domingo, 29 de abril de 2018

Leitores

   "Readers" (2017) é o mais recente documentário do americano James Benning, um dos grandes cineastas actuais, que passou esta semana um fim de tarde na Cinemateca Portuguesa.
   Numa superlativa exploração do seu dispositivo cinematográfico, com a câmara frontal e fixa o cineasta filma quatro leitores enquanto lêem em silêncio livros diferentes, de que no final de cada segmento de pelo menos 25 minutos é mostrado um pequeno excerto escrito.
                     
   Percebe-se que o que aqui está em causa é sugerir o interior de cada um através do seu exterior enquanto, sentado, lê. E, com traços comuns, cada um deles/delas é diferente na concentração da sua experiência interior enquanto lê.
   De vez em quando, cada um deles avança  umas quantas páginas. Para saber a continuação? Para tentar saber quanto falta para acabar?
   Cada um de nós, que lemos, se reencontra aqui, na distensão temporal de uma experiência subjectiva que decorre no tempo quando se está imóvel. Com alguns ruídos ligeiros provenientes do fora de campo, sem palavras ditas nem música este mais um filme notável de um grande documentarista.

terça-feira, 24 de abril de 2018

A colheita da morte

      Idrissa Ouedraogo  (1954-2018) foi um grande cineasta africano do Burkina Faso, responsável por filmes da maior qualidade e do maior interesse como "Avozinha"/"Yaaba" (1989) e "Tilai - A Lei e a Honra/"Tilai" (1990), que estrearam em Portugal, entre muitos outros, alguns premiados em festivais internacionais de cinema. Tendo tratado da juventude e do mundo rural, embora insuficientemente conhecido em Portugal foi uma grande figura do cinema cujo desaparecimento aqui assinalo e lamento.
                        Su tutte le vette é pace (On the Heights All Is Peace). 1998. Italy. Directed by Angela Ricci Lucchi, Yervant Gianikian
    Angela Ricci Lucchi (1942-2018) foi uma cineasta e artista visual italiana responsável com Yervant Gianikian por uma obra muito importante em filmes que trabalhavam imagens de arquivo, de carácter documental, de modo original. A audácia e qualidade do seu trabalho valeu-lhe um lugar íncomparável na história do cinema, que aqui assinalo na hora da sua partida.
     O argentino Hugo Santiago (1939-2018) foi uma figura de referência do cinema latino-americano dos anos 60, com filmes como "Invasión" (1969) e "Les autres" (1974), baseados em histórias de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, entre outros. Respeitado e defendido na Europa, nomeadamente em França onde viveu a partir de 1959, a sua partida deixa-me triste.
                         cuco
      O realizador checo Milos Forman (1932-2018) teve um papel central no respectivo cinema novo, nomeadamente com "Os Amores de uma Loira"/"Láski jedné plavovláski" (1965). Nos anos 70 foi para os Estados Unidos, onde se notabilizou com "Voando sobre um ninho de Cucos"/"One Flew Over the Cuckoo's Nest" (1975) e "Amadeus" (1984) entre outros filmes famosos. Foi uma figura de grande relevo no cinema e um grande cineasta.            
     Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) foi uma figura central do cinema novo brasileiro dos seus ínícios até ao fundamental "Vidas Secas" (1963), baseado no romance de Graciliano Ramos. Além de trabalhar com Jorge Amado em "Tenda dos Milagres", voltou ao mesmo autor com o maior sucesso em "Memórias do Cárcere" (1984), permanecendo como figura de referência do melhor do cinema brasileiro.
                         Vidas secas
        Em Portugal tinham desaparecido já este ano duas figuras maiores, históricas, do nosso cinema de animação, Artur Correia (1932-2018) e Servais Tiago (1925-2018), o que soube tardiamente mas aqui assinalo e lamento agora.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Nouvelle Vague

                                                        Antecedentes

     No pós-guerra, a França, que tinha sido ocupada pelas tropas nazis e tinha tido um regime colaboracionista em Vichy, teve de lamber as suas feridas como os vencidos, para o que cantou a gesta da resistência e da libertação no cinema. Com o peso na consciência de alguns filmes feitos durante a ocupação, com o visto do ocupante.
    Durante a II Guerra Mundial tinham começado no cinema Robert Bresson, no pós-guerra começaram Jacques Tati, Jean-Pierre Melville, Jean Rouch, René Clément, Alexandre Astruc, enquanto continuavam os nomes consagrados que vinham do mudo ou do realismo poético dos anos 30, Marcel Carné, Julien Duvivier, Jean Delannoy, Claude Autant-Lara, Jean Cocteau, Jacques Becker, dos anos 40 Henri-Georges Clouzot e, já nos anos 50, Max Ophüls, que entre outros, como Jean Renoir e René Clair, tinha estado nos Estados Unidos e além disso nem sequer era francês
    O grande acontecimento cinematográfico para as gerações mais novas, que tinham vivido a guerra e a ocupação, foi contudo a reabertura no pós-guerra da Cinemateca Francesa sob a direcção de um dos seus fundadores, Henri Langlois, que programou, além da distribuição cinematográfica, todo o cinema americano e europeu que durante a guerra não tinha chegado a França e também os grandes cineastas do cinema mudo. Esse é um acontecimento fundador do conhecimento e da consciência do cinema daqueles que vão estar na origem da nouvelle vague.
    Mas também os cineclubes franceses reataram então a sua actividade, com a importante iniciativa da divulgação e discussão dos filmes nomeadamente em empresas, para os trabalhadores, e com a elaboração das primeiras fichas de filmes para serem utilizadas nessas sessões pelos respectivos "animadores". Vários futuros cineastas da nouvelle vague estiveram nessa altura nos cineclubes e escreveram para as respectivas publicações.
                      http://www.bfi.org.uk/sites/bfi.org.uk/files/styles/full/public/image/resnais-alain-001-with-camera-00n-7c9.jpg?itok=lTnSEWhf
     Já nos anos 50, são fundadas as primeiras grandes revistas de cinema francesas, primeira e mais iimportante os Cahiers du Cinéma em 1951, onde sob a direcção de André Bazin alguns dos mais importantes futuros cineastas vão começar por escrever crítica de cinema de forma permanente e polémica
     Nessa primeira metade dos anos 50 ou ainda antes arrancam na curta-metragem Alexandre Astruc, o homem da "caméra-stylo", Alain Resnais, Chris Marker, Georges Franju, Eric Rohmer, enquanto na segunda metade da mesma década começam a ser feitas as primeiras longas-metragens da nova geração, de Louis Malle, Roger Vadim, Franju, Claude Chabrol, François Truffaut, Jacques Rivette e fazem as primeiras curtas Jean-Luc Godard, Jacques Demy, Agnès Varda.
    Aqui é costume distinguir os cineastas que vinham das páginas da crítica, nomeadamente dos Cahiers, e os que não vieram da crítica: Malle, Franju, Marker, Resnais, Demy, Varda. O ano de 1958 é geralmente considerado o do nascimento da nouvelle vague, porque foi o ano em que a expressão, utilizada pela primeira vez no ano anterior pelo "L'Express" para toda uma juventude, foi circunscrita ao cinema, e porque foi o ano da morte de André Bazin, que já não viu os primeiros filmes dos seus "discípulos" dos Cahiers. Mas antes disso Alain Resnais tinha feito a curta-metragem "Noite e Nevoeiro"/"Nuit et Brouillard" (1955), filme sobre Auschwitz que inaugura um novo género, o filme-ensaio, que vai ser importante a partir de então.
     As principais influências dos então novos cineastas eram do cinema americano, onde então se contavam ainda alguns europeus como Fritz Lang, de Jean Renoir e de Roberto Rossellini, com Henri Langlois e André Bazin as grandes figuras tutelares da nouvelle vague entre os mais velhos. De resto eram acompanhados com especial atenção na Europa Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, que nos respeectivos países anunciavam a modernidade, em França Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Becker, Max Ophüls - que os dois morreram cedo -, Jacques Tati, Jean Rouch, Jean-Pierre  Melville. Dos outros acima mencionados Resnais, Marker, Franju, Malle, Vadim fazem já parte da nouvelle vague, quer o tenham assumido quer não.

                                                       Contexto

      No pós-guerra, antes da nouvelle vague francesa tinham arrancado o cinema novo japonês na primeira metade dos anos 50, com Nagisa Oshima e Shohei Imamura, com filmes sobre a juventude e de protesto contra a presença de forças americanas no Japão, e o free cinema inglês, que começou em Fevereiro de 1956 com uma sessão de curtas-metragens no British Film Institute seguida da leitura de um manifesto e, inspirado no documentarismo britânico e influenciado pelo neo-realismo iitaliano, se afirmou com filmes sobre a juventude e de carácter social de Lindsay Anderson, John Schlesinger, Tony Richardson e Karel Reisz, o que mostrava tratar-se de uma nova geração de cineastas que despontava em todo o mundo.
     Por volta de 1958 também inicia-se o cinema novo italiano, com "Salvatore Giulliano" de Francesco Rosi, um filme com grande inventiva formal, seguido por outros de Vittorio de Seta, Valerio Zurlini, Ermanno Olmi, Pier Paolo Pasolini que, mais velho, vinha da literatura, Bernardo Bertolucci, Marco Bellochio, Carmelo Bene. O cinema novo alemão tem o seu início com o Manifesto de Oberhausen, de 1962, embora os primeiros filmes dos seus principais nomes, Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders, Volker Schlöndorff, Margarethe Von Trotta, Werner Herzog, Werner Schroeter datem da segunda metade dos anos 60 ou mesmo dos 70.
                     
        Na primeira parte dos anos 60 iniciam-se os cinemas novos português, com Fernando Lopes, Paulo Rocha e António de Macedo, e espanhol, com Carlos Saura. Mas os outros expoentes da época são o New American Cinema, sediado em New York, com Jonas e Adolfas Mekas, D. A. Pennebaker e John Cassavetes, e o cinema novo brasileiro que, de início sob influência neo-realista, com Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Carlos Diegues, Ruy Guerra, Leon Hirzman e outros trabalha uma estética da pobreza e da fome de uma maneira nova, política, que põe em transe um país subdesenvolvido em crise. Mas noutros países latino-americanos, como Cuba, a Argentina e o Chile, existem também cinemas novos na mesma época.
      Merece uma referência especial o cinema novo do Québec, província de língua francesa do Canadá, com cineastas como Michel Brault, Gilles Groulx e Pierre Perrault, o último um cineasta muito especial do mito e da história num cinema do vivido. Para além destes, Satyajit Ray na Índia, Youssef Chahine no Egipto ou Abbas Kiarostami no  Irão são modernos que, com o tempo, se transformaram em clássicos dos respectivos países.
       Faltará referir o Leste europeu de então, renascido no pós-guerra com regimes comunistas, em que na Polónia, com Andrzej Munk e Andrzej Wajda, primeiro, com Roman Polanski, Krystof Zanussi e Krystof Kieslowski depois, na Checoslováquia, com Milos Forman, Vera Chytilova e Ivan Passer, na Hungria com András Kovács, Miklós Jancso, Karoly Makk e Martha Mészáros, nasceram também, em combate com a censura, cinemas novos importantes. Isto para além da própria União Soviética, com Andrei Tarkovski, Sergei Paradjanov, Otar Iosselliani, Elem Klimov, Larissa Chepitko, Nikita Mikhalkov e Andrei Mikhalkov-Konchalovski, alguns dos quais, à semelhança de Forman e Polanski, procuraram a liberdade de criação no exílio.

                                                 Princípios e características

          A ideia de fazer filmes novos de uma nova maneira nasce da necessidade de fazer diferente e contra o cinema académico anterior, muito bem estigmatizado no texto fundador de François Truffaut «Une certaine tendance du cinéma français», publicado no nº 31, de Janeiro de 1954, dos Cahiers du Cinéma.
        Com base em pequenas produtoras, com pequenos orçamentos começaram a ser feitos novos filmes pelos novos sobre as novas personagens e situações modernas de uma sociedade que se pretendia moderna e renascida da guerra e das suas sequelas imediatas, com uma técnica e uma estética novas, ao que foi dado o nome de "nouvelle vague".
          Do ponto de vista temático-formal há uma clara preocupação com o erotismo logo em Vadim e Malle, que chama a atenção para uma nova geração desinibida que tem as suas primeiras vedetas em Brigitte Bardot e Jeanne Moreau. Mas o filme que vai  representar o "desenterrar do machado de guerra" vai ser, depois de "Os quatrocentes golpes"/"Les 400 coups" de Truffaut, de "Paris nous appartient" de Rivette, de "Le beau Serge" e "Les cousins" de Chabrol, que eram grandes primeiros filmes dos mais novos, "O Acossado"/"À bout de souffle", de Jean-Luc Godard.
         Algumas das características mais importantes da nouvelle vague francesa são a filmagem em cenários naturais, que vinha do neo-realismo italiano, e o som directo, que tem o seu "manifesto" em "Crónica de um Verão"/"Chronique d'un été", de Jean Rouch e Edgar Morin (1960), bem como o corte seco, o jump cut na montagem. Além disso, os filmes da nouvelle vague começam por ser na sua maioria a preto e branco e contaram desde o iníco com uma nova geração de técnicos e compositores, actores e actrizes - o argumentista ou co-argumentista dos seus filmes era geralmente o próprio realizador.
         Mas o que passa a contar e a notar-se é uma nova forma de fazer e de contar, em que a forma por si própria faz parte do que cada filme tem de mais interessante, como os planos-sequência e os travellings de "O Acossado", os enquadramentos obsessivos que sinalizam a presença de um cineasta-autor por trás da câmara - e a "política dos autores", nomeadamente quanto ao cinema clássico americano, tinha sido o grande cavalo de batalha dos Cahiers du Cinéma desde o seu início.
      O mesmo enfant terrible da nouvelle vague, que desde o início usou a colagem, a intertextualidade literária e cinematográfica, nomeadamente do cinema americano, que filmou com Sam Fuller e Fritz Lang, o mesmo Godard fez o filme escandaloso para a época "Une femme mariée" (1964), filmes sobre a prostituição e filmes sobre a Guerra da Argélia e a Guerra do Vietnam. Mas as influências de Hitchcock em todos, de Fritz Lang em Chabrol, de Hawks em Rivette e Rohmer eram notórias e iam de par com a revisão dos géneros - fantástico em Franju, policial em Truffaut e Chabrol, musical em Demy e Godard, por exemplo. O outro filme que, censurado, causou escândalo foi "A Religiosa"/"La religieuse", baseado em Denis Diderot, de Jacques Rivette (1966), um cineasta pioneiro nos filmes de muito longa duração.
      Obras marcantes começam então com grandes primeiros filmes, com "Hiroshima meu Amor"/"Hiroshima mon amour", de Alain Resnais sobre Marguerite Duras, "Lola", de Jacques Demy, "Duas Horas na Vida de uma Mulher"/"Cléo de 5 à 7", de Agnès Varda, "Le signe du Lion", "La boulangère de Monceau" e "La carrière de Suzanne", de Eric Rohmar, "Adieu Philippine", de Jacques Rozier. Todos eles modernos, enquanto Melville, Bresson e Tati, Rouch em África, continuavam.
                      https://www.diariodocentrodomundo.com.br/wp-content/uploads/2014/01/Godard.jpg
          Diga-se aqui que o último, Jean Rouch, vai mesmo estar envolvido no nascimento do cinema africano, em países que ascenderam à independência no pós-guerra, com cineastas de referência como o senegalês Ousmane Sembene.
          No refluxo da nouvelle vague surgem cineastas como Philippe Garrell e Jean Eustache, que no fundo dela fazem ainda parte, mais tarde outros como André Téchiné, Jacques Doillon, Benoît Jacquot, Maurice Pialat, Marguerite Duras e o chileno Raul Ruiz, que discutem a sua herança em termos formais e narrativos.
         Com marcas políticas desde o seu início, vai ser Jean-Luc Godard que, com Chris Marker, vai ser mais sensível ao Maio de 1968, a partir do qual envereda por alguns anos por um "cinema militante", enquanto o segundo faz vários documentários na tradição do "kino glaz" de Dziga Vertov. Vê-se nesta inflexão política da nouvelle vague francesa, que começou com a tentativa de afastamento de Henri Langlois da Cinemateca Francesa, o início de uma nova fase dela, de curta duração embora marcante.
        Mas em 1975 vai ser a belga Chantal Akerman quem vai, em "Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Brruxelles", radicalizar o uso do plano-sequência com profundidade de campo muito longo, processo que vinha de um casal de cineastas fundamental, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, que juntamente com a palavra dita e escrita tinha feito desse processo uma figura-chave da modernidade. O que é tanto mais de salientar quanto nos anos 60 Pasolini tinha teorizado o plano-sequência, entre outras figuras da modernidade no cinema, que cineastas como Duras e Eustache também usaram, e a "subjectiva indirecta livre"
         Prosseguindo e evoluindo nos anos 70, a nouvelle vague vai ser rendida e substituída nos 80 por uma nova geração que joga com o maneirismo e o efeito de falso, com Jean-Jacques Beineix, Luc Besson, Olivier Assayas e Leos Carax, sobretudo estes dois ainda herdeiros dela. Ao mesmo tempo que tende a regressar um novo academismo ao cinema francês, com filmes populares com grandes actores populares, na linha do que tinha continuado a acontecer mesmo no início da nouvelle vague.
        Mas o que será aqui importante assinalar é uma nova fase da obra de Jean-Luc Godard que, depois de deixar o "cinema militante" com "Tout va bien" (1972), se dedica a trabalhos em vídeo, nomeadamente para a televisão, em que, no prosseguimento de um cinema político, ensaia a mistura audiovisual que vai caracterizar a última fase da sua obra. Aí, trabalhando a imagem e o som em separado mas cruzando-os, ele volta a inovar, no cinema a partir de "Salve-se quem puder"/"Sauve qui peut (la vie)" (1979), com largo recurso às outras artes, pintura e música sobretudo, mais tarde à sua voz e pessoa, um limite também assinalado por "Histoire du cinéma: Introduction à une véritable du cinéma" (Albatros, 1979), que reúne conferências feitas por si no Canadá e introduz as suas "Histoire(s) du cinéma" (1988-1998).
       O que significa uma última evolução da nouvelle vague, em que ela se desdobra, desmultiplica em novos ensaios sobre o cinema, naquilo que tem sido chamado o "filme-ensaio", inaugurado por Alain  Resnais nos anos 50, como referido, e prosseguido sobretudo por Chris Marker mas também por Agnès Varda.

                                                   Consequências

       Em alguns países asiáticos, como a China, Taiwan e as Filipinas, surgem cinemas novos influenciados pela nouvelle vague nos anos 80, com Chen Kaige e Zhang Yimou na China, Edward Yang, Hou-Hsiao Hsien e Tsai Ming-Liang em Taiwan, Lino Brocka nas Filipinas, enquanto já nos anos 90 surge o Dogma 95 na Dinamarca, tido como cinema novo dinamarquês, com Lars von Trier e Thomas Vinterberg, depois de na década anterior terem surgido na Finlândia os irmãos Mika e Aki Kaurismäki. Todos eles influenciados pela nouvelle vague, tal como a 6ª geração do cinema chinês, com Jia Zhang-ke e o fundamental documentarista Wang Bing, ou o cinema novo sul-coreano.
      Dizem os próprios franceses, no caso Jean Douchet, que um dos últimos herdeiros e continuadores da nouvelle vague é, além de Claire Denis, o português Pedro Costa, numa altura em que ela, nouvelle vague, é decididamente passado, até com a morte dos seus principais cineastas, Truffaut, Demy, Rohmer, Chabrol, Rivette, e em que despontaram novos cinemas novos em vários pontos do globo.
       O cinema, que tinha sido moderno, modernista nos anos 20 com as vanguardas (uma outra história), torna-se verdadeiramente moderno com a nouvelle vague, que o lança por novos caminhos narrativos e expressivos com enormes consequências. Mesmo a actualidade do cinema, o cinema contemporâneo, não pode ser entendida sem a nouvelle vague e os cinemas novos, que fazem a transição decisiva do clássico para o contemporâneo. Com ela o cinema aprendou a fazer filmes baratos com grande distribuição - veja-se o novo cinema independente americano - e a ser menos ostensivo e mais artístico, mais arte do cinema do que espectáculo, o que é visível nos melhores casos do cinema actual em novos cinemas novos como o argentino, o romeno, o alemão, o tailandês entre tantos outros.         
       Embora a revolução digital obrigue a colocar a questão noutros termos, a verdade é que a modernidade que a nouvelle vague inaugurou continua imparável em novos filmes de novos cineastas em todo o mundo, que lhe sobrevivem e a mantêm viva. Haverá apenas que distinguir modernidade técnica e modernidade artística. Que tenha sido francês o principal e mais influente cinema novo não é fruto do acaso ou da moda, antes resulta da história do próprio cinema francês e da história do século XX. 
       Por descargo de consciência assinale-se para terminar que têm sido estabelecidas relações entre a nouvelle vague e o existencialismo filosófico, Sartre, Beauvoir, Sagan, o que para além de uma coincidência espacio-temporal de todos deve ser utilizado com precaução em relação a cada cineasta mais importantes, pois é por razões cinematográficas e pessoais que cada um deles é/foi grande. Já o peso da cultura, da história e do cinema em cada um deles é indiscutível e deve ser visto caso a caso.

domingo, 15 de abril de 2018

A grande onda

      "Cinema Novo" de Eryk Rocha (2016) é um documentário de montagem de excertos de filmes e de declarações dos principais envolvidos naquele movimento fundamental do cinema moderno no Brasil, feito pelo filho de Glauber Rocha, documentarista desde 2002.
      Nos depoimentos destaca-se o reconhecimento de que antes tinha havido Humberto Mauro, da influência do cinema soviético, do neo-realismo italiano e do cinema americano e a imagem de família que inclui Jean Rouch, Edgar Morin e Marco Bellochio. Os excertos de filmes são bem escolhidos.
     Inspirado em Jorge Amado, Guimarães Rosa e Villa-Lobos, a partir da própria realidade brasileira, cruzando o político e o religioso, o público e o privado, ao traçar a gesta de um povo vítima da superstição, da ignorância, da violência e da fome e pôr em transe um país subdesenvolvido com grande qualidade e ousadia estética, o cinema novo brasileiro tornou-se famoso no seu tempo, em que foi elogiado e premiado.
                                 
     Com grande energia e criatividade, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirzman, Carlos Diegues, Paulo César Saraceni e os outros conduziram uma ruptura fundamental, sem precedentes nem consequentes visíveis no cinema brasileiro, largamente reconhecida e muito influente, hoje recordada quando a sua herança parece esquecida. 
     "Desmistificar o cinema, libertando as suas formas de expressão, desmistificar a realidade pela verdade do cinema, tal é o difícil e duplo papel do cineasta de hoje. O cinema brasileiro é desprovido de vaidade. Ele tenta humildemente ser um olhar novo pousado sobre uma realidade que o sofrimento marcou e está pedindo que a tomemos nas nossas mãos, tal como a máquina de filmar. Com efeito, o nosso problema é o de exprimir a autêntica especificidade do Brasil" (Glauber Rocha).
     Escrito por Juan Posada e Eryk Rocha, é um filme de saudar tanto mais quanto se trata da melhor época do cinema brasileiro, quando este foi visto, reconhecido e apreciado em todo o mundo. Em Lisboa no Cinema Ideal em última semana semana.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Policial de época

      "Memories of Murder"/"Salinui chueok", do sul-coreano Bong Joon-ho (2003), é um excelente filme deste membro destacado do cinema novo do seu país, inédito comercialmente em Portugal e anterior "The Host" e "Mother".
       A partir de argumento de que é co-autor com Shim Sung-ho baseado em peça de Kim Kwang-rim, o cineasta constrói o filme de um serial killer que matou mulheres e as voltará a matar. Dois detectives locais, um robusto e calmo, o outro com tendências mais violentas, a que se junta um terceiro vindo de Seul, mais reflexivo, tentam apanhá-lo.
      Depois de duas suspeitas frustradas e da consulta a uma xamane, a terceira suspeita, que parte de uma canção transmitida num programa radiofónico, "Carta Triste", parece mais segura,, mas acaba por não ser confirmada pelo exame de ADN feito na América.
                      http://cdn23.us1.fansshare.com/photos/memoriesofmurder/memories-of-murder-salinui-chueok-original-uk-quad-poster-korean-film-1776823187.jpg
       Fazendo lembrar "Matou"/"M", de Fritz Lang (1931), com uma canção em vez de um assobio, passado em 1986, no final da ditadura sul-coreana, o filme contém referências à violência das autoridades e aos protestos de populares contra elas.
      O segundo detective, ferido numa perna numa rixa, acaba por ser amputado antes de na linha férrea, à entrada de um túnel, se dar o clímax deceptivo, em que o terceiro detective quase mata o suspeito. No epílogo, bem visto, que como o início fecha sobre o detective e uma criança, no ano do filme o culpado continua ignoto.
       Com fotografia de Kim Hyung-Ku, música de Iwashiro Tarô e montagem de Kim Sun-min, muito bem realizado e interpretado, este o filme que lançou Bong Joon-ho e chamou a atenção para  ele como nome de proa do cinema novo sul-coreano antes de "The Host - A Criatura"/"Gwoemul" (2006), "Mother - Uma Força Única"/"Madeo" (2009) e "Expresso do Amanhã"/"Snowpiercer" (2013). Com os seus polícias confusos e violentos, o seu criminoso desconhecido e sem o conforto de uma solução feliz, é mesmo um dos melhores filmes deste século XXI e o melhor do cineasta até agora.
       Passou na noite de segunda-feira no Arte, no âmbito de um ciclo "Printemps du polar", que aqui aconselho..

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Grande actriz

     "Manifesto" é um filme do alemão Julian Rosenfeldt (2016) em que Cate Blanchett interpreta os fundadores e/ou os fundamentos de grandes manifestos artísticos desde o século XIX, os lê para a câmara, i. e., para os espectadores, ou os interpreta em quadros vivos.
     A enorme versatilidade e qualidade da actriz é aqui posta à prova com os melhores resultados, de Karl Marx ao Dogma 95 e Jean-Luc Godard. Por sua vez, o cineasta, argumentista, produtor e realizador, que já tinha feito "The Creation" (2015), entrega uma obra bem engendrada, que interessa como colagem em termos de divulgação qualificada, coerente e bem feita.           
                      Manifesto
       A própria construção de cada quadro sobre cada manifesto está muito bem feita, apesar do seu pendor meramente ilustrativo ou rememorativo com inventiva e imaginação, alternativa bem vista à simples leitura dos textos, que Hans-Jürgen Syberberg fez em "Die Nacht" (1985), com Edith Clever a ler textos célebres de autores famosos.
    Aqui encontram lugar manifestos ou textos fundadores do dadaismo, do futurismo, do surrealismo, do suprematismo até ao expressionismo abstracto, a arte pop, o Fluxus e a arte conceptual, entre outras manifestações de inconformismo artístico e de vanguarda do século XX. A alternância na parte final resulta bem porque, intercalando, exponencia o efeito.
      Com fotografia de Christoph Krauss, música de Ben Lukas Boysen e Nils Frahm e montagem de Bobby Good, é um belo filme não vocacionado para o sucesso comercial, que aconselho.

domingo, 8 de abril de 2018

A amazona

      Com argumento de Allan Heinberg baseado na personagem criada por William Moulton  Marston e Harry G. Peter, "Mulher-Maravilha"/"Wonder Woman" de Patty Jenkins (2017) parte da personagem da DC Comics, Diana/Gral Gadot, filha de Hippolyta/Connie Nielsen, uma amazona treinada por Antiope/Robin Wright, para a fazer emergir no final da I Guerra Mundial, na Europa.
      Aí ela ajuda o Capitão Steve Trevor/Chris Pine a derrotar as forças alemãs contrárias ao armistício, vencendo pessoalmente o General Ludendorff/Danny Huston e a sua acólita, a Drª. Maru/Elena Anaya, e o super-vilão Sir Patrick/David Trewlis, que a queria fazer desistir de ajudar os humanos.  
                      Gal Gadot 'threatens to leave Wonder Woman series' unless Brett Ratner leaves
      Típica história de banda-desenhada americana, "Mulher-Maravilha" assume o seu grafismo em termos cinematográficos, com muita criação digital e efeitos digitais que tornam a personagem mais forte, mais protegida e mais ágil, e por isso invencível.
      Tem fotografia de Matthew Jensen, música de Rupert Gregson-Williams e montagem de Martin Walsh. Sobressaem os cenários de Anna Lynch Robinson e o guarda-roupa de Lindy Hemmings. Por sua vez, Patty Jenkins já tinha realizado "Monstro"/"Monster" (2003), que valeu a Charlize Theron o Oscar da Melhor Actriz, e volta a ter aqui um bom trabalho.
      O grande espectáculo do filme está de acordo com o grande espectáculo que desde cedo alimentou o cinema americano, feito para espectadores de todas as camadas de público e, portanto, para o box-office, no que cumpriu acima das expectativas. Não sendo apreciador deste género de filmes, posso apreciar o engenho da sua criação e identificar na protagonista e na narrativa reconhecíveis valores americanos sob a poderosa protecção da filha dos deuses.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

A ultima missão

     "Hostis"/"Hostiles", de Scott Cooper (2017), é mais um western fora do tempo que chama a atenção para um género clássico há muito dado como findo. Na sua extemporaneidade, apesar das suas limitações inevitáveis consegue surpreender por boas razões.
    O filme começa com a morte por índios hostis do marido e das filhas de Rosalie Quaid/Rosamund Pike, seguida pela morte e maus tratos de índios pelo exército americano. Em 1892, no Novo México, o Capitão Joseph. J. Blocker/Christian Bale aceita com relutância, como sua última missão de serviço, transportar até ao Vale dos Ursos, no Montana, o Chefe comanche Yellow Hawk/Wes Study, preso há sete anos e muito doente, com um cancro, acompanhado pela família.
     Pelo caminho, durante o qual vai perdendo homem atrás de homem, a pequena caravana encontra primeiro Rosalie, perdida e só, depois um outro oficial preso por assassinato, antigo companheiro de armas de Blocker em Wounded Knee, confiado a este no Colorado para o conduzir ao seu destino: a forca. 
                      Hostiles, crudo viaggio nel western americano con Christian Bale
      Com algumas opções de realização surpreendentes, o cineasta recorda em especial "O Grande Combate"/"Cheyenne Automn", de John Ford (1964), presente noutros aspectos como outros cineastas clássicos, em especial Howard Hawks e Raoul Walsh. Acompanhando um percurso lento, feito a cavalo, "Hostis" assume uma lentidão fílmica que o acompanha e deixa fora de campo sequências-chave como a violação de Rosalie e da filha de Yellow Hawk, raptadas, ou a fuga do prisioneiro. 
     Num filme com muitos diálogos e uma sucessão de memórias e conflitos internos ao grupo, a unidade dos seus elementos, índios incluídos, vai impor-se por proposta do Chefe Cheyenne, doente terminal. No final o grupo de um rancheiro dizima o que sobrara do grupo e é dizimado por este, Rosalie incluída. Só ela, a neta do Chefe Yellow Hawk e Blocker sobrevivem, num final de comboio que parte bem resolvido.
     Com argumento, produção e realização de Scott Cooper, que nos dera já "Black Mass - Jogo Sujo"/"Black Mass" (2015), este filme bem calibrado conta com fotografia de Masanobu Takayanagi, música de Max Richter e montagem de Tom Cross, e deixa boa impressão com os seus sucessivos momentos de grande tensão intercalados com outros em que nada acontece e uma narrativa baseada em manuscrito de Donald E. Stewart, que permite situá-lo bem no espaço e no tempo.
      Depois de "The Revenant: O Renascido"/"The Revenant", de Alejandro Gonzalez Iñarritu (2015) e de "Os Sete Magníficos"/"The Magnificent Seven", de Antoine Fuqua (2016), é mais um western bem-vindo. Um por ano e viva o velho, que a ética é uma questão difícil na América actual. Mas este é um género do qual não há como revisitar os clássicos, de quando André Bazin o considerou "o cinema americano por excelência".