sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Por um copo de cerveja

     "El Dorado XXI" é o segundo documentário de longa-metragem de Salomé Lamas (2016), rodado no alto dos Andes, na mina e entre a população de La Rinconada, próximo da fronteira entre o Peru e a Bolívia, e confirma e amplia a excelente impressão que ela tinha deixado "Terra de Ninguém" (2012).
     A primeira parte do filme mostra durante quase uma hora, em plano fixo, a escuridão do interior da mina atravessada pelos mineiros com uma luz presa dos capacetes, o que permite desenhar e descobrir o percurso que eles descrevem em duas diagonais sucessivas, a primeira da esquerda para a direita, a segunda, mais afastada, da direita para a esquerda até ir dar a um corredor escuro que se perde no interior da montanha.
   Este movimento contínuo é acompanhado por vozes que funcionam como comentário, nomeadamente a de uma estação de rádio que relata os acontecimentos locais. E nesse momento prolongado que o plano fixo torna abissal temos a noção precisa, apesar das trevas envolventes, do espaço percorrido e também de um tempo que, parecendo o mesmo, se alonga na repetição como se circularmente.   
                    
      Depois saímos para os belíssimos topos montanhosos e gelados e a palavra acaba por ser dada a membros daquela comunidade, especialmente mulheres que falam demoradamente sobre a vida naqueles locais. E então o filme reduz-se muito bem aos quatro elementos, terra, ar, fogo e água gelada, assumindo um tom primitivo e primevo muito bem conseguido e transmitido.
      Nessa segunda parte sucedem-se planos fixos que conferem uma unidade a cada grupo, com uma planificação muito apropriada, justa e precisa, de modo a percebermos o isolamento daquela gente naquela região e o que têm para dizer. Também há no final uma festa em que se cantam canções nostálgicas de amores perdidos, no cumprimento de um ritual de autenticidade manifesta.
                    
      Ora ao criar este "El Dorado XXI" Salomé Lamas como que cria a partir do nada uma extrema e perturbadora beleza, totalmente desconhecida e só mostrada devido ao seu filme. Também artista visual, a cineasta trabalha superiormente a imagem mas também o som com uma enorme destreza e com resultados surpreendentes a nível audiovisual.
     De tal modo que ficamos com a ideia de que o mundo, pelo menos aquele mundo, começou com este filme  e com ele acaba, embora todos saibamos que aquelas vidas de que vimos de perto excertos seleccionados continuam iguais a si mesmas, tal como as vimos, até se cumprirem.
     Claro que o filme tem também um valor etnológico e um interesse antropológico notável, mas disso só nos damos verdadeiramente conta a partir de uma segunda ou terceira visão. Eu sou muito definidamente por "El Dorado XXI" e por Salomé Lamas.

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