domingo, 5 de fevereiro de 2017

Os limites da fé

    Martin Scorsese é um cineasta católico que tem trabalhado sobre o cristianismo e a religião com alguma insistência desde "A Última Paixão de Cristo"/"The Last Temptation of Christ" (1988) passando por "Kundun" (1998) até chegar a "Silêncio"/"Silence" (2016), que agora estreou.
    O episódio que envolve missionários portugueses no Japão no Século XVII é conhecido de "Os Olhos da Ásia", de João Mário Grilo (1996), e diz muito ao imaginário cristão: como resistir à pressão violenta para abjurar? E é precisamente a apostasia e as suas condições concretas na história que o filme trata: o martírio ou abjurar.
    Mais do que compará-lo com o filme português interessará perceber como anteriores cineastas americanos católicos encararam em filme a sua fé, do estilo grandiloquente e imperial de Cecil B. DeMille aos cineastas americanos de origem irlandesa John Ford e John Huston. Parece-me especialmente interessante o confronto deste projecto de Scorsese, que se sabe antigo, com o derradeiro filme de John Ford, "Sete Mulheres"/"Seven Women" (1966).
    O factor religioso pesou no ocidente tanto na Europa como nos Estados Unidos e é preciso saber que Dreyer era protestante, Bergman teve educação luterana, Rossellini, Bresson e Oliveira eram católicos - embora o primeiro se tenha afastado - para entender completamente a obra de cada um deles - na América Hawks era protestante enquanto o seu rival John Ford era católico, tal como Hitchcock.
                     
      Restará saber o que tal elemento pesou em cada um dos filmes de cada um deles, que todos, salvo Cecil B. DeMille, filmaram também contra o entendimento social estabelecido da religião respectiva, conformista e instalado em certezas, e foram sempre social e politicamente críticos. Ao que haverá que acrescentar que nenhum deles foi o grande cineasta que foi apenas por causa da religião professada.
      O que torna pertinente o paralelo entre "Silêncio" e "Sete Mulheres" é que Scorsese faz o seu filme como mais um filme de gangsters, género em que se notabilizou, como Ford fez o dele como um western, o seu género favorito - e com isto não estou a dizer mal nem de um nem do outro, embora prefira o despojamento do segundo ao grande espectáculo do primeiro. Aliás ambos os filmes são atravessados por um sopro trágico mas em "Silêncio" há apesar de tudo a esperança da fé, que em "Sete Mulheres" se ausenta para a protagonista no final - ou talvez não.
     Dito isto sumariamente, reconheço em Martin Scorsese o interesse pela religião católica como assunto expresso dos seus filmes, o que decorre da educação que teve mas também dos trambolhões que deu na vida. Ora a questão do seu último filme é mesmo a fé, a sua propagação no Século XVII no Extremo Oriente e a permanência nela dos missionários e convertidos ameaçados de morte se não abjurassem.
     A questão em si mesma é pertinente embora eu pense sempre que é uma facilidade colocá-la na história. Mas sobre a fé e o cristianismo o cinema conheceu de tudo, do grande espectáculo de "A Bíblia"/"The Bible: In the Beginning...", de John Huston (1966) à austeridade anti-espectacular de "O Messias"/"Il messia", de Roberto Rossellini (1975), que prefiro bem como as alusões avulsas em filmes comuns, como exemplarmente aconteceu com Robert Bresson.
                    
     No filme de Scorsese avança-se sempre na mesma direcção, com um massacre por tortura por hora, uma decapitação e a parte do anterior apóstata, o padre Ferreira, no final. É um programa narrativo e fílmico completo que nos deixa exaustos sem ganho de maior que não seja o de aumentar o prestígio do cineasta e confirmar os católicos na história da sua religião, embora aqui sejam sempre recordados os que sinceramente morreram por uma causa. Agora fazer da morte violenta um grande espectáculo como em "Silêncio" acontece é de especialista em filmes de gangsters.
     Mas fica completamente de fora a perspectiva colonial dos europeus na sua presença no Japão, que levou consigo a intenção missionária e esteve na origem da aculturação nipónica em termos prolongados (ver "Elogio da Sombra", de Junichirõ Tanizaki" - Lisboa: Relógio D'Água, 2016), e percebe-se que o cineasta força aqui os limites com os quais se debate quando em termos cinematográficos, impressionante como se desejava nem sequer é do melhor que ele tem feito. E a reserva mental com uma "voz interior" que apesar de tudo fala surge como facilidade.
    Visto como filme religioso, "Silêncio" de Martin Scorsese com argumento de Jay Cocks e seu sobre o romance homónimo de Shusaku Endo (editado em português pela Dom Quixote) é um bom filme que importa pelo sentido que faz na obra do cineasta. Interessará sobretudo perceber em que medida terá sido para ele um filme necessário, que ele precisava mesmo de fazer.
     Restará por último saber qual o sentido que ele faz hoje para cada um de nós e em que medida, com o seu pathos doloroso e prolongado, poderá ser tido no futuro não apenas como um documento sobre a narrativa que relata, sobre o passado histórico, mas sobre o nosso próprio tempo. Na sua eloquente secura elíptica é preferível "Os Olhos da Ásia", mas "Silêncio" existe e devemos saber como lidar com ele.

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