sábado, 15 de abril de 2017

Literatura - alguns mortos

      Na morte do escritor português Fernando Campos, sinto-me autorizado a escrever sobre a grande literatura, começando justamente pela referência a autores mortos recentemente, no final do século XX ou já no século XXI. Sem querer com isto discriminar os vivos, será o ponto de partida para uma série de entradas.
     A grande literatura não se distingue por ser especialmente satisfatória, no sentido de gratificante, nem por ser de leitura fácil, que também pode ser, nem pelo número e dimensão das dintinções atribuídas, mas por saber problematizar questões grandes ou pequenas e por problematizar-se a si própria. A tendência de distinguir grandes e pequenas questões, que vem da grande literatura do século XIX, tal como a distinção entre livros com muitas e com poucas páginas, não é hoje em dia sustentável, o que é bem notório no caso do conto.
      A grande literatura define-se no cerzir da escrita, o estilo, ou na composição, orgânica ou fragmentária, mas também na exploração de grandes questões, critério menos seguro porque às vezes, com excesso de ambição espalha-se, e na criação de personagens, de situações e de ideias. Ela não ignora a literatura do passado ou sua contemporânea, os grandes textos literários de referência, antes com eles dialoga, às vezes em termos intertextuais e remetendo para um metatexto. 
      A grande literatura não tem a preocupação da edificação moral, pode em vez dela ter a de nos inquietar na nossa boa consciência e nos atrair para o seu contrário - Georges Bataille escreveu sobre isso num livro actualmente disponível em português. Não tem nada a ver com o conceito de best-seller que por sua vez nada tem a ver com ela, e pode viver na quase ignorância pública. Mas há também um acolhimento público e um reconhecimento crítico, que passam por distinções atribuídas e não devem ser postos de lado.
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      A grande literatura dirige-se a todos mas pode acontecer que nem todos sejam sensíveis a toda ela por uma ou outra razão, cultural ou de literacia por exemplo. E há restrições ao seu acesso que podem ter origem no idioma original e na sua disponibilidade noutros idiomas, questão relativamente à qual não estamos mal servidos em português na área da ficção.
    A grande literatura não nos conforma no nosso pensar e sentir, não é necessariamente de consolação e não tem de ser forçosamente de leitura difícil, embora também o possa ser. De resto morrem escritores de grande nível em todas as idades, para alguns dos casos mais recentes me cumpre neste momento chamar a vossa atenção, indicando para cada um a sua editora portuguesa preferencial.
     Há os casos evidentes de escândalo da morte precoce que interrompe uma obra brilhante, como o chileno Roberto Bolaño (Quetzal) ou o austríaco W. G. Sebald (Teorema, Quetzal), ambos com livros saídos recentemente em português, como há caso de veteranos, como Fernando Campos (DIFEL, Alfaguara) ou Antonio Tabucci (Dom Quixote), este com o seu primeiro livro agora editado entre nós, o uruguaio Mario Benedetti (Cavalo de Ferro) ou o argentino Juan José Saer (Caminho).
     O que particulariza a grande literatura é que ela é universal, nasce em qualquer país ou canto do globo sobre qualquer questão que interessa o escritor e o leva a transcender o caso particular para imprimir carácter mais geral, susceptível de envolver todos os leitores, ao que escreve.
                                    Wook.pt - A Piada Infinita
      Não podemos sequer dizer, como já tenho ouvido, que hoje em dia não existe literatura ao nível da do passado porque pura e simplesmente tal não é verdade, nem podemos restringir a grande literatura a parâmetros formais ou de género.  Mas também não devemos forçar-nos a ler escritores tidos como grandes se eles não nos dizem nada de especial, nem renunciar a ler escritores considerados menores que nos agradam e que às vezes não o são tanto como isso (menores).
    Há grandes escritores que tiveram vidas atribuladas, como o húngaro Sándor Márai (Dom Quixote) e o americano David Foster Wallace (Quetzal), e grandes escritores que cultivaram o modelo de short sories como Raymond Carver (Teorema, Quetzal) ou Alice Munro (Relógio D'Água), ou que praticaram a prosa e a poesia, como Vasco Graça Moura (Quetzal), a ficção e o ensaio como Umberto Eco (DIFEL, Dom Quixote), e em nenhuma das áreas podem ser ignorados.
     Mas há também os grandes poetas, xamãnicos e iluminados, de que me limito a mencionar aqui Alexandre O'Neill, de quem acaba de sair uma nova "poesia completa" com muitos dispersos, Al Berto, Luís Miguel Nava, Daniel Faria (Assírio & Alvim), e Herberto Helder (Assírio & Alvim, Porto Editora). Tal como existiram a prosa poética de Maria Gabriela Llansol (Relógio D'Água, Assírio & Alvim) e perduram o mexicano Carlos Fuentes (Dom Quixote) e o português José Saramago (Caminho, Porto Editora). 
     Começar isto pelos mortos é uma questão de princípio, de justiça, porque eles tendem ou a ser esquecidos ou então sobrevalorizados.

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