terça-feira, 29 de janeiro de 2019

De passagem em fuga

  O mais recente filme do alemão Christian Petzold, "Em Trânsito"/"Transit" (2018), tem adaptação dele de uma novela de Anna Seghers. Dedicado a Harun Farocki (1944-2014), tem várias particularidades que o tornam uma obra cinematográfica notável.
  Passado durante a invasão nazi da França na II Guerra Mundial, não assume a época e a circunstância em termos visuais, apenas narrativamente agarrado a elas e no espaço de cidades francesas progressivamente ocupadas do norte para o sul. De resto, os cenários, o vestuário, os acessórios e os adereços são da actualidade, o que cria um desfazamento não inocente mas muito produtivo. Como se tudo decorre-se num espaço-tempo abstracto
   Além disso, é acompanhado por uma voz-off narrativa que só no final recebe imputação ao dono do bar a quem Georg/Frantz Rogowski conta em Marselha o que lhe aconteceu desde o início: o seu encontro em Paris com um escritor que lhe confiou duas cartas e uma missão antes de morrer.
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    Contando com bons ambientes, são contudo as personagens o mais assinalável deste filme: Marie/Paula Beer, a mulher do escritor cuja identidade Georg assume para efeitos de sair por mar para o México - apesar de ele próprio passar a escrever também -, o médico que a acompanha, Richard/Godehard Giese, e sobretudo Melissa/Maryam Zaree, refugiada magrebina surda-muda com o seu filho pequeno, Driss/Lilian Batman, que joga futebol. Num filme bilingue, alemão e francês.
    O passado rebate-se sobre o presente de forma muito original e inventiva, de modo tal que o presente ecoa o passado tendo-o como referência permanente. As personagens de Georg e Richard cruzam-se por causa de Driss e debatem-se por causa de Marie para ver quem parte com ela e para onde, enquanto Melissa e o filho desaparecem sem deixar rasto. E há ainda uma mulher mais velha, arquitecta/Barbara Auer, que circula em perda até parecer recuperar para se deixar cair.
    Construído sobre a memória e o esquecimento entre personagens mas também entre épocas históricas que acreditamos não se repetem, "Em Trânsito" é um filme muito bom e conseguido sobre o poder de sugestão, que inclui o final em que Georg julga ver quem lhe acaba de ser dito que morreu. O que levanta a questão de quem conta e quem é contado. A remissão para "Casablanca" de Michael Curtiz (1942), evidente, é assim superada.
    Com fotografia de de Hans Fomm, música de  Stefan Will e montagem de Bettina Böhler, este mais um filme notável do cineasta mais importante do novo cinema novo alemão.

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