quinta-feira, 30 de março de 2017

O longo adeus

    Sempre alimentei dúvidas sobre o talento especial de Claude Sautet (1924-2000), muito apreciado em França mas que me surgia como um Claude Lelouch melhorado. Chamaram-lhe o Hawks francês, o que só agora começo a compreender.
    Graças ao Arte tenho podido rever e reavaliar o melhor do cinema francês para os franceses, percebendo assim o encanto estranho se bem que claro dos filmes do cineasta, que no seu melhor mantém uma reserva equivalente à retenção do grande mestre do cinema clássico americano.
    Tendo-se iniciado como argumentista nos anos 60 depois de uma curta-metragem em 1951 e uma longa em 1956, ele realizou filmes excelentes a partir de 1960 que fizeram o seu tempo e marcaram uma época no cinema francês fora da nouvelle vague e se calhar contra ela, como fizeram na mesma época Alain Cavalier, Costa-Gavras e Maurice Pialat. 
                     http://imgsrc.art.com/img/print/print/max-et-les-ferrailleurs-1970-directed-by-claude-sautet-romy-schneider_a-l-9889268-8363151.jpg
     "Contra Todos os Riscos"/"Classe tous les risques" (1960), com Lino Ventura, Sandra Milo e Belmondo, e "Um Iate para a Jamaica"/"L'arme à gauche" (1965) com o primeiro, Sylva Koscina e Leo Gordon, precederam "As Coisas da Vida"/"Les choses de la vie" (1970) e "O Estranho Caso do Inspector Max"/"Max et les ferrailleurs" (1971) , ambos com Michel Piccoli e Romy Schneider, e "César e Rosália"/"César et Rosalie" (1972), com Yves Montand, Romy Schneider e Samy Frei, que com actores fundamentais estabeleceram o seu caminho e firmaram o seu mérito como cineasta. Só nestes três filmes está, como em Maurice Pialat, parte do melhor do cinema francês da segunda metade do Século XX.
     Seguiram-se "Os Inseparáveis"/"Vincent, François, Paul... et les autres" (1974), com Montand, Picolli, Reggiani, Depardieu, Stéphane Audran e Marie Dubois, "Entre Duas Mulhers"/"Mado" (1976) com Picolli, Ottavia Piccolo, Jacques Dutronc, Charles Denner e Romy Schneider, e "Uma História Simples"/"Une histoire simple" (1978), com Schneider, Bruno Cremer e Claude Brasseur. Depois "Um Mau Filho" (1980) com Patrick Dewaere, Brigitte Fossey e Jacques Dufilho, "Um Homem Apaixonado"/"Garçon!" (1983) com Yves Montand e Nicole Garcia, "Alguns Dias Comigo"/"Quelques jours avec moi" (1988) com Daniel Auteuil e Sandrine Bonnaire, e "Um Coração no Inverno"/"Un couer en hiver" (1992), com Daniel Auteuil, Emmanuelle Béart e André Dussollier. Faço questão de referir aqui os actores para que se perceba que todos foram filmes excepcionais que criaram  um estilo e o mantiveram no seu melhor criando uma "escola"
     Mas acabou por ser o seu último filme, inédito em Portugal, que me levou a compreender tudo retrospectivamente. De facto "Nelly & Monsieur Arnaud" (1995), com Michel Sarrault e Emmanuelle Béart, é uma espantosa despedida com um certo pudor antigo que é pessoal e nada tem de acidental.
     Sempre presente no argumento e na adaptação, Claude Sautet soube escolher os seus temas, os seus actores e a sua própria mise en scène, invisível como nos clássicos, deixando todo o espo ao desenvolvimento da narrativa e ao trabalho dos actores, com personagens banais, do quotidiano, rumo à sua tragédia inominável. Nem sequer desigual, foi igual a si mesmo.
                     http://www.gablescinema.com/media/filmassets/slides/NellyandMonsieurArnaud3.jpg
     Assumido com reserva o papel de narrador e de observador, o cineasta soube delimitar um espaço e descrever um percurso pessoal e de excepção no cinema francês que deve ser devidamente ponderado e avaliado. O cinema francês não foi de facto apenas a nouvelle vague a partir dos anos 60. Na sua obra escassa, que conta apenas 14 longas-metragens, Claude Sautet é um cineasta a apreciar calmamente e a reconhecer mesmo passado todo este tempo.
      Bem vistas as coisas, ele expressou uma veia de inspiração pessoal ao melhor nível no cinema francês, cultivando simultaneamente uma certa distinção e um certo infortúnio fatal de personagens com traços de carácter bem definidos, com uma apetência pela felicidade e uma sujeição a todos os tombos que a sua perseguição implica.
      Um certo pudor antigo tratado com distância e tronia disso me convenceu decididamente na sua despedida. "La vieillesse du même" chamou Serge Daney a "Rio Lobo", o último filme de Howard Hawks (1970). Claude Sautet andou por aí no seu último filme. Para amar os seus filmes não é preciso odiar a nouvelle vague, que mais que um cinema político praticou uma política do cinema que o pode abranger a ele. Mas se acharem que sim por mim estejam à vontade.

sábado, 25 de março de 2017

O poeta e o seu fantasma

    Pablo Larrain é o chileno de quem este momento se fala no cinema e cujos filmes é preciso ver. Vi o seu "Neruda" (2016) e embora reconhecendo os seus limites apreciei.
    Pablo Neruda (1904-1973) foi um dos maiores poetas do século XX, Nobel da Literatura em 1971, politicamente comunista o que lhe trouxe dissabores vários parte dos quais, os sucedidos em 1948, o filme relata. De forma inteligente, o narrador do filme, o polícia que o persegue, surge como fantasma ou mesmo criação sua, o que o torna especialmente interessante, enquanto o protagonista é reduzido a um retrato conforme e bem comportado.
    É bem visto o regresso do realizador à história recente do seu país, de que Neruda foi parte ideclinável, uma vez que Pablo Larrain conhece o Chile muito bem e sabe perceber-lhe os meandros exteriores (um jovem tenente chamado Pinochet como guarda de um campo de concentração no final dos anos 40) e interiores (o herói e o seu duplo) como poucos outros saberão.
    Sobre este polícia de segunda que não quer ser personagem secundária paira a sombra de Roberto Bolaño (1953-2003), o grande escritor chileno precocemente desaparecido que naturalmente teria por si próprio ido aqui muito mais longe. Mas não importa, o argumento de Guillermo Calderón é muito bom e a realização sabe usá-lo de forma correcta, escorreita e feliz.
                    Neruda (image 4)
     "Neruda" acaba por ser o filme da sombra, Óscar Pelluchonneau/Gael Garcia Bernal em mais uma grande interpretação, enquanto Luis Gnecco no protagonista e Mercedes Morán como Delia del Carril, a sua mulher de então, cumprem exemplarmente as personagens tipificadas, no limite do estereótipo que lhes cabem num elenco sem falhas.
     Morrer na neve deve ser o sonho de qualquer polícia e aí ao cumprir-se eventual desejo Óscar sobe a lenda, para mais capaz de, como personagem de ficção, poder sobreviver a si próprio - é um bocado forçado mas funciona. E que perseguidor e perseguido nunca se cheguem a encontrar salvo, à distância, no final na neve está muito bem estabelecido em termos narrativos e em termos cinematográficos.
    Ao grande poeta era dedicado "O Carteiro de Pablo Neruda"/"Il postino", de Michael Redford (1994), com Philippe Noiret no papel do título e Massimo Troisi como "o carteiro", um filme de enorme e merecido sucesso embora este "Neruda" de Pablo Larrain seja melhor. Os seus limites decorrem de, não pretendendo apresentar-se como biopic, acabar por também o ser, com Paris, o exílio, Pablo Picasso e tudo.
     Na minha diáspora antiga, o meu conhecimento da poesia de Neruda, como o de Shakespeare ou Lorca por exemplo, é desde o início no original (nunca tive curiosidade de conhecer as traduções, mesmo as de grandes poetas portugueses), mas espero que este filme desperte a atenção dos espectadores para ele - dizem-me muito bem das suas traduções portugueses, que aconselho sem reservas. 
    Já agora virá a propósito perguntarmo-nos porque será que os ditadores e as ditaduras não gostam dos poetas e dos artistas salvo quando os podem controlar em seu próprio benefício.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Um contra o outro

   Carl Theodore Dreyer era nove anos mais velho que Sergei Mikhailovich Eisenstein, começou no cinema seis anos antes dele e sobreviveu-lhe 20 anos.
   Com o seu primeiro filme, "O Presidente", datado de 1919, Dreyer fez uma audaciosa transição entre o cinema mudo e o sonoro, com "La passion de Jeanne d'Arc" (1928) e "Vampyr" (1932) enquanto Eisenstein, que tinha começado em 1925 com "A Greve", resistiu ao sonoro contra o qual subscreveu um manifesto. Depois de "A Linha Geral ou O Velho e o Novo" (1929) e do controverso "Que Viva Mexico!" (1931/32) não conseguiu concluir o seu projectado e iniciado filme seguinte, o mítico "O Prado de Béjine", por razões censórias, só em 1938 tendo podido realizar "Alexandre Nevski".
   Quer isto dizer que fizeram ambos poucos filmes por razões diferentes, um porque assim o quis, o outro porque foi o que lhe foi permitido fazer. Mas trazê-los aqui um contra o outro parte do entendimento do cinema que cada um deles teve, Dreyer baseado na realidade, Eisenstein a partir da imagem e sobre ela, sem por isso o primeiro deixar de acreditar na imagem da realidade e o segundo na realidade da imagem.
   No seu cinema, influenciado por Soren Kierkegaard o cineasta dinamarquês criou filmes que se destacava uma dimensão ética, a da alternativa do espírito e da consciência da escolha, como escreve Gilles Deleuze em "A Imagem-Movimento", em que utilizou simples elementos da realidade, nomeadamente da cenografia para visitar épocas diferentes, como em "Dies Irae", "Ordet" e "Gertrud", retirando o melhor e maior efeito do tratamento de elementos realistas.       
                          
  Por seu lado, a partir do marxismo e da pintura europeia pós-renascentista e chinesa, Sergei Eisenstein criou filmes com uma poderosa carga materialista altamente elaborados, em que a composição da imagem nos seus elementos plásticos e na montagem transfigurava a realidade na transposição fílmica para se  tornar mais convincente em termos visuais e artísticos.
  Mais tarde Eisenstein veio a adoptar um tratamento contrapontístico do som nos seus filmes sonoros, em que estava em causa também a plasticidade dos sons, nomeadamente da música de Sergei Prokofiev em "Alexandre Nevski" e "Ivan, o Terrìvel". 
  Mas não apenas isso. Enquanto Dreyer usava o plano-médio e o grande plano ou planos de espaços vazios, Eisenstein usou o plano-geral, o grande-plano e o plano de pormenor com inteira consciência estética, a mesma que o levou a inaugurar no cinema o uso da secção de ouro, que também teorizou, e a montagem com inteiro intuito político.
   Enquanto um apelava para a interioridade do espectador com narrativas em que se contrapunham encarnações, nem sempre as mais óbvias, do bem e do mal, o outro jogou com a situação política em que trabalhou nos anos 20 apelando aos grandes sentimentos das massas, no limite franqueado do cinema de propaganda - fez "Outubro" para o 10º aniversário da revolução de Outubro de 1917.
                     Scene from “The Odessa Steps” sequence in the film Battleship Potemkin (1925), directed by Sergey Eisenstein.
    Como se cineasta oficial do regime soviético, Eisenstein caiu em desgraça nos anos 30, durante os quais teve uma vida dedicada ao ensino do cinema e à escrita, enquanto Dreyer trabalhava sem dificuldades em diversos países europeus. Mas aproximou-os trabalharem ambos a preto e branco e serem ambos argumentistas dos seus próprios filmes. os planos curtos, os contrastes da imagem e a elaboração da profundidade de campo no primeiro contrastaram com os planos longos, os cinzentos e a profundidade de campo limitada no segundo.
   A morte de Eisenstein aos 50 anos privou-nos de um génio do cinema que teria noutras condições podido ir muito mais longe mas mesmo assim nos deixou uma obra cinematográfica e teórica da maior importância. Dreyer morreu com 79 anos, depois de ter completado filmes que se contam entre os mais relevantes do cinema no século XX, tendo podido criar à medida que envelhecia e visto despontar outros ao seu nível por ele influenciados, como Ingmar Bergman e Robert Bresson.
    Mas tal como a vida, o cinema não é um longo rio tranquilo e a sua evolução permite detectar as grandes injustiças e os grandes benefícios. Embora a fama intelectual tenha tendido a beneficiar Eisenstein, Dreyer não lhe foi de maneira nenhuma inferior. Vejam os filmes de ambos, que se contam entre o melhor cinema de sempre.    
    Amem ou odeiem não lhes podem ficar indiferentes. Eu gosto de ambos mas é mais fácil preferir um contra o outro. A riqueza do cinema está na sua grande diversidade, o que deve ser apreciado e levar a que se conheça tudo o que nele interessa, em especial o que foi decisivo na sua história e na sua estética como é o caso destes dois imensos cineastas..

domingo, 19 de março de 2017

O combate de Clara

     Chegou-nos finalmente "Aquarius" do brasileiro de quem se fala, o realizador e argumentista Kleber Mendonça Filho (2016), com Sónia Braga, co-produção de Walter Salles e Carlos Diegues como produtor associado, ou seja, a nata do cinema brasileiro.
    Poderia dar para o melodrama telenovelesco mas a precisão cinematográfica do filme, explorando o espaço na horizontal contra a qual a protagonista, Clara/Sónia Braga, se eleva por três vezes subindo as escadas - a primeira na noite da festa, a segunda quando chega a casa com o neto, a terceira para descobrir a casa emparedada e estragada - antes de sair das águas para o embate final com os homens da construtora, Geraldo Bonfim/Fernando Teixeira e o seu neto Diego/Humberto Carrão.
     Num filme ele próprio dividido em três partes, "O cabelo de Clara", "Os amores de Clara", "O câncer de Clara", contra a pressão da construtora que o quer destinar a outro fim, mesmo contra a pressão dos seus filhos ela nega-se a abandonar a sua casa no edifício de que é a última habitante.    
      As liberdades que o filme toma com o tempo e com a imaginação de Clara (Barbara Colen em 1980) permitem defini-la melhor ao longo da sua vida e em especial no presente, enquanto as personagens ditas secundárias preenchem um espaço próprio sempre em função da protagonista.
                    
       Numa interpretação poderosa em que investe o seu imenso talento, Sónia Braga toma conta da sua personagem e do filme para dar toda a teimosia, toda a persistência e resistência mas também toda a espessura humana de Clara num caso em que tem inteira razão pois ali se viveu a sua vida e a dos seus. 
      Mas o Brasil conta com grandes actores que fazem o banheiro-bombeiro da praia, os dois empregados da construtora que acabam por denunciá-la e os dois líderes desta com um talento e uma entrega excepcionais.
       Estuante de energia na protagonista, o filme de Kleber Mendonça Filho dá-se todo o tempo em favor dela, sitiada mas insubmissa que se bate até ao fim contra tudo e contra todos até os levar de vencida.
      Com alguma coisa do cinema americano do New Deal e os seus heróis solitários contra um meio decadente, a parábola final de "Aquarius" em que Clara devolve aos Bonfim o seu câncer - o deles, que o dela tinha ela vencido no início - está muito bem vista. E se o filme tem sido muito bem acolhido em todo o mundo é porque aquele não é apenas um problema brasileiro.     
     Não podem descansar enquanto não virem este grande filme de actualidade candente e qualidade superior que vos ajuda a compreender melhor o mundo em que vivemos, em que a elite domina "com falta de carácter", acusação final de Clara num discurso poderoso que explicita em termos políticos o que ali está em jogo.

sábado, 18 de março de 2017

Sem ter onde cair morto

   Depois de "Alice" (2005) e "Como Desenhar um Círculo Perfeito" (2009), o português Marco Martins volta a estar na berlinda com "São Jorge" (2016) em que, de novo com Nuno Lopes, recupera os espaços fechados e sem horizontes de uma cidade-capital que dizem ser grande.
   Com uma excelente escolha dos espaços e da escala dos planos, o realizador, também co-autor do argumento com Ricardo Adolfo, segue dois anos antes do início um pugilista, Jorge/Nuno Lopes, que tem uma vida difícil pois está separado da mulher brasileira, Susana/Mariana Nunes, que tem de sustentar, e tem a seu cargo o filho pequeno, Nelson/David Semedo.
  Em tempo de crise, 2011, ele aceita trabalhar em "cobranças difíceis", que nessa situação aumentam, para fazer uso dos seus músculos, o que durante a primeira parte do filme não acontece. Nessa primeira parte destacam-se os diálogos familiares com não-profissionais que improvisam contracenando com actores profissionais, como José Raposo e Beatriz Batarda, os encontros entre Jorge e Susana e as situações em que ele entra como terceiro enquanto outros dois estabelecem o "diálogo" com devedores.
   Há um corte no filme quando Susana se afasta no beco, entra a porta e sobre as escadas à esquerda até desaparecer depois de ter dito ao protagonista que não regressa para ele, como ele queria. Segue-se a visita dele a uma nova casa, vazia, e depois o primeiro episódio em que Jorge é suposto exercer o seu físico, o que ele decide não fazer.
                   
    Após uma boa exposição o filme encaminha-se rapidamente para o seu fim com a porrada que é mesmo dada a um "devedor", que acaba por morrer "acidentalmente", como estas coisas são supostas acontecer em impunidade em Portugal ("ninguém te viu"), o que constitui para o protagonista um choque final, que é acompanhado pela aceitação de Susana de regressar para ele.
    Com um fim elíptico, pois não é preciso explicar sempre tudo num filme muito bem construído justamente em termos de elipse e de fora de campo, o pobre tipo que "não tem onde cair morto", como lhe diz a certa altura Susana, é um precioso retrato de um país fechado sobre si mesmo que se queixa de si próprio, e com razão.
    A interpretação de Nuno Lopes, justamente distinguida na Secção Orizzonti do último Festival de Veneza, é portentosa e vale o filme de que ocupa muito bem o maior espaço, lembrando o "Belarmino" de Fernando Lopes (1964), filme inaugural do cinema novo português dos anos 60 que aqui se torna uma referência óbvia. Do neo-realismo italiano, que o filme namora, para além da intervenção de não-profissionais a referência também óbvia é "Ladrões de Bicicletas"/"Ladri di biciclette", de Vittorio de Sica (1948), por causa do filho que segue o que acontece ao pai sem compreender. Presa das suas próprias contradições e angústias, o Jorge que víramos no início encomendar-se ao santo do mesmo nome é uma personagem viva, que acompanhada em grande-plano ou em plano-médio ocupa fisicamente o espaço, evolui em desgosto e se torna comovente, num filme em que também Susana evolui em relação a ele.
   Destaco em especial a fotografia a cores de Carlos Lopes que persistentemente nega a profundidade de campo enquanto segue Jorge, aumentando assim o tom fechado, concentracionário do filme, salvo no momento da assinalada mudança e a partir daí - uma opção que, com vantagens, substitui o preto e branco que se poderia esperar -, e o facto deste "São Jorge" se basear numa investigação específica, o que em termos antropológicos significa um trabalho de campo prévio, que torna mais percuciente a sua exemplar perspectiva sociológica.
   A indiferença dos espectadores a este excelente filme será mais uma demonstração do alheamento dos portugueses em relação a si próprios. Mas embrulhados nas suas próprias aldrabices e traficâncias grandes e pequenas talvez eles nem sequer o mereçam.

terça-feira, 14 de março de 2017

Sem banalização

  "Personal Shopping" de Olivier Assayas (2016) não pretende ser mais do que aquilo que é, um filme de género, terror, que investe as almas do outro mundo que comunicam com os deste. Mas ao fazê-lo despretensiosamente o cineasta imprime-lhe o seu tom pessoal, o seu bom gosto e a sua estilística ao remeter para os códigos e as referências da Série B.
  Sem pretender verosimilhança mas chamando para o seu filme uma credulidade de primeiro grau, Olivier Assayas brinda-nos com um filme muito bom e sem falhas que avança em diversas direcções: a senhora que a protagonista, Maureen Cartwright/Kirsten Stewart serve, que tem um namorado e acaba como acaba, o interlocutor da protagonista ao telemóvel, ela própria na sua relação com a sua cunhada, a viúva do seu irmão gémeo que morreu e supostamente a contacta.  
  Há também uma casa, a casa da família que se trata de vender, um novo namorado da viúva e, porque não, um aspirante à protagonista embora distante, tudo com grande leveza e sobriamente construído, à maneira clássica, com a separação de blocos feita por encadeado a negro. O pretenso filme dos anos sessenta, reconstituído e mostrado, convoca Victor Hugo de forma pertinente e interessante. E o final fecha em branco. 
                   'Personal Shopper' Review - Cannes Film
  Eu acredito que os grandes cineastas, e especialmente eles, têm direito aos seus momentos de divertimento, em que por vezes nos dão o seu melhor, como acontece a Olivier Assayas neste "Personal Shopping", que além da realização tem argumento e diálogos seus. Apesar de tudo e da publicidade descarada, os desdobramentos de Maureen Cartwright dão-nos alguma coisa além do restante e mais não pedimos desta vez ao cineasta.
  Além do que nesta sua segunda colaboração, depois de "As Nuvens de Sils Maria"/"Clouds of Sils Maria" (2014), a dupla cineasta-actriz funciona bem sobre um motivo temático semelhante, o que deve ser realçado tal como o prosseguimento da aproximação ao mercado globalizado de língua inglesa. E pela questão do além, depois da morte, tinha recentemente passado Clint Eastwood em "Hereafter - Outra Vida"/"Hereafter" (2010), um divertimento também que nem sequer é dos seus melhores filmes.
  Bem filmada, Paris fica sempre bem nos filmes de Assayas, o que contribui para que mesmo num filme despretensioso como este ele nunca se banalize. 

quinta-feira, 9 de março de 2017

Autores de estimação

   Um compromisso menoríssimo mal colocado impediu-me de assistir ao lançamento seguido de conferência de "Camões e outros contemporâneos", o mais recente livro de ensaio de Helder Macedo (Lisboa: Presença, 2017). Tratando-se de mais um livro do nosso grande especialista vivo no nosso maior poeta de sempre aconselho vivamente.
    São duplas fundamentais, esta e a de José Gil com Fernando Pessoa, e eu vou pelo primeira que agora aqui me traz pois não houve até agora de super-Camões senão a presunção. Sou pessoano, claro, como toda a gente até os turistas nas livrarias portuguesas, mas a lírica camoniana é para mim sem igual e a sua épica é parte da história.
    Grande poeta e ficcionista, que comecei a acompanhar mais detidamente a partir de "Partes de África" (Lisboa: Presença, 1991), a sua primeira ficção, Helder Macedo é um ensaísta extraordinário que tem escrito sobre tudo ou quase na literatura portuguesa sempre com o maior interesse. Houve mesmo um tempo em que o Jornal de Letras atravessava uma fase menos boa em que eu o comprava só pela crónica dele.
                                      Camões e Outros Contemporâneos
    Aliando sabedoria, estudo aturado e algum humor, ele é uma verdadeira memória viva e fiável da cultura portuguesa. Especialista na literatura e na cultura portuguesas e em Camões, a quem dedicara já, por exemplo, "Camões e a Viagem Iniciática" (Lisboa: Abysmo, 2013 para a edição revista e aumentada) e a cuja época dedicara "Viagens do Olhar - Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português", co-Fernando Gil (Porto: Campo das Letras, 1998), jubilado do King's College Helder Macedo continua a orientar a nossa melhor leitura e a aumentar o nosso conhecimento com a sua escrita fresca, clara e imparável.
    Não basta de facto ler "Os Lusíadas" em inglês ou noutra língua ou sabê-los mesmo de cor se não soubermos o que quer dizer o poeta no que a cada passo escreve. Entre outras é essa a luz que o Autor aqui de novo nos traz, numa colectânea de ensaios em que se ocupa, além do propriamente dito, de D. Dinis, Sá de Mirande, Bernardim, Pessoa, Sophia, Saramago e Herberto Helder, entre muitos outros, todos eles nossos contemporâneos. São todos ensaios estimulantes em que o Autor dialoga com os textos e com a sua memória, com a filosofia e a história e em alguns casos também com trabalhos anteriores seus.
    Com ele, "o discurso crítico (...) torna-se ele mesmo literatura", como escreve Georg Steiner no prefácio à 2ª edição de "Tolstoi ou Dostoievski" (Lisboa: Relógio d'Água, 2015), que também aconselho. E chamo forçosamente também a vossa atenção para a excepcional qualidade dos outros livros de Helder Macedo, prosa e poesia, o mais recente dos quais é o excelente e original "Romance" (Lisboa: Presença, 2015).
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    Isto enquanto José Gil regressa a Pessoa em "Ritmos e Visões" (Lisboa: Relógio D'Água, 2016), no prosseguimento de uma abordagem variada que ao poeta dos heterónimos como uma obsessão tem dedicado. Mas esse até está na moda e nas bocas do mundo em diversas línguas e edições, mesmo em prejuízo de outros, pelo que nem sequer preciso de o aconselhar.
   Significa isto que a cultura portuguesa está na moda? Não estou certo disso, até porque a questão que se coloca não é só a da sua projecção internacional mas a do seu conhecimento e valorização no que tem de melhor pelos próprios portugueses.
    Mas sobre a literatura portuguesa mais recente há também "A Chama e as Cinzas - Um quarto de século de literatura portuguesa (1974-2000)", de João Barrento (Lisboa: Relógio d'Água, 2016), conjunto de textos com origem nas conferências da Feira do Livro de Frankfurt, publicados na Alemanha em 1999 e portanto em alemão no original. Reformulados, desenvolvidos e complementados, terminam com um texto baseado numa intervenção feita no Brasil em 2005 e não era sem tempo que chegassem ao leitor português. 
    Voltarei a tudo isto com mais tempo e mais pormenor.  Os chamados "universitários na diáspora" têm muito que se lhes diga, pois na diáspora está o melhor dos portugueses e é onde os portugueses estão melhor. Aqui andam a tropeçar permanentemente uns nos outros ou em si próprios.