Chegou-nos finalmente "Aquarius" do brasileiro de quem se fala, o realizador e argumentista Kleber Mendonça Filho (2016), com Sónia Braga, co-produção de Walter Salles e Carlos Diegues como produtor associado, ou seja, a nata do cinema brasileiro.
Poderia dar para o melodrama telenovelesco mas a precisão cinematográfica do filme, explorando o espaço na horizontal contra a qual a protagonista, Clara/Sónia Braga, se eleva por três vezes subindo as escadas - a primeira na noite da festa, a segunda quando chega a casa com o neto, a terceira para descobrir a casa emparedada e estragada - antes de sair das águas para o embate final com os homens da construtora, Geraldo Bonfim/Fernando Teixeira e o seu neto Diego/Humberto Carrão.
Num filme ele próprio dividido em três partes, "O cabelo de Clara", "Os amores de Clara", "O câncer de Clara", contra a pressão da construtora que o quer destinar a outro fim, mesmo contra a pressão dos seus filhos ela nega-se a abandonar a sua casa no edifício de que é a última habitante.
As liberdades que o filme toma com o tempo e com a imaginação de Clara (Barbara Colen em 1980) permitem defini-la melhor ao longo da sua vida e em especial no presente, enquanto as personagens ditas secundárias preenchem um espaço próprio sempre em função da protagonista.
Numa interpretação poderosa em que investe o seu imenso talento, Sónia Braga toma conta da sua personagem e do filme para dar toda a teimosia, toda a persistência e resistência mas também toda a espessura humana de Clara num caso em que tem inteira razão pois ali se viveu a sua vida e a dos seus.
Mas o Brasil conta com grandes actores que fazem o banheiro-bombeiro da praia, os dois empregados da construtora que acabam por denunciá-la e os dois líderes desta com um talento e uma entrega excepcionais.
Estuante de energia na protagonista, o filme de Kleber Mendonça Filho dá-se todo o tempo em favor dela, sitiada mas insubmissa que se bate até ao fim contra tudo e contra todos até os levar de vencida.
Com alguma coisa do cinema americano do New Deal e os seus heróis solitários contra um meio decadente, a parábola final de "Aquarius" em que Clara devolve aos Bonfim o seu câncer - o deles, que o dela tinha ela vencido no início - está muito bem vista. E se o filme tem sido muito bem acolhido em todo o mundo é porque aquele não é apenas um problema brasileiro.
Não podem descansar enquanto não virem este grande filme de actualidade candente e qualidade superior que vos ajuda a compreender melhor o mundo em que vivemos, em que a elite domina "com falta de carácter", acusação final de Clara num discurso poderoso que explicita em termos políticos o que ali está em jogo.
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