segunda-feira, 31 de julho de 2017

Jeanna Moreau (1928-2017)

    Formada por Jean Vilar no Festival d'Avignon e no Théâtre National Populaire e pela Comédie Française, foi actriz emblemática e fundadora da nouvelle vague francesa em filmes de Louis Malle, Roger Vadim, Jacques Demy e François Truffaut, além de ter desenvolvido uma carreira notável com os melhores cineastas do seu tempo, como Orson Welles,  Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Joseph Losey, Tony Richardson, Marguerite Duras, Elia Kazan, Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders
   Ela própria chegou a dirigir filmes como "Lumiere"(1976) e "A Adolescente"/"L'adolescente" (1979), e um documentário sobre Lillian Gish (1982). 
                    Jeanne_Moreau_04
    Ficaram célebres as duplas que formou com Maurice Ronet, depois com Brigitte Bardot para Malle, com Michel Piccoli em "Diário de Uma Criada de Quarto"/"Jounal d'une femme de chambre" de Buñuel (1964), e o seu trabalho em "Jules et Jim", com Oscar Werner e Henri Serre (1962), e em "A Noiva Estava de Luto"/"La mariée était en noir" (1968), ambos de Truffaut, mas também a sua participação em "A Noite"/"La notte", de Antonioni (1961), ao lado de Marcello Mastroianni, e nos filmes de Orson Welles.
    Actriz inteligente e sensível, de uma beleza própria e estranha, erótica e sensual, marcou as gerações seguintes de actrizes no cinema depois de ter encantado espectadores em todo o mundo. O seu lugar no cinema é incomparável como a sua presença era inconfundível. Foi a melhor actriz francesa da sua geração e influenciou como nenhuma outra a nouvelle vague.
                                  xJeanne_Moreau_3
     Um dos últimos trabalhos para o cinema de Jeanne Moreau, que começara nomeadamente ao lado de Jean Gabin num filme de Jacques Becker - "O Último Golpe"/"Touchez  pas au grisbi" (1954) -, foi com Manoel de Oliveira em "O Gebo e a Sombra" (2012).     
     Mítica em vida, continua mítica na sua morte. Ela é indissociável da minha memória afectiva e da minha história do cinema. Curvo-me comovido perante a sua memória.

domingo, 30 de julho de 2017

Lateral

   "Rogue One: Uma História de Star Wars"/"Rogue One", de Gareth Edwards (2016), é um spin off, uma brincadeira à margem da conhecida e prestigiada saga criada por George Lucas. Para aproveitá-la lateralmente, o que se compreende.
   Situado antes do episódio IV e depois de episódio III, não tem nada de especial narrativamente, com a filha, Jyn Erso/Felicity Jones, que procura o pai, Galen Erso/Mads Mikkelsen, cientista raptado pelo Império, com a ajuda daquele que tem por missão matá-lo, Cassian Andor/Diego Luna.    
                    Star Wars: Rogue One Felicity Jones
   Tudo é absolutamente previsível, com a invenção por Galen da nova arma Death Star, que é armadilhada e é preciso divulgar para o exterior, e a morte dele. Salva-se a ideia do guerreiro cego, Chirrut Îmve/Donnie Yen, e pouco mais.
    Pelo que já se tinha percebido, a saga "Star Wars" esgota-se no cinema com os seus previstos nove episódios, de que faltam os dois últimos filmes. Este "Rogue One" limita-se a alimentar a indústria com os seus efeitos especiais embora viva de uma aura, a daquela, que não chega a partilhar. Também interessa e faz sentido, sobretudo para os fãs.
    Mas para a indústria tudo serve e tudo vale, cinema, televisão, jogos de vídeo, é sempre a andar. Neste filme lateral e menor anota-se no final uma das últimas presenças no cinema de Carrie Fisher (1956-2016), ela que foi figura central de "Star Wars" desde o seu início.

sábado, 29 de julho de 2017

Entrelaçamento

   "Capital Humano"/Il capitale umano" é um filme de 2013 do italiano Paolo Virzì que só agora pude ver no Arte sob o título francês "Les opportunistes". Baseado no romance do americano Stephen Amidon, conta com argumento de Francesco Piccolo, Francesco Bruni e do próprio realizador.
   O que aqui me interessa é o entrelaçamento da narrativa nas suas três partes a partir de três personagens distintas: Dino Ossola/Fabrizio Bentivoglio, um pequeno especulador/investidor, Carla Bernaschi/Valeria Bruni Tedeschi, casada com o patrão do imobiliário, Massimiliano/Guglielmo Pinelli, e Serena Ossola/Matilde Gioli, filha do primeiro.
   Houve um acidente de automóvel em que foi atropelado um ciclista, que é central na economia narrativa, e cada uma daquelas três personagens vê a vida e também essa questão de maneira diferente, dependente das relações que tem estabelecidas e dos contactos que estabelece. Mas o filme faz aparecer em cada segmento narrativo elementos visuais de outros de diferentes perspectivas, e isso está bem visto e é bem tratado.
                      Créditos: Divulgação Legenda: Cena do filme CAPITAL HUMANO ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM*** ORG XMIT: AGEN1511101031193682 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
   Com alusões pertinentes ao teatro e ao cinema vistos por Carla na sua ignorância com as melhores intenções, o filme mantém o seu interesse de princípio a fim, com uma conclusão bem congeminada que junta Serena  e o seu improvável namorado, Luca Ambrosini/Giovanni Anzaldo, com este na prisão porque afinal era ele quem conduzia no momento do acidente.
   A montagem tensa e rápida de Cecilia Zanuso deixa sempre tudo muito claro e permite que a construção fragmentária, em mosaico, imponha o filme como uma obra curiosa, com alcance sociológico e político na sua estrutura policiária, bem imaginada, bem realizada e bem interpretada. A música é de Carlo Virzì e a fotografia de Jérôme Alméras e Simon Beaufils. 
   Às vezes há surpresas no cinema, como este filme, que arrisca acertadamente num terreno já explorado (Robert Altman, Paul Thomas Anderson) e milita em favor de uma cinematografia, a italiana, que se calhar até já saiu da crise em que se disse esteve mergulhada. E Paolo Virzì, de quem não conheço mais nada, é um nome a reter.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

O passado presente

   O novo filme de Sérgio Tréfaut, "Treblinka" (2016), parte do livro "Treblinka: A Surviver's Memory"/"Je suis le dernier juif" de Chil Rajchman e de outros depoimentos sobre o Holocausto para voltar a percorrer no Inverno as linhas de caminho de ferro que através da Rússia, da Ucrânia e da Polónia conduziam àquele infame lugar.
   Com a participação de actores, Isabel Ruth, Kirill Kashlikov e Nina Guerra, põe em palavras a experiência do campo de extermínio narrada por sobreviventes e torna-a real na actualidade que vivemos e na que se anuncia, ameaçadora.
   No "tudo volta a acontecer" deste filme somos abalados pelo relato vívido, sem qualquer esboço de flsh-back visual, do que aconteceu uma vez para que a história não se repita. O que é imostrável permanece não representado visualmente, como deve. Na fotografia de João Ribeiro são criados todas as nuances e todos os contrastes, com largo recurso aos vidros que desfocam, em volta da figura humana reduzida à sua mais simples e elementar expressão física.
                                  treblinka-poster-pt.jpg
    Na sua expressividade intensa e concentrada, "Treblinka" de Sérgio Tréfeut é um filme muito bom que parte da figura de Marceline Loridan-Ivens, a viúva de Joris Ivens (1898-1989), ela própria sobrevivente do Holocausto, para recordar o  horror inominável. Um filme que é preciso ver. 
    No filme de Tréfaut tudo passa pela palavra no ambiente fechado e soturno de um comboio em marcha. E as palavras não são diálogos entre personagens mas dirigem-se directamente ao espectador.
    Não é possível esquecer nem perdoar. Seria fundamental que se conseguisse evitar a repetição, para o que este filme é muito importante.

Começar de novo

   "Ubi Sunt" (2016) e "Coup de Grace" (2017) são as duas curtas-metragens em que Salomé Lamas, depois de ter trabalhado no documentário, ensaia os seus primeiros passos na narrativa ficcional
   O primeiro filme centra-se na performance e consegue envolver-se em discussões largas com presos sobre os seus crimes e penas que, como deve ser, aparentemente nada de substancial adiantam. Tem a participação do performer Christoph Both-Asmus e dos actores Ana Moreira e Valdemar Santos, além de jovens do Centro Educativo Santo António e do Grupo de caretos de Lazarim.
   "Ubi Sunt", que curiosamente é também o título de um livro de 2014 do poeta Manuel de Freitas, explora o Porto e as suas potencialidades antropológicas e expressivas. Este é o primeiro de um conjunto anunciado de três filmes.   
                                   
     Já "Coup de Grace", mais aberto narrativa e sobretudo visualmente, resolve-se em distâncias diversas que originam o contraste a partir do plano inicial de grande conjunto que miniaturiza homens como formigas e camionetas como brinquedos. Entre pai e filha, Miguel Borges e Clara Jost, ela regressada inesperadamente para surpresa dele, as coisas pouco avançam narrativamente mas, com a conclusão longa e festiva, fica o esboço e a intenção.
     Com uma sensibilidade artística a linhas e cores e um belo tratamento da escala dos planos e da profundidade, como o anterior, mais do que ele este é um filme de surpresas visuais e sonoras.
    Sempre em plano fixo, Salomé Lamas continua a descrever o seu percurso pessoal que é cinematográfico e artístico. Nos dois casos Isabel Pettermann está com a realizadora no argumento e em ambos a expressão sonora, nomeadamente musical, é importante sem prejuízo das palavras, dos ruídos e do silêncio.

sábado, 22 de julho de 2017

A terra-mãe

    No episódio desta semana, o quarto de nove, do seu "The History of Africa", Zeinab Badawi leva-nos a conhecer extensamente a história e pontualmente o presente do seu país natal, o Sudão.
    Filmada nos próprios locais com recurso ao testemunho de afamados especialistas, esta série que a BBCWorld transmite ao fim de semana desenvolve com desembaraço e competência um discurso atraente sobre o continente africano centrado na sua história, ainda hoje mal conhecida e sujeita aos estereótipos coloniais que ele deixa decididamente para trás - fora do tempo, fora de campo.
                      
     Com o seu notável poder de comunicação e o seu grande à vontade, Zeinab Badawi, que se celebrizou como apresentadora da BBC, põe a sua inteligência, a sua intuição, o seu saber e o seu encanto pessoal ao serviço de um objectivo preciso e de vulto, pois contar de forma completa a história de um continente imenso não é fácil sem abrir brechas no passado que o tornem incompreensível ou obscuro.
     Mostrar no mesmo episódio os vestígios históricos, como as pirâmides do Sudão, diferentes das egípcias e menos conhecidas do que elas, e também a celebração de um casamento na actualidade, tudo em imagens precisas e comentadas, dá conta da ambição e do alcance desta série.
     Para se tratar hoje em dia um assunto vasto e complexo como este a televisão mostra-se um excelente meio de divulgação, liberto dos limites estreitos das páginas dos livros. Felicito Zeinab Badawi por mais este seu sucesso. Vou fazer o possível por acompanhar todas as semanas e aqui recomendo.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

O terror moderno

    Foi o primeiro e principal responsável do filme de terror moderno, com mortos-vivos, iniciado em 1968 com "A Noite dos Mortos-Vivos"/"Night of the Living Dead" e que desde atraiu multidões de uma nova geração para os seus filmes. Com implicações e leituras políticas, o cinema de George A. Romero (1940- 2017) cortou com o gótico clássico e instalou o filme de terror num novo território, moderno.
   Um dos cineastas mais importantes e mais influentes da Nova Hollywood, deixou uma obra extensa e muito importante, que nos anos 70 se alargou à televisão e urge conhecer. Não nos refugiemos nos "clássicos", pois ele foi e é o novo clássico do filme de terror, com a mesma dignidade daqueles.  
                       George A. Romero
  A persistência temática da sua obra, a grande qualidade e originalidade dos seus filmes valeram-lhe fama e prestígio com o que trouxeram de novo ao cinema. Devo salientar aqui que o seu cinema não foi fechado ou hermético, manteve-se sempre popular. 
   A influência que exerceu no próprio cinema foi extraordinária, deixando atrás de si admiradores incondicionais, discípulos e seguidores em todo o mundo. Há uma fronteira entre um tempo antes dele e um tempo depois dele no filme de terror. Todos sentimos e continuaremos a sentir a sua falta.

domingo, 16 de julho de 2017

A loucura do ouro

   No início dos anos 80 do século XX corre a notícia de jazidas de ouro na Serra Pelada, no Brasil. Rapidamente se estabelece a corrida ao ouro, em massa. É este o ponto de partida de "Serra Pelada", filme de 2013 de Heitor Dahlia.
   Na multidão que se desloca acompanhamos Juliano/Juliano Cazarré e Joaquim/Júlio Andrade que vão encontrar, entre muitos outros, Lindo Rico/Wagner Mora e o Coronel Carvalho/Matheus Nachtergaele, e com eles e outros problemas muito difíceis. Nomeadamente o de saber se o ouro encontrado é de quem o descobriu ou do dono da terra, o de saber se aquilo que cada um tem por seu é respeitado pelos outros
   Com muita energia e grandes actores, o filme não pára de nos surpreender enquanto avança por entre conflitos primitivos suscitados pela cupidez do ouro e pelas rivalidades daí decorrentes. Não se chega a saber se, naquela perdição do ouro, se salva alguém a não ser aquele que consegue regressar a casa, em São Paulo. 
                    https://i.ytimg.com/vi/tVXegbD6i14/maxresdefault.jpg
   Matar e morrer faz parte do dia a dia da Serra, do "barranquinho", e a violência instalada não tem limites e não poupa ninguém. As mulheres presentes e o sexo vêm tornar tudo mais devastador por motivo de novas disputas e rivalidades. É essa a história deste filme que nos deixa esmagados como as suas personagens e as suas peripécias.
   Excelentes a fotografia, viva e contrastada, de Lito Mendes da Rocha e a montagem de Marcio Hashimoto, além de música bem escolhida. Este um filme que nos devia ter chegado mais tempo e só agora vi. 
   O ouro que suscita a pulsão da sua posse e o garimpo encontra neste filme, com argumento do realizador e Vera Egito, um retrato poderoso e muito eloquente. A violência do trabalho da sua extracção, que já tinha sido objecto da atenção de Sebastião Salgado, surge com clareza em imagens fortes. Ele ali instaurou a loucura pela sua posse e levou à perdição generalizada. 
   Mais do que Chaplin em "A Quimera do Ouro"/The Gold Rush" (1925), Stroheim tinha em "Aves de Rapina"/Greed" (1924) passado por aqui.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

É mais tarde do que pensas

   Numa homenagem bem vinda a Eric Rohmer, antes de retransmitir "Os Amores de Astrea e Celadon"/"Amours d'Astrée et de Céladon" (2007) o Arte transmitiu anteontem, quarta-feira, "Maestro", de Léa Fazer, que o homenageia e a Joclyn Quivrin, que foi actor daquele filme e, já falecido em 2009 com 30 anos, é co-argumentista deste.
   Com um tom rohmeriano, o filme apresenta o actor, Henri Renaud/Pio Marmaï, no meio da equipa em confronto com o grande realizador, Cédric Rovère/Michel Londsale, durante a rodagem de um filme que remete para o último de Rohmer.
                      .http://hyderabad.afindia.org/wp-content/uploads/2015/07/maestro4.jpg
   Os actores e as actrizes são muito jovens, como Rohmer usava, e o estilo do filme, sóbrio e bem planificado, envolve além dos actores alguns ruídos e várias vozes fora de campo além de música.
   Com humor reverente, o filme de Léa Fazer presta uma homenagem sentida e merecida a ambos, actor e realizador, sem deixar de lembrá-los a ambos num ambiente que frequentavam, o das filmagens de um filme. Michel Lonsdale está fabuloso na sua imobilidade magistral e um cast muito equilibrado e jovem dá-lhe sempre boa réplica num filme em que abundam as referências à actualidade, nomeadamente em outros, menores ecrãs.
   Depois de uma referência pacificada a Claude Lelouch, num aceno ao "cinema de autor" o filme termina sobre uma conferência de imprensa durante o Festival de Veneza com a sala vazia. É boa a homenagem e o filme desembaraçado e bem feito. À altura do conservadorismo e do bom gosto deste nome maior de "nouvelle vague" francesa.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Ascenção e queda

   Vencedor do Oscar do melhor documentário deste ano, "O. J.: Made in America", de Ezra Edelman (2016), é um filme muito longo, com um total de mais de sete horas em cinco partes, que a propósito do seu personagem principal, O. J. Simpson, traça um retrato impiedoso da América contemporânea.
   Com recurso a imagens de arquivo desde os anos 60, em especial sobre a questão racial, fornece um contexto sociológico e político para o caso, bem conhecido de todos, de que se ocupa. E sobre este socorre-se também de imagens de arquivo e de depoimentos dos intervenientes desde o início.
   Para contar a história do processo e julgamento por homicídio do protagonista não seria preciso tanto, mas Edelman leva até aos limites da probidade a sua investigação e até aos limites do suportável a atenção do espectador. Perplexo, este não terá que fazer mais do que formar a sua opinião sobre aquilo que lhe é dado a ver e ouvir.
    É muito difícil não ser pessimista sobre a América aqui mostrada, sociedade do espectáculo, do dinheiro e da artimanha, muito diferente da imagem que dela nos tenta passar Hollywood. As suas questões sociais não parecem poder ser ultrapassadas facilmente e o seu sistema judicial é muito permeável a outros factores, opinião pública e media incluídos, que não a procura da verdade e da justiça.
              
      A vida de O. J. Simmpson até ao momento do crime de que foi acusado foi longa e corresponde à sua ascensão enquanto que o processo que se lhe seguiu foi também longo e corresponde à sua queda. Figura mítica do imaginário americano por ser uma estrela desportiva e mediática, compreende-se o impacto que os acontecimentos tiveram na opinião pública e nos media e justifica-se a atenção que lhe dedicou aqui o cineasta num filme muito longo e pormenorizado.
      Na sua ambição de ser completo, "O. J.: Made in America" esgota o seu tema de uma maneira que um livro dificilmente conseguiria porque tem acesso às fontes de imagens de arquivo que utiliza e recolhe os depoimentos actuais da maior parte dos envolvidos na vida e no processo do seu protagonista. Sem inovar cinematograficamente, desempenha muito bem o papel que lhe cabe sem, aparentemente pelo menos, deixar de lado nada de relevante.
      Tal como o tempo que ele viveu, o processo de O. J. Simpson foi complexo e tortuoso pelo que há que estar atento a todo o filme, a todos os seus detalhes e implicações. É um filme que vivamente aconselho porque faz, de forma contextualizada e completa - e permite fazer - o processo do próprio país de maneira exemplar a partir das imagens de arquivo e do seu comentário na actualidade
     Sobre o país mais rico do mundo pairam sombras assustadoras que ele precisa de identificar e de vencer. Este filme foi transmitido na íntegra na sexta-feira e no sábado passados no Arte.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Enquanto os comboios passam

    Baseado no best-seller de Paula Hawkins, "A Rapariga no Comboio"/"The Girl on the Train" de Tate Taylor (2016) é um filme muito elaborado narrativa e cinematograficamente. O que se justifica e está parcialmente conseguido.
    As sucessivas mulheres de Tom/Justin Theroux, Rachel/Emily Blunt, Anna/Rebecca Ferguson e Megan/Haley Bennett, têm que, cada uma de seu modo, lidar com a memória e o presente dele, o que é feito a partir da primeira que viaja diariamente de comboio até New York fazendo sempre o mesmo percurso. A questão levanta-se a partir do que ela vê da janela do comboio e depois vai tentar averiguar.
   Se este facto traz à memória "Janela Indiscreta"/"Rear Window" de Alfred Hitchcock (1954) funciona apenas como ponto de partida e as semelhanças ficam-se por aí. A construção retrospectiva embora confunda um tanto justifica-se e está bem feita, salvo na materialização do que corresponde a mera imaginação da protagonista, que é discutível.
                                   A Rapariga no Comboio Poster
   O alcoolismo de Rachel está bem explicado e bem defendido como elemento narrativamente relevante na construção de uma personagem complexa e esquiva por Emily Blunt e a sua relação com o que a rodeia e com o passado é afectada pertinentemente por esse facto. A falta de lisura de Tom no seu comportamento com as mulheres, também bem defendida por Justin Theroux, é, por sua vez, bem contrastada com o comportamento das outras personagens masculinas.
   "A Raparida no Comboio" é um filme que prende a atenção do espectador, dividida entre uma morena e duas loiras, enquanto as personagens masculinas estão bem concebidas e interpretadas. Do lado feminino destacam-se a composição de Emily Blunt e algumas secundárias. É um filme que evidencia as relações que pretende estabelecer na história do cinema, demasiado simplificador e moralista mas que vai na direcção destes tempos.
    É hoje em dia comum os best-sellers literários chamarem a atenção do cinema, o que aqui volta a acontecer com bons resultados. Depois de "As Serviçais"/"The Help" (2011) e "Get on Up" (2014), Tate Taylor faz um bom trabalho de realização a trabalhar sobre argumento de Erin Cressida Wilson, enquanto a parte técnica está bem entregue e bem resolvida, com direcção de fotografia de Charlotte Bruus Christensen, música de Danny Elfman, montagem de Andrew Buckland e Michael McCusker e cenários de Kevin Thompson. 
   Agora leiam o livro de Paula Hawkins, que tem atrás de si uma grande tradição de autoras de policiais, editado em Portugal pela Topseller, e comparem. Estas adaptações cinematográficas por vezes redundam em servis leituras literais, que aumentam o sucesso do original sem nada lhe acrescentarem, o que neste caso a meu ver não acontece.