja para ruir.
    Pede o apoio da presidente da câmara e das autoridades locais que, primeiro perturbadas, acabam por revelar a negligência daquele caso e o aproveitamento pessoal, entre outros, dos meios disponibilizados para reparar o dito edifício. Por isso nada fazem naquela emergência a não ser queimar os papéis que os comprometem.             
                     
    Dmitri é teimoso e insiste na evacuação do edifício mesmo depois do ajuste de contas local e de abandonar a família. Porque, se tiver razão, estarão em causa 800 vidas, o que ele considera importante e justificar a sua acção.
    A corrupção, que parece ser um problema que afecta a Rússia actual e uma boa parte do mundo contemporâneo, é aqui deslindada de forma clara e frontal, sem paliativos ou desculpas, por um pequeno homem que acaba por pôr em causa tudo e todos, para seu próprio mal afinal pois ninguém acredita no seu alerta e o prédio em causa não vem abaixo - daí o título dostoievskiano. 
   Também argumentista, autor da música e da montagem, Yuriy Bykov dá muito bem conta de si, com um realização contrastada e dinâmica que vai, por exemplo, do plano fixo longo ao travelling longo com toda a pertinência e equilibra dramaticamente o filme. A fotografia é de Kirill Klepalov. Não será, pois, um acaso que se fale do cineasta a propósito de um eventual cinema novo russo nos nossos dias.
    Passou esta semana no Arte.

terça-feira, 28 de maio de 2019

Talvez escrever

   "Em Chamas"/"Burning" do sul coreano Lee Chang-dong (2018), que já nos dera entre outros "Poesia"/"Shi" (2010), é um filme muito bom, bem elaborado narrativamente e bem construído cinematograficamente. Tem argumento de Jungui Oh e do cineasta baseado em conto de Haruki Murakami.
   Com uma encenação em largura e em profundidade, o filme acompanha Lee song-so/Yoo Ah-in que se prende a Shin Hae-mi/Jeon Jong-seo, que conhecera na infância, antes desta viajar para África, para logo a seguir ao regresso a perder em favor de Ben/Steven Yeun. Fazendo que avança sem avançar, andando em círculo, abre a partir do sonho do protagonista, com as chamas que Ben dissera atear a estufas e o subsequente desparecimento de Shin Hae-mi.
                      
    Escritor sem livro que quer seguir William Faulkner, Lee song-so escreve antes do final violento que fora precedido pelo regresso inesperado da sua mãe e pelos objectos de Shin Hae-mi em casa de Ben, incluindo o gato, Bolha, que não era visível em casa dela e ali surge tal como o relógio cor-de-rosa dela.
    Feito de silêncios e elipses, tem uma música não indiferente que, sem cair na sopa audiovisual de hoje, permanentemente comenta, sublinha, contrasta em contraponto e inventa.
    A fotografia é de Hong Kyung-pyo, a música do conhecido Mowg (Lee Sung-hyun) e a montagem de Kim Da-won e Kim Hyun. A realização é sempre serena e segura, centrada no que é importante, mesmo se vazio, sem esquecer o fora de campo.
   Trata-se de mais um filme muito bom, sério, misterioso e profundo, que há que preencher nos seus enigmas e nas suas elipses, de um cineasta que merece a nossa melhor atenção. Prémio da melhor realização do Cinema Asiático 2018.

domingo, 26 de maio de 2019

Rejeitada

  "Uma Mulher Doce"/"Krotkaya", de Sergei Loznitsa (2017) é um bom filme do também documentarista ucraniano, diferente dos anteriores do cineasta de que contudo não desmerece.
   Uma mulher, doce/Vasilina Makovtseva, numa pequena vila russa recebe devolvida a encomenda que enviou por correio para o marido, preso na Sibéria. Sem explicações sobre tal devolução.
   Resolve então dirigir-se ao local em que ele se encontra para saber o que se passa. Desde o início, na estação dos correios e no autocarro, percebe-se o mal-estar reinante. Depois de uma viagem de comboio, a mulher doce adormece numa estação, sono de que é despertada para um percurso tormentoso em que se depara com recusa atrás de recusa.     
                       Sergei Loznitsa: ‘A Rússia não tem passado nem futuro, apenas um presente infinito’
  Depois de encontrar a defensora dos direitos humanos e de assistir do exterior a uma cerimónia de homenagem ao director da prisão, quando tentavam violá-la ela é acordada de novo na estação onde adormecera do que afinal tinha sido um sonho durante o sono. 
  Mesmo se em parte sonhado, o retrato da Rússia actual é duro e impiedoso, concentrando em si os pesadelos do passado, do presente e do futuro na descrição do percurso kafkiano da protagonista. E terá sido efectivamente sonho?
  Com o rigor estético a que Loznitsa nos habituou, geométrico antes da abertura do sonho, caótico depois, e grande importância do fora de campo é mais um bom filme dele, com fotografia de Oleg Mutu e montagem de Danielius Kokanauskis, sem música que não seja a diegética. Um filme moderno que segue em frente sem ceder em nada.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Eufórico

     Depois de "Spring Breakers: Viagem de Finalistas"7"Spring Breakers" que tinha chamado a atenção para ele, Harmony Korine realizou "The Beach Bum: A Vida Numa Boa"/"The Beach Bum" (2019) que se pretende comédia moralista. Com o seu habitual euforismo, o resultado é fraco.
     No silly state da Florida, um poeta de má vida e pobre, Moondog/Matthew McConaughey, casado com uma mulher rica, Minnie/Isla Fisher, perde esta num acidente de viação. No testamento ela deixa-lhe uma fortuna no caso de ele publicar um romance de sucesso.
                                  The Beach Bum Photo
        Com a filha, Heather/Stefania LaVie Owen a querer que ele se submeta a desintoxicação e reabilitação, ele foge para regressar à boa vida com o amigo Lingerie/Snoop Dog e continuar a escrever. Até que um livro de poemas seu é premiado.
        Tratada em tom de comédia, a ideia do poeta fora do sistema e contra ele é boa e funciona limitadamente como parábola num filme muito silly. Obra de adolescente, que o realizador continua a parecer.
       Contando com argumento de Harmony Korine, fotografia de Benoit Debie, música de John Debney e montagem de Douglas Crise, está longe de convencer mas percebe-se no actual momento político americano, em que vale tudo. O cineasta precisa de crescer e deixar filmes frágeis embora bem intencionados para fazer coisas mais sérias e sólidas, pois mesmo como realizador ainda não ultrapassou a incipiência satisfeita, aliás com muitos fãs sobretudo adolescentes.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Pura beleza

    "Três Rostos"/"Se rokh" é o mais recente filme de Jafar Panahi (2018), um realizador iraniano impedido de sair do seu país que mesmo assim tem conseguido continuar a trabalhar e a fazer os seus filmes saírem para o mundo. O que é muito bom porque nos permite conhecê-los.
    Aqui uma jovem que quer estudar no conservatório em Teerão para ser actriz, Marziyeh Rezaei, abre o filme com um apelo dramático num vídeo enviado por telemóvel ao cineasta. Vai ser a companheira dele, Bahnaz Jafari, actriz muito conhecida, a insistir em que partam na demanda da autora do apelo desesperado.
                     Trailer português do filme 3 Rostos
     O filme vai descrever o percurso de carro até aí chegarem, cheio de episódios pitorescos, alguns dramáticos, como o dos camponeses que se afastam quando percebem que não vêm ajudá-los, outros caricatos, como o do touro das bolas dde ouro. Já na ponta final o encontro com a rapariga por intermédio da amiga dela Maedeh Erteghaei, juntamente com a referência à velha actriz e cantora de antes da revolução que vive isolada e será, vista à distância enquanto pinta, o terceiro rosto, invisível.
    Com grande sobriedade, o cineasta segue um caminho de inspiração em Abbas Kiarostami - o do suicídio, o do percurso, o do enquadramento com aberturas rasgadas nas casas -, inteiramente transformada mas reconhecível na própria simplicidade e subtileza do filme, que termina também ele em plano fixo sobre a estrada serpenteante.
    Tem argumento do cineasta e Nader Saeinar distinguido em Cannes 2018, fotografia de Amin Jafari e montagem de Mastaneh Mohajer e Panah Panahi. Um grande filme com tratamento diferenciado da imagem, que inclui reflexos, cenas nocturnas e uma ou outra desfocagem do fundo, que não dispensa uma referência à situação do cineasta no seu país. Aqui  o recomendo.

sábado, 18 de maio de 2019

Das primeiras

   Doris Day (1922-2019) contracenava com Clark Gable em "Amor de Jornalista"/"Teacher's Pet" de George Seaton (1958), que foi um dos primeiros filmes que vi e não mais esqueci.
                          doris day james stewart o homem que sabia demais
    Especializou-se na comédia romântica ligeira dos anos 50 e 60 mas Hitchcock escolheu-a para "O Homem Que Sabia Demais"/"The Man That Knew Too Much" (1956), remake de um seu filme inglês de 1934, em que contracenava com James Stewart e cantava "Que sera sera". 
   Bonita e expressiva, foi também cantora popular, que foi como começou em 1938 antes de chegar ao cinema em 1948, de que se retirou em 1968 para se dedicar à televisão. Guardo dela uma boa recordação.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

O jogo do galo

    "Clash"/"Eshtebak", a segunda longa-metragem do egípcio Mohamed Diab (2016), é um filme terrível e sufocante passado em 2013 com presos no interior de um camião, decorriam os confrontos entre a Irmandade Muçulmana e os militares no Egpto.
    Tudo começa com a prisão de dois jornalistas americanos mas depois vão-se-lhes juntando membros e não membros daquela irmandade. Num espaço reduzido, em tentativa de diálogo com os militares, a situação dos presos torna-se penosa e aflitiva.         
                       
    Uma criança descobre numa parede os riscos do jogo do galo, o que contribui para amenizar entre vizinhos e conhecidos que nem sempre se dão bem. Entre os presos há duas mulheres, uma enfermeira e a outra mais jovem, religiosa.
    Sem espaço para o qual se expandir, o filme concentra-se no interior, para o final em movimento, e nas esperanças efémeras de libertação. Tem argumento de Khaled Diab e Mohamed Diab, fotografia de Ahmed Gabr, música de Khaled Dagher e montagem de Ahmed Hafez. A realização, muito boa, explora o espaço concentracionário sem dele sair e os actores são excelentes.
    É um bom filme dramático, violento, não aconselhável e pessoas sensíveis e passou na noite de ontem no Arte.

Três irmãos

   "Une maison sans toit"/Haus Ohne  Rach" da alemã de origem curda Soleen Yusef (2016) é um primeiro filme com interesse, um road movie sobre três irmãos que querem levar a mãe morta para o seu Curdistão iraquiano natal, para ser aí inumada junto do seu falecido marido, pai deles.
    Só um dos filhos sabe desde o início, como os seus tios e primos maternos sabem, que o pai deles tinha sido um traidor ao serviço de Sadam Hussein, com cujo regime colaborara, o que leva a família da falecida a opor-se ao projecto no próprio terreno curdo, ameaçado pelo DAESH.
                                
    Há um  taxista atrevido, desavenças e acusações mútuas entre os três irmãos, que mantêm, porém, o seu objectivo e após muitos esforços, com momentos hilariantes e absurdos à mistura acabam por convencer quem na família materna se lhe opunha e levar por diante o que pretendiam.
   Simples e bem feito, com atenta, variada e rica composição visual e também sonora, tem argumento da realizadora, fotografia de Stephan Burchardt e montagem de Hannes Bruun, sem música a não ser diegética - do leitor de cassetes do taxista. Passou na semana passada no Arte e deixa boa impressão sobre Soleen Yusef, que desde então se tem dedicado à televisão.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Novo e inventivo

   Depois de "O Polícia"/"Ha-shoter" (2011) e "The Kindergarten Teacher" (2014), que tinham chamado internacionalmente a atenção para ele, o israelita Navad Lapid estreou "Sinónimos"/"Synonymes" (2018), Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim deste ano.
    É um filme duro e estranho, de inspiração auto-biográfica, sobre um israelita que, cumprido o serviço militar em Israel, vai para Paris onde espera encontrar o que ambiciona. Durante a sequência de abertura, em que se descobre nu num apartamento deserto, Yoav/Tom Mercier encontra ou é encontrado por dois parisienses, Emile/Quentin Dolmaire e Caroline/Louise Chevillotte, que o salvam e passam a ajudá-lo.
    Emile pretende ser escritor mas não passa da página 42 do seu livro e Yoav cede-lhe pequenas histórias suas, escritas na sua terra. O primeiro fala ao segundo de um presente em que se esgotaram as perversões e ambos têm um encontro musical de sedução, notável.
   Por entre alusões à Guerra de Tróia e à extrema direita francesa armada, Yoav vai-se desembaraçando em França com o seu dicionário de sinónimos francês, sempre à procura de palavras próximas, não sem algum desajustamento que, depois da sessão fotográfica, desemboca na sua aprendizagem de francês por ter casado com Caroline e na subsequente revolta dele quando interrompe um concerto.
                                  
      O filme termina com Yoav a tentar arrombar a porta do apartamento daqueles que o tinham acolhido, onde tinha começado, não sem que antes Yaov exija de Emile a devolução das histórias que lhe oferecera.
      Tem grande inventiva visual e sonoro, com planos espantosos do protagonista a caminhar pelas ruas de Paris de cabeça baixa, com composição colorida e figurativa dos planos e com uma dinâmica que permite acompanhar o movimento constante de Yoav, o que ele diz e o que lhe acontece.
      De uma rara violência comprimida que no final explode, "Sinónimos" é um belo filme muito físico, intenso e provocador, que nos desinquieta do nosso conformismo instalado. O plongé do protagonista sozinho à noite frente a Notre Dame de Paris é muito bom e elucidativo.
      Com excelente, não-convencional e inventivo uso da linguagem do cinema, tem argumento de Navad Lapid e Haim Lapid, fotografia de Shai Goldman e montagem de Neta Braun, François Gedigier e Era Lapid a quem é dedicado, sem música que não seja dirgética. Os actores são notáveis, com destaque para Tom Mercier.
      "Sinónimos" de Navad Lapid é grande, raro cinema, em que o espectador tem de se dispor a participar para o completar na sua plenitude. Se o fizer perceberá a crítica do filme do sionismo agressivo e de um liberalismo passivo e vulnerável, por Yoav aproximados e tomados como equivalentes. O júri de Berlim, presidido por Juliette Binoche, não se enganou. Tem estreia em Portugal marcada para amanhã, quinta-feira.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Boa fama

    Jean-Claude Brisseau (1944-2019) foi um importante cineasta francês em cujos filmes a mulher, o erotismo e o sexo tiveram papel predominante, que se tornou conhecido sobretudo pela trilogia "Coisas Secretas"/"Choses secrétes" (2002), "Os Anjos Exterminadores"/"Les anges exterminateurs" e "À Aventura"/"À l'aventure". Muito apreciado pela crítica mais esclarecida, os seus filmes levantaram polémica em França.
     Senhor de um estilo cinematográfico além de uma temática próprio, soube ser irónico e crítico, o que o tornou mais interessante pois quebrou a potencial monotonia dos seus filmes. Com bom gosto, tratou temas escabrosos de uma maneira apropriada, ligando mesmo sexo e misticismo.
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      Numa obra não muito extensa, avultam "Le bruit et la fureur" (1988), "Noce blanche" (1989), "Céline" (1992), "L'ange noir" (1994) e "Les savates du bom Dieu" (2002). Os seus dois últimos filmes longos. "A Rapariga de Parte Nenhuma"/"La fille de nulle part" (2012) e "Que o Diabo nos Carregue"/"Que le diable nous emporte" (2018) culminaram da melhor maneira um percurso pessoal rico e original. 
      Havia nos seus filmes uma intensidade especial que os tornava únicos e impedia a indiferença, tornando-o um dos principais cineastas franceses do seu tempo, com repercussão internacional.. Aqui o recordo sentidamente na hora da sua partida.

sábado, 11 de maio de 2019

Hegemónico

   "Vingadores: Endgame"/"Avengers: Endgame" de Anthony e Joe Russo (2019), que depois de dois "Capitão América" é o segundo "Vingadores" que dirigem, com argumento de Christopher Markus e Stephen McFelly sobre personagens criadas por Stan Lee e Jack Kirby e banda desenhada de Jim Starlin, novo record de bilheteira no fim de semana da sua estreia na América, é um grande espectáculo fastidioso e cansativo e uma nulidade como cinema. Eu explico-me.
    Sempre fui avesso ao universo dos super-heróis da Marvel, de que este é o 22º filme, que sei ter grande número de adeptos em especial entre os mais novos, Compreendo que seja importante para o imaginário americano, estreitamente vigiado, e reconheço o interesse da articulação entre banda desenhada e cinema, mas não vou mais longe do que isso.
    Sem qualquer apoio científico, de que obviamente não precisa, o filme recupera o hoje clássico "Regresso ao Futuro"/"Back to the Future" de Robert Zemekis (1985, 1989, 1990) com a ideia da viagem no tempo até um ponto a partir do qual se encontrariam duas realidades diferentes. A ontologia digital do cinema de que falam Thomas Elsaesser e Malte Hagener em "Film Theory" (2010) encontra aqui o seu apogeu.
                                     
       Com miséria de ideias e miséria de imagens, empastadas e caóticas, e de música pomposa, só se entende como propaganda interna e internacional da América mas só convence quem estiver convencido já, o que não é de maneira nenhuma o meu caso. Embora perceba que mais do que nunca os Estados Unidos precisam de se mostrar como vencedores imbatíveis.
     Ressalvo a destruição em cinzas arrastadas pelo vento do monstruoso vilão no final e a presença, dois ou três minutos de Tilda Swinton careca. Mas vejam para perceberem completamente a indigência a que, sempre com grande espectáculo, chegou na actualidade o cinema americano, já não de Hollywood mas de Silicon Valley. 
      Tem potencial lúdico sobretudo junto da juventude que é o que na sociedade do entertainment mais interessa. Mas o cinema americano e não só vai passar a ser como isto, mero divertimento muito rentável contra quaisquer outras considerações de índole cultural ou artística. Até porque para os americanos isto é arte e cultura americana, evidentemente. 
      Hegemónico, assim o cinema americano continua a dominar o mercado do cinema e já não a sua qualidade, como no passado chegou a acontecer. Detestável e indispensável, como muita coisa que acontece nos nossos dias.

Pensar duro

     O meu Claudio Magris é um grande escritor que, enfrentando os temas mais difíceis no ensaio e na ficção tem desenvolvido uma obra extraordinária. Triestino, ele tem sabido acolher e prolongar Italo Svevo com mestria, conhecimento, escrita elaborada e densa.
    Quando envereda pela ficção vai ao encontro dos lados mais obscuros e violentos da história para os trazer à luz da actualidade, como acontece em "Um outro Mar", "E Então Vai Entender", "Às Cegas" e "Uma causa improcedente", também ensaio histórico.
     No ensaio ele tem publicado livros, como "A História Não Acabou" e "Alfabetos", que reúnem o que escreveu para a imprensa italiana e outros textos de circunstância em que atinge extremos de completude e profundidade em termos sempre muito bem informados. O que desenvolve nos textos mais curtos sobre o quotidiano em "Instantâneos". 
     Por exemplo em "Alfabetos" tem palavras que são plenamente actuais sobre o século XX e o nosso tempo, nomeadamente sobre o "nacionalismo" (págs. 288-295), que se destacam num panorama completo sobre a europa-central e de sudeste, sobre escritores e literaturas como a praguense e a norueguesa em que revela inteiro conhecimento de causa.
                                         Danúbio        
      Grande escritor e grande pensador que é, não se queda pelos lugares-comuns sobre temas e autores mais conhecidos, antes entra onde a vida doeu e dói sem complacência nem compromissos que não sejam consigo próprio e com a verdade. 
     Editado em português pela Quetzal, Claudio Magris é um grande nome da literatura mas também da teoria da literatura e da cultura, hoje em dia indispensável por a partir do passado nos permitir entender de maneira meridianamente clara o presente.
      Por muito que se divague sobre a originalidade do presente, é preciso conhecer a história sem facciosismo, como ela decorreu e os seus acontecimentos mais importantes se enquistaram, enredaram e expandiram de forma ofensiva e desumana. Será insuficiente e errado pensar o presente sem essa informação desenvolvida da história geral e da história da cultura.
                       claudio-magris
     Sem minimizar nada, ele ergue-se a toda a sua dimensão de escritor nas saborosas e judiciosas crónicas improvisadas sobre o presente, o quotidiano actual, e nas obras de ficção em que atinge um fulgor incomparável.
     Mas a sua obra-prima é "Danúbio", o livro que o tornou mais conhecido e é um dos mais importantes do nosso tempo. Por aí em especial passa um saber da escrita e da literatura raro e de grande densidade.
    Agora torna-se necessário entender plenamente a dimensão filosófica e crítica do seu pensamento. Um grande escritor pensa e faz-nos pensar como leitores, por muito duro que  seja o seu pensamento como é o caso de Claudio Magris. O mais é o folclore literário dos best-sellers internacionais, de que ele está completamente afastado e eu também.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Cumprir as regras

     Forçar a nota narrativamente sem forçar a mão esteticamente é o que faz Gus Van Sant no seu último filme, "O Mar de Árvores"/"The Sea of Trees" (2015), um melodrama forçado e esforçado, muito artificial para pretender ser mais humano.
    Alterna o passado do casal com o presente do marido, Arthur Brennan/Matthew McConaughay que procura o melhor sítio para morrer em Aokigahara, uma densa floresta no Japão na proximidade do Monte Fuji. O japonês que aí encontra, que não sabe o caminho de saída e ele procura salvar, Takumi Nakemura/Ken Watanabe, diz-lhe estar no purgatório e que cada uma das flores que se abrem representa uma alma que chegou ao seu destino. 
                      Matthew McConaughey and Ken Watanabe in The Sea of Trees, Gus Van Sant latest full length feature film.
 
Even the best can sometimes get it wrong.  The Sea of Trees will no doubt be seen as a surprising glitch in Gus Van Sant’s otherwise exquisite contribution to contemporary cinema, like a slightly bland and warped sidestep. In a story about depressed men, Matthew McConaughey and Ken Watanabe, immerged in a forest at the foot of Mount Fuji, talk about their lives in hushed tones, about the regrets and the time gone by too fast, all beneath a constant drone of pompous violins and a sickly syrup that seems to drip over inch of the screen. The film, not particularly touching and never quite as spectral as it would like to be, disappointed both the willingly finicky spectators at the 2015 Cannes Film Festival and his die-hard fans, us included.
 
A few years earlier with Gerry (2002), Gus Van Sant was already filming in his static, dead-end way with people searching for themselves, playing games of hide and seek with death. But that was done with infinitely more grace and risk. At a beachside press conference in Cannes he briefly and placidly noted the difference between the two films, “In The Sea of Trees the heroes are more contemplative than lost. They talk about their life, while in Gerry they disappear completely into the landscape…” The director of Will Hunting, now 63, is no longer of an age where he needs to justify his choices. 
       No passado, a mulher dele, Joan/Naomi Watts, alcoólica, é operada a um tumor na cabeça que se revela benigno... mas morre logo a seguir num acidente de viação, para lhe reaparecer enigmaticamente convocada pela flor amarelo Inverno de que o japonês tinha falado sem ser percebido por Arthur e no lugar onde ele o tinha deixado, debaixo do seu casaco.
      Apesar da ostensiva alusão japonesa, não é Kenji Mizoguchi nem nada que se pareça, concentrando no seu final um simbolismo forçado, "para americano ver" mas que, dada a construção do filme, com boa vontade até funciona. 
       Sem recorrer às figuras de estilo que tornaram o cineasta conhecido desde "Gerry" (2002), tem uma pretensão excessiva e forçada à falta de melhor. Mas mesmo o seu extremar do artifício joga com os lugares-comuns do melodrama nos termos da sua complexidade, o que acaba por o justificar.
     Tem argumento de Chris Sparling, fotografia de Kasper Tuxen, música de Mason Bates e montagem de Pietro Scalia. Correcta, a realização é de Gus Van Sant. E é um filme do realizador de "Elephant" (2003), que nem sequer lhe fica mal e por isso merece ser visto.