sábado, 18 de março de 2017

Sem ter onde cair morto

   Depois de "Alice" (2005) e "Como Desenhar um Círculo Perfeito" (2009), o português Marco Martins volta a estar na berlinda com "São Jorge" (2016) em que, de novo com Nuno Lopes, recupera os espaços fechados e sem horizontes de uma cidade-capital que dizem ser grande.
   Com uma excelente escolha dos espaços e da escala dos planos, o realizador, também co-autor do argumento com Ricardo Adolfo, segue dois anos antes do início um pugilista, Jorge/Nuno Lopes, que tem uma vida difícil pois está separado da mulher brasileira, Susana/Mariana Nunes, que tem de sustentar, e tem a seu cargo o filho pequeno, Nelson/David Semedo.
  Em tempo de crise, 2011, ele aceita trabalhar em "cobranças difíceis", que nessa situação aumentam, para fazer uso dos seus músculos, o que durante a primeira parte do filme não acontece. Nessa primeira parte destacam-se os diálogos familiares com não-profissionais que improvisam contracenando com actores profissionais, como José Raposo e Beatriz Batarda, os encontros entre Jorge e Susana e as situações em que ele entra como terceiro enquanto outros dois estabelecem o "diálogo" com devedores.
   Há um corte no filme quando Susana se afasta no beco, entra a porta e sobre as escadas à esquerda até desaparecer depois de ter dito ao protagonista que não regressa para ele, como ele queria. Segue-se a visita dele a uma nova casa, vazia, e depois o primeiro episódio em que Jorge é suposto exercer o seu físico, o que ele decide não fazer.
                   
    Após uma boa exposição o filme encaminha-se rapidamente para o seu fim com a porrada que é mesmo dada a um "devedor", que acaba por morrer "acidentalmente", como estas coisas são supostas acontecer em impunidade em Portugal ("ninguém te viu"), o que constitui para o protagonista um choque final, que é acompanhado pela aceitação de Susana de regressar para ele.
    Com um fim elíptico, pois não é preciso explicar sempre tudo num filme muito bem construído justamente em termos de elipse e de fora de campo, o pobre tipo que "não tem onde cair morto", como lhe diz a certa altura Susana, é um precioso retrato de um país fechado sobre si mesmo que se queixa de si próprio, e com razão.
    A interpretação de Nuno Lopes, justamente distinguida na Secção Orizzonti do último Festival de Veneza, é portentosa e vale o filme de que ocupa muito bem o maior espaço, lembrando o "Belarmino" de Fernando Lopes (1964), filme inaugural do cinema novo português dos anos 60 que aqui se torna uma referência óbvia. Do neo-realismo italiano, que o filme namora, para além da intervenção de não-profissionais a referência também óbvia é "Ladrões de Bicicletas"/"Ladri di biciclette", de Vittorio de Sica (1948), por causa do filho que segue o que acontece ao pai sem compreender. Presa das suas próprias contradições e angústias, o Jorge que víramos no início encomendar-se ao santo do mesmo nome é uma personagem viva, que acompanhada em grande-plano ou em plano-médio ocupa fisicamente o espaço, evolui em desgosto e se torna comovente, num filme em que também Susana evolui em relação a ele.
   Destaco em especial a fotografia a cores de Carlos Lopes que persistentemente nega a profundidade de campo enquanto segue Jorge, aumentando assim o tom fechado, concentracionário do filme, salvo no momento da assinalada mudança e a partir daí - uma opção que, com vantagens, substitui o preto e branco que se poderia esperar -, e o facto deste "São Jorge" se basear numa investigação específica, o que em termos antropológicos significa um trabalho de campo prévio, que torna mais percuciente a sua exemplar perspectiva sociológica.
   A indiferença dos espectadores a este excelente filme será mais uma demonstração do alheamento dos portugueses em relação a si próprios. Mas embrulhados nas suas próprias aldrabices e traficâncias grandes e pequenas talvez eles nem sequer o mereçam.

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