quinta-feira, 29 de março de 2018

Mais uma despedida

    A Livraria Pó dos Livros, que encerra no próximo sábado, 31 de Março, era uma das melhores livrarias de Lisboa, onde era possível encontrar de tudo, da actualidade ao circuito minoritário mais valioso e difícil, passando por livros mais antigos.
    Fui seu cliente assíduo, sempre muito bem tratado e bem servido em (quase) todas a minhas encomendas mais complicadas. Não consegui tempo até hoje, e já não o vou conseguir até sábado, para lá ir buscar o que tinha encomendado e (quase) só eles me arranjavam.  
                      
    Isto da livraria tradicional é muito importante para mim, porque passa pelo contacto físico com cada livro, folheado, consultado por interesse e curiosidade, venha-se a comprá-lo na altura, mais tarde ou nunca.
    No meio dos livros fui criado, cresci e vivi toda a minha vida, e por isso lamento muito mais esta baixa, que me deixa sem alternativas à altura - não falo das que ainda existem para não dar azar.
   Com todo o meu reconhecimento e apreço, com muita tristeza aqui me despeço dos meus impecáveis amigos/as da Pó dos Livros, de quem vou sentir muita falta. Se puderem, passem ainda por lá.

quarta-feira, 28 de março de 2018

A mulher burguesa

      Stéphane Audran (11932-2018), que agora nos deixou foi uma actriz francesa excepcional, que se notabilizou em alguns dos melhores filmes de Claude Chabrol nos anos 60 e 70 do século  XX.
      Mulher do cineasta, que inspirou, iluminou com o seu talento e a sua beleza filmes como "As Boas Mulheres"/""Les bonnes femmes" (1960), "L'oeil du malin" (1962), "Landru" (1963), "As Rivais"/"Les biches" com Jean-LouisTrintignant (1968), "A Mulher Infiel"/"La femme infidèle" com Michel Bouquet (1969), "O Carniceiro"/"Le boucher" com Jean Yanne (1970), "Núpcias Vermelhas"/"Noces rouges" com Michel Piccoli (1972), "Laços de Sangue"/"Les liens de sang" com Donaldd Sutherland e "Violette Nozière" com Isabelle Huppert (1978),"Le sang des autres", com Jodie Foster, baseado em Simone de Beauvoir (1984), "Betty", com Marie Trintignant, baseado em Simenon (1992). 
                      https://mindreels.files.wordpress.com/2014/03/boucher-3.jpg
     Sem ser uma vedeta do cinema francês, como Anna Karina para Godard, Sabine Azéma para Resnais, Arielle Dombasle para Rohmer, foi a actriz-fétiche de um cineasta de proa da nouvelle vague francesa, em que por essa via esteve impliacada. Notada entre outros por Luis Buñuel, esteve presente em "O Charme Discreto da Burguesia"/"Le charme discret de la bourgeoisie" (1972) e emprestou a sua personalidade e a sua figura de mulher a muitos outros filmes, entre os quais destaco "A Festa de Babette"/"Babettes gaestebud", de Gabriel Axel (1987).
    Porque conhecia muito bem Stéphane Audran pelos filmes que interpretou, e por isso a admirava, aqui assinalo o seu passamento com  profunda tristeza.

domingo, 25 de março de 2018

O vento sopra onde quer

           "Que o Diabo Nos Leve"/"Que le diable nous emporte" é o mais recente filme do francês Jean-Claude Brisseau (2016), cheio de referências ao cinema francês e o topo da sua obra até aqui.
     Depois da trilogia "Coisas Secretas"/"Choses secrètes" (2002), "Os Anjos Exterminadores"/"Les anges exterminateurs" (2006) e "À Aventura"/"L'aventure" (2008), e depois de "A Rapariga de Parte Nenhuma"/"La fille de nulle part" (1012), o cineasta despacha no início as cenas eróticas, entre Camille/Fabienne Babe, Suzy/Isabelle Prim e Clara/Anna Sigalevitch, que se reúnem em casa da primeira, Suzy à procura do telemóvel com cenas de sexo gravadas que tinha perdido e a primeira tinha encontrado, depois também em fuga do seu apaixonado insistente e armado, Olivier/Fabrice Deville, a última que salvou Camille e vai subtraí-lo a ele das garras da polícia e tentar fazê-lo esquecer.
                                
         O filme tem uma construção rohmeriana nos pares que se formam, desfazem e refazem, o que a biografia de Eric Rohmer de Antoine de Baecque e Noël Herpe em casa de Olivier explicita. Mas em casa de Camille habita tambémTonton/Jean-Christophe Bouvet, que depois da visita da mãe, do padrasto e do pai (interpretado pelo próprio Brisseau) de Camille e da confissão desta do seu passado para as outras duas, vai lidar com Suzy que quer fazer-lhe a ele a sua confissão. 
       Ora Tonton, praticante de yoga que desaparece e aparece inesperadamente, acaba por arrumá-la com o célebre "o vento sopra onde quer" de Robert Bresson. Junto ao "diable" do título, nada é aqui acidental. E há ainda um Godard célebre dos anos 60 de passagem.
         O trabalho de Camille de estetização de imagens de sexo pelos novos meios digitais é bem visto se bem que forçado, mas contrasta com o que Suzy filmara com o seu telemóvel. Após a explicação de Olivier a Clara de como o início do cinema sonoro influenciou o teatro, muito boa e só falada num filme com muitos diálogos e falas, tudo termina com a ausência da Camille por causa da morte do pai e um novo trio, Clara, Suzy e Olivier, que passara a amar a primeira sem deixar de amar a segunda.
                       Que le diable nous emporte
          Com um tom harmonioso e feliz, prosseguindo o tratamento do sexo feminino na sua obra Jean-Claude Brisseau, realizador, co-produtor e argumentista, trabalha o seu tema de forma nova e original, que passa pelo misticismo, o yoga e a reincarnação, o prazer feminino, o amor e a "herança psiquiátrica".
         "Que o Diabo Nos Carregue" é um filme de grande mestria narrativa, técnica e artística, que conta com fotografia de David Grinberg, música da actriz Anna Sigalevitch (uma revelação) e montagem de Maria Luisa Garcia.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Arte experimental

    Do canadiano Michael Snow encontra-se patente na Culturgest, em Lisboa, até 22 de Abril próximo a exposição "O Som da Neve", comissariada por Delfim Sardo.
   Trata-se de uma pequena mas significativa mostra das instalações visuais, sonoras e audiovisuais de um artista muito importante, com uma obra diversificada e muito curiosa que inclui filmes experimentais, como o famoso "Wavelenght" (1967), alguns deles também mostrados, que exploram em especial uma dimensão temporal do filme.
    Chamo especialmente a vossa atenção para o tratamento do som nesta instalações, parte integrante delas, algumas dedicadas predominante ou exclusivamente à música.
                     
      Simultaneamente, prossegue na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema o ciclo "A Arte da Visão" dedicado ao também famoso cineasta experimental americano Stan Brakhage (1933-2003), uma ocasião única de ver uma das obras mais importantes nessa área.
     Dedicou especial atenção aos olhos e ao que eles vêem mas também à figura humana e aos objectos, no que utilizou diferentes formatos e técnicas do cinema e da pintura de forma original.
     Cineasta do maior relevo, ele foi figura destacada do cinema de vanguarda americano, autor de uma obra muito marcante que vale a pena conhecer em mais uma grande iniciativa de programação da Cinemateca. Até 29 de Março.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Estilhaços

        O mais recente filme de Teresa Villaverde, "Colo" (2017), ddepois de ter estado no Festival de Berlim estreou finalmente em Portugal, confirmando-a como um dos mais importantes cineastas portugueses da sua  geração, ao lado de Pedro Costa como desde o início de ambos tenho dito.
      Depois da aparente auto-complacência feminina de "Cisne" (2011), a sua anterior longa-metragem, a cineasta, argumentista, produtora e realizadora, escolhe uma família, o casal  interpretado por João Pedro Vaz e Beatriz Batarda, e a filha, Marta/Alice Albergaria Borges. Privilegiando o ponto de vista desta, com a qual o filme arranca e termina, dá conta do estilhaçamento de uma famíla num tempo nem de guerra nem de escassez como a filha grita à mãe.
       Marta tem uma amiga, Júlia/Clara Jost, que está grávida e quer continuar a gravidez, e que ela acolhe em sua casa depois de o pai, desempregado, ter tido o seu despertar na banheira, como Brigitte  Bardot com Michel Piccoli em "O Desprezo"/"Le mépris" (1963), sob o signo do vermelho da toalha e do azul do balde, as cores de "Pedro, o Louco"/"Pierrot le fou" (1965) ambos de Jean Luc Godard. Com a mãe desinteressada e incapaz de pagar a conta da electricidade, ela vagueia e aproxima-se da avó depois de o pai, sempre sob o signo das mesmas cores e com regresso recorrente ao terraço, declarar querer assumir a paternidade do filho de Júlia.    
                      
     Com um compreensível salto geracional e com o corte da electricidade muito bem aproveitado pela excelente fotografia de Acácio de Almeida, "Colo" alonga-se nas suas inevitabilidades, como o namorado de Marta e os episódios paternos, quando o apoio mútuo requerido na família, o colo, cai e ela se estilhaça, o que é simbolizada pela morte do pássaro doméstico.
    Algures entre Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski, Teresa Villaverde cria mais um filme muito bom e irrepreensível, com um tratamento espacial perfeito - as divisões do plano, a profundidade de campo, a diagonal - e uma decantação temporal muito bem trabalhada - os planos longos do pai, nomeadamente no terraço. A raridade da música, que sobe no final, deixa tudo mais preciso e sem salvação, enquanto o travelling sobre a casa fechada do fim é muito bom
    O aparecimento de Simone de Oliveira como a avó e de Rita Blanco como Sílvia no final está muito bem visto, num filme de grande seriedade e grande rigor, ao que a cineasta nos habituou já ao longo de uma obra do maior relevo em que tem aperfeiçoado um estilo próprio, uma obra que "Colo" acrescenta de forma significativa.   

quarta-feira, 14 de março de 2018

O homem do universo

   Stephen Hawking (1942-2018), o mais famoso astrofísico do nosso tempo, que agora nos deixou, notabiliizou-se pelas suas descobertas extraodinárias a partir da teoria dos quanta, mas também pela sua capacidade de transmitir o seu campo científico: o universo.
  Atingido desde novo por doença grave e incapacitante, mesmo assim dedicou inteiramente toda a vida aos seus interesses científicos, o que foi narrado por um filme recente, "A Teoria de Tudo"/"The Theory of Everything", de James Marsh (2014), com Eddie Redmayne.
                     stephen hawking quotes
    Homem do seu e do nosso tempo, foi um herói moderno pela forma como viveu, por aquilo que descobriu, pela sua simpatia, o seu humor e a sua capacidade de, para todos, explicar o mundo em que temos vivido desde o início, que também explicou. Aliando a história e a filosofia, com o seu génio iluminou o nosso tempo, o passado e o futuro.
    Os seu livros mais importantes e mais conhecidos são "Breve História do Tempo: Do Big-Bang aos Buracos Negros" (Lisboa: Gradiva, 1988), "Aos Ombros dos Gigantes - As Grandes Obras da Física e Astronomia" (Lisboa: Texto, 2010) e "A Teoria de Tudo - A Origem e o Destino do Universo" (Lisboa: Gradiva, 2015), embora a sua obra seja toda ela muito importante e altamente recomendável.
    Figura fascinante e inconfundível, a sua partida é uma perda irreparável para toda a humanidade.

domingo, 11 de março de 2018

O rumor do mar

      Sempre vi os filmes da Rita Azevedo Gomes no cinema, de maneira que um fim de tarde, princípio da noite fui ao Cinema Ideal ver "Correspondências" (2016), o seu mais recente filme.
       Ocupa-se da correspondência epistolar trocada entre 1959 e 1978 por Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, dois nomes máximos da literatura e da poesia portuguesa do século XX - os únicos ao nível do Fernando Pessoa e do Herberto Helder -,  quando ele estave exilado no Brasil e nos Estados Unidos com a mulher, Mécia de Sena, enquanto ela permanecia em Portugal com o marido, Francisco Sousa Tavares, mas viajava muito.
       Com imagens e palavras gravadas de ambos, inéditas ou pouco conhecidas, o filme contém imagens actuais de contemporâneos deles - Mário Barroso, Luís Miguel Cintra entre outros - e de mais novos, que lêem as cartas e dizem poemas. Em palavras impiedosas sobre o país de então mas também sobre o país de sempre, mesmo sobre o cristianismo e a Grécia  Antiga que amavam, mito, tragédia e epopeia compreendidos, sobre a civilização azteca e sobre o extremo oriente, em vida e pensamento ambos se dizem com amizade e confiança um ao outro.
       Se, documentais, as imagens e as palavras de época são muito valiosas, a actualidade em que elas reverberam está muito conseguida, centrada no acto de dizer, nos ruídos e nos silêncios, nos corpos e nos cenários, nos gestos quotidianos. Por vezes, estridente, um violencelo irrompe, inopinado.
                                    
      Com homenagem expressa a Manoel de Oliveira e a João César Monteiro em imagens célebres, o segundo também em presença, "Correspondências", escrito e realizado por Rita Azevedo Gomes, faz lembrar sobretudo Marguerite Duras no seu movimento perpétuo da palavra dita em várias línguas, nos seus silêncios e na sua remissão para a poesia anterior. Mas estabelece a sua originalidade também na utilização de diversos formatos e nas divisões do ecrã em ecrãs menores, flutuantes.
        Fruto da colaboração múltipla de todos os participantes, destaco aqui a fotografia de Acácio de Almeida e Jorge Quintela, a música de Alexander Zekke e a montagem da realizadora e de Patrícia Saramago. Enrolando e desenrolando a sua estrutura em termos binários, unifica-se num ritmo distendido de planos longos, que por vezes se intensifica.
       Na sua exigência e no seu rigor, este filme longo e muito bom presta sentida homenagem àqueles que evoca e ao melhor da literatura e de poesia portuguesa. E termina com o rumor do mar, que me acompanhou à saída, quando atravessava a noite lisboeta, alheada e turística.
       Lembro que a eles tinham já sido dedicados "Sophia de Mello Breyner Andresen", de João César Monteiro (1969), e "Sinais de Vida", de Luís Filipe Rocha (1984), que fez também o filme "Sinais de Fogo" (1995) baseado no célebre romance de Jorge de Sena. E que Rita Azevedo Gomes se tinha já baseado em Sophia para "Frágil como o Mundo" (2001).
       Há coisas muito boas na cultura portuguesa e este filme, os seus dois protagonistas ou o último livro de Maria Filomena Molder contam-se entre elas.

quarta-feira, 7 de março de 2018

A memória, a história

      O filme "Lumière!", com produção de Bertrand Tavernier e do Institut Lumière, escrito e realizado por Thierry Frémaux (2017), recorda os irmãos Auguste e Louis Lumière que em 1895 mostraram publicamente o seu cinematógrafo, primeira forma completa do cinema, que haviam inventado nos anos anteriores.
     Recuperados e restaurados os 108 filmes (de um total superior a 2.000 do catálogo dos Lumière) de cinquenta segundos cada, temos a possibilidade de a eles assistir de uma forma historicamente pertinente e correcta, devidamente identificados, datados e acompanhados por comentários do próprio Frémaux que os situam geograficamente e na história do cinema.
       Distinguindo muito bem cada um dos irmãos, este filme conta a história de cada um dos filmes que mostra, identificando os seus intervenientes, as suas diferentes versões e o que em cada um deles está já em causa do ponto de vista da realização, que era de Louis.
                     
      Trata-se de um empreendimento histórico pela sua amplitude e os filmes que inclui, já sujeitos a uma completa análise histórica, que têm tudo que ver com o cinema que antecipam em encenação - a profundidade de campo, a diagonal, o fora de campo - e em construção dramática ou cómica, mesmo se também inspirados na pintura do século XIX. Tinham razão aqueles que afirmaram que o cinema estava já completo nesses primeiros filmes de um só plano. A montagem estava já em cada um deles, embora a de mais de dois planos tenha chegado poucos anos depois.
     Ora este filme de filmes tem tudo que ver com a "ontologia do cinema" tratada por André Bazin num escrito célebre, recordada no número 742 deste mês de Março dos Cahiers du Cinéma por Stéphane Delorme no importante dossier "Pourquoi le cinéma?", em "Sensibilité - La corde sensible", um texto a que tenho a objectar só utilizar exemplos europeus e norte-americanos e usar como sinónimos "sentimentos" e "emoções", sem os distinguir - cf. António Damásio.
    Quero a este respeito recordar aqui André S. Labarthe (1931-2018), fundamental crítico e cineasta francês, co-autor com Janine Bazin das séries "Cinéastes de nôtre temps" e "Cinema, de nôtre temps", que nos contaram a história do cinema pela voz e com a imagem dos seus principais criadores. Aí o trabalho deles tem tudo a ver com este filme. 

terça-feira, 6 de março de 2018

Toda a dor do mundo

       Conhece-se o incremento recente do filme documental sobre arte e artistas, praticado entre nós com especial cuidado e sucesso por Jorge Silva Melo.
       "Beuys", de Andres Veiel (2017) é um documentário de longa-metragem sobre o célebre artista alemão, pintor, artista gráfico, escultor, teórico, professor e performer, que marcou decisivamente a segunda metade do século XX.
      Ao recordar a vida dele com apoio em imagens suas e das suas criações, em declarações suas e em depoimentos de outros, constrói com rigor um puzzle biográfico e artístico pleno de contrastes e de humor, muito elucidativo e interessante.          
                      
       Joseph Beuys ultrapassou a fama de Andy Warhol e de Robert Rauschenberg quando, na década de 70, passou de uma tempestade a um furacão de criatividade, contra as regras estabelecidas da arte e do seu establishment. Mas o seu pensamento "orgánico" sobre a arte tinha também uma dimensão política, que ele não se dispensou de levar à prática a partir da ideia, nunca satisfeita, de democracia directa por referendo.
       Reconhecido dos dois lados do Atlântico e no Japão, teve uma vida atribulada, com a sua vocação artística contrariada pelos pais e a participação na II Guerra Mundial até à queda do avião em que seguia na Crimeia. Apesar disso e com isso atrás de si, afirmou-se e singrou na cena artística internacional.
       Este documentário muito bem documentado e muito bem feito faz-lhe justiça e constitui-se, assim, em verdadeiro manifesto pela arte num seu conceito expandido, que ele muito bem soube defender e encarnar.

segunda-feira, 5 de março de 2018

A prenda do avô

      "Ramiro" de Manuel Mozos (2017) é mais um bom filme deste simpático cineasta português que, sem as peneiras de "grande artista do cinema" de outros, continua tranquilamente a construir uma obra pessoal de grande qualidade. E é a sua primeira longa-metragem de ficção depois de "4 Copas" (2008)
      Num tempo em que as livrarias continuam a morrer, escolhe um alfarrabista como protagonista, Ramiro/António Mortágua, num filme em que vários outros e especialmente outras giram em volta dele. Com livros que na loja caem em cima da cabeça dos clientes (Iasbel/Cristina Carvalhal), tem como protegidas uma jovem grávida, Daniela/Madalena Almeida, e uma convalescente de um avc, Dona Amélia/Fernanda Neves.
      Por sua vez, o pai da jovem, AlfredoVítor Correia, carpinteiro a cumprir pena por ter matado a mulher, é visitado na prisão por Ramiro a pedido da convalescente Dona Amélia, e uma vez em liberdade procura-o, na sequência do que, sem chegar a encontrar a filha, deixa uma prenda para o neto por nascer
                      Manuel Mozos estreia hoje o filme
     Baseado numa construção sobre espaços fechados, da casa, da loja, de restaurantes e bares, o filme abre para o exterior quando o protagonista procura o futuro avô nos lugares em que ele terá vivido.
     Manuel Mozos é um cineasta inteligente, que trabalha as coisas simples e elementares da vida, do nascimento até à morte (Jaime França/Henrique Espírito Santo) passando pela alimentação e a bebida, e sabe filmar Lisboa sorrateiramente, à socapa de uma cidade que já não existe assim, e os actores à altura precisa em cada plano. Do mesmo modo, sabe usar de uma ironia portuguesa, citadina e lisboeta, nomeadamente quanto aos desajustes das novas tecnologias para os mais velhos e quanto aos comentários destes sobre os mais novos e os novos tempos.
     Declarou que lhe interessa o que está a acabar, e este "Ramiro" vem muito bem na esteira do documentário "Ruínas" (2009) e dos filmes que, gabo-lhe a paciência, tem dedicado ao cinema português, à censura e ao amor apaixonado do cinema ("João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei", 2014).
      Com argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo, colaboradores habituais de Miguel Gomes, fotografia de João Ribeiro, montagem de Pedro Filipe Marques e vestuário de Lucha d'Orey, "Ramiro" de Manuel Mozos é do melhor do actual cinema português, o seu melhor filme desde "Xavier" (1992), e por isso vivamente o recomendo aqui.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Outro caso real

       "15:17 Destino Paris"/"The 15:17 to Paris", de Clint Eastwood (2018), rima na obra do grande clássico americano vivo com "Sniper Americano"/"American Sniper" (2014), em que, além do heroísmo, ele mostrava o pessimismo americano sobre a guerra no Iraque. Aqui ele escolhe um episódio muito recente que envolve três americanos na neutralização de um terrorista no comboio Amsterdão-Paris, em 2015.
    Partindo da opção feliz de mostrar a vida dos três protagonistas desde a infância, Spencer/William Jennings, Alek/Bryce Gheisar e Anthony/Paul-Mikél Williams, durante a qual eles foram colegas numa escola católica, só na sua segunda parte o filme se centra na viagem deles pela Europa a partir de Roma para, depois de Veneza e Berlim, se encontrarem todos em Amsterdão, onde apanham o comboio que vai definir o seu destino.
       Como "Milagre no Rio Hudson"/"Sully" (2016) baseado em factos reais, este é um filme menos espectacular e por isso mesmo mais notável, em que se nota a marca, a assinatura do cineasta, de quem justamente Godard dizia que se reconhece um plano seu pela posição da câmara - e, acrescento eu, por algo mais do que isso: uma mise en scène, uma concepção do espaço, uma secura narrativa eliptíca, embora aqui acomodadas.
                      
        Com argumento de Dorothy Blyskal, baseado no livro dos protagonistas, Anthony Sadler, Alek Skarlatos e Spencer Stone com Jeffrey E. Stern, "15:17 Destino Paris" devolve-nos uma América confiante em si própria, nos seus princípios e na sua iniciativa, na sua decisão e na sua coraagem, sem que o cineasta se veja forçado a um golpe de rins para o fazer. A escolha do filme foi dele e a opção de mostrar os próprios protagonistas a interpretarem-se a si próprios resulta muito bem.
      Contando com fotografia do habitual Tom Stern, música de Christian Jacob, o mesmo de "Milagre no Rio Hudson", e montagem de Blu Murray, assistente em "Sniper Americano", este um filme que nos devolve o melhor do cinema americano e da América sem forçar os  traços, a partir dos factos reais. Muito recomendável para todos, mesmo para americanos distraídos com a revolução digital e o espectáculo do 3D
       Mas não deixarei de dizer que Clint Eastwood, realizador e produtor deste filme, aqui como nos dois anteriores mostra "heróis americanos" indiscutíveis, ele melhor do que ninguém saberá porquê, o que confere a esses filmes um certo tom de propaganda. Gostaria de o ver regressar a seguir ao seu espírito agudamente crítico sobre a América contemporânea e os americanos de hoje, que celebrizou mesmo quando foi menos consensual.      

Bom panorama

       "Uma Viagem pelo Cinema Francês com Bertrand Tavernier"/"Voyage à travers le cinéma français", de Bertrand Tavernier (2016), é um filme muito bom e completo sobre uma das cinematografias mais importantes da Europa e do mundo, feito a partir do ponto de vista e da experiência do cineasta desde a sua infância.
        Sempre com recurso a excertos de filmes e declarações dos envolvidos na sua produção, começa com Jacques Becker e termina com Claude Sautet, aos quais é dedicado. Fica bem ao cineasta deter-se, além de Jean Renoir, Jean Gabin, Jean Vigo, Marcel Carné, Jacques Prévert e Jean-Pierre Melville, nos menos conhecidos Edmond T. Gréville e John Berry entre outros, bem como em Eddie Constantine, que o marcaram e são raramente referidos.
        Lamento, contudo, que a referência à nouvelle vague francesa seja tão breve e selectiva, deixando de fora Rivette e Rohmer, por exemplo, e que René Clair, Robert Bresson, Henri-Georges Clouzot, Jean Rouch, Alain Resnais e Jacques Tati sejam pouco referidos, quando não omitidos. Mas tal dever-se-á provavelmente a ele ser um homem da Positif, uma importante e antiga revista francesa de cinema, o que o faz estar atento aos compositores Maurice Jaubert e Joseph Kosma.    
                          http://www.thebloggerscinemaclub.com/wp-content/uploads/2016/11/media.jpg
        Na sua longa duração este filme contém histórias curiosas, algumas delas fabulosas e desconhecidas do cinema francês que Tavernier descobriu e trouxe para o seu filme, feito à maneira dos de Martin Scorsese sobre o cinema americano e sobre o cinema italiano, como eles completo e muito bem feito.
        Aproxima-me deste cineasta francês, justamente célebre, ter tido como ele uma "primo-infecção" na infância e o gosto pelo cinema americano, mas afasta-me dele o gosto pessoal e a perspectiva crítica que, sendo também parcial e subjectiva, nos Cahiers du Cinéma dos anos 50 era mais virulenta, mais apaixonada e esclarecida - embora por vezes também mais injusta -, o que fez com que das suas fileiras tenha saído o melhor da nouvelle vague.
          Mas vejam pois, bem documentado e comentado, só vos pode fazer bem na sua seriedade e na sua erudição. Os franceses choraram com este filme, o que com o seu sentimentalismo e o seu chauvinismo se compreende, nós podemos vê-lo com os olhos secos.