Por uma daquelas coincidências explicáveis, assisti em dias consecutivos aos dois mais recentes filmes do haitiano Raoul Peck: o documentário "I Am Not Your Negro" (2016) no Arte e "O Jovem Karl Marx"/"Le jeune Karl Marx", com argumento de Pascal Bonitzer e do realizador (2017), no circuito comercial.
O primeiro traça o percurso intelectual de James Baldwin (1924-1987), figura de referência da cultura americana da segunda metade do século XX como escritor e cronista político, com base em numerosas imagens de arquivo e nos seus apontamentos escritos, disponibilizados pela família. A narração é feita por Samuel L. Jackson.
Escrito por Raoul Peck a partir dos escritos de James Baldwin, este documentário, que inclui também excertos de filmes americanos mais ou menos conhecidos por ele convocados, manifesta uma fidelidade extraordinário à sua personagem ao partir de activistas fundamentais dos direitos civis e da questão racial americana nos anos 60, em especial Medgar Evers, Martin Luther King e Malcolm X.
A reflexão assim produzida é poderosa e pessoal, do próprio Baldwin, com um profundo pessimismo nas palavras de quem se considerava optimista. E, embora ele não antecipasse como possível a eleição de um presidente negro num prazo de 40 anos, poderia ter no mais grande parte de razão na sua apreciação política, pela qual passa a memória da escravatura e da origem africana dos negros americanos do século XX.
Apesar de, como tem sido notado, não tratar a homossexualidade da personagem, o que nem sequer considero essencial no projecto, "I Am Not Your Negro" é um documentário extraordinário, sobre o qual o cineasta prestou esclarecimentos no Arte depois da sua exibição. E passa no próximo IndieLisboa.
"O Jovem Karl Marx" é um filme diferente, de ficção, que encena a juventude de Marx/August Diehl e Friedrich Engels/Stefan Konarske, os autores do "Manifesto Comunista" nos anos 40 do século XIX, o primeiro acompanhado por Jenny/Vicky Krieps que foi a sua mulher e a mãe das suas filhas, o segundo com a sua fama de apaixonado falhado mas acompanhado por Mary Burns/Hannah Steele.
O retrato de época, que inclui entre outros Proudhon/Olivier Gourmet, autor do célebre "O Que É A Propriedade?", é conseguido, com diálogos precisos, composições correctas e atentas às nuances, aos detalhes, e ambientes bem recriados. Talvez siderado pelo peso histórico das suas personagens, Raoul Peck não constrói um filme brilhante mas contido e justo, no que até faz bem. Não tratar os jovens Marx e Engels como quaisquer outras figuras políticas do passado permite construir o seu segredo intelectual e humano.
O retrato de época, que inclui entre outros Proudhon/Olivier Gourmet, autor do célebre "O Que É A Propriedade?", é conseguido, com diálogos precisos, composições correctas e atentas às nuances, aos detalhes, e ambientes bem recriados. Talvez siderado pelo peso histórico das suas personagens, Raoul Peck não constrói um filme brilhante mas contido e justo, no que até faz bem. Não tratar os jovens Marx e Engels como quaisquer outras figuras políticas do passado permite construir o seu segredo intelectual e humano.
As
questões debatidas são conhecidas da história da filosofia e da teoria económica e política,
mas dar figura humana viva a estes dois gigantes do pensamento político do século XIX convoca
de novo as suas ideias e os seus escritos, a que confere uma nova vitalidade e
actualidade. Se os não conhecem, aos escritos deles, estão muito a tempo de os
ler e de verificar a sua pertinência para decifrar o presente.
Curiosamente
"O Jovem Karl Marx" não faz o elogio deliberado das personagens,
apresentadas nas suas fragilidades humanas além da sua energia e da
determinação das suas ideias, deixando elementos ao espectador para ele
imaginar as dificuldades e o meio social da época.
Este é assim um outro bom filme de Raoul Peck, um cineasta que aprecio e aqui aconselho vivamente.
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