segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Ver e mostrar

   Há escritores que além dos livros por que são mais conhecidos, prosa ou poesia, mantêm uma atenção desperta para a arte, como se trabalhando em dois tempos, vários movimentos. Trazem-me aqui a esse respeito o português João Miguel Fernandes Jorge e o inglês Julian Barnes, figuras destacadas nas literaturas respectivas.
   Começando pelo segundo, que tem uma obra conhecida e distinguida maioritariamente traduzida em português, a partir da sua permanência prolongada em França ele, que já tinha explorado na sua escrita Gustave Flaubert, dedicou um livro à arte deste país a partir do século XIX: "Keeping an Eye Open" (Londres: Jonathan Kape, 2015).
    Trata-se de uma obra inteligente em que, com bom gosto e boa informação, o autor escalpeliza a arte dos séculos XIX e XX hoje patente nos museus franceses e mundiais como tempos de apogeu da pintura na transição do romantismo para o impressionismo e depois deste para o modernismo, num percurso de dois séculos.
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    Mas Julian Barnes não se limita a estudar cada artista obra a obra, pois imagina a situação vivida por aqueles que cada quadro representa ou a vida de cada pintor, para o que usa a sua escrita soberba, elegante e clara, que todos apreciamos, a partir de testemunhos de época, o que acaba por transformar este livro num híbrido de ensaio e ficção.
   Já o português trata em "Longe do Pintor da Linha Rubra" (Patavina, 2017) - que reúne textos seus posteriores a 2008, ano de "Processo em Arte" (Lisboa: Relógio d'Água), a sua anterior recolha de textos -, sobretudo da arte portuguesa antiga e contemporânea mas também da grande arte estrangeira, depois de em "Mirleos" (Lisboa: Relógio d'Água, 2015) em poesia se ter dedicado à arte do passado. 
    E ele tem um saber que lhe permite entrar na arte pictórica, escultórica ou outra em museus e exposições, que o leva muito para além do comum da crítica de arte a explorar espaços museais e o íntimo exterior de cada obra fornecendo-lhe o contexto artístico e histórico. De facto, ele sente e pensa aquilo que escreve de uma maneira pessoal a partir de cada peça, em exegese esclarecida de cada obra ou artista.  
    Na sua apreciação de cada obra estudada, J. M. F. J. continua a encantar-nos com o seu gosto cultivado e bem informado e com a sua escrita densa, uma escrita muito própria que provém da poesia mas se transmuta na prosa, o que faz toda a originalidade e profundidade do autor.  
   Têm em comum o inglês e o português olharem atentamente e cada um deles ver com a sua própria informação e o seu próprio conhecimento da arte que, francesa, portuguesa ou outra continua a ser arte e por esse motivo a merecer a nossa melhor atenção que precisa, porém, de ser esclarecida e iluminada.
                        Longe do Pintor da Linha Rubra           
    Ambos pensam aquilo que escrevem em função do significado objectivo de cada obra mas também a partir de uma subjectividade não inocente mas cultivada, que se rebate sobre a subjectividade de cada artista. Um e o outro pensam a arte que houve e que há com um saber e um brio especiais, que os leva a esclarecer-nos recriando cada obra e a criar aforismos próprios sobre a criação artística..
     Agora o escritor inglês trabalha aqui predominantemente numa área de história da arte enquanto o poeta português se dedica mais à filosofia da arte, aliás com inteira pertinência. Com projectos diferentes, João Miguel vai, contudo, mais longe em pensamento da arte do que Barnes na sua análise atenta sobretudo ao picante histórico da biografia de artistas e da circunstância quadros célebres.
    E noto que enquanto Julian Barnes está atento ao melhor da arte francesa e europeia de Oitocentos e Novecentos, João Miguel Fernandes Jorge volta-se também para alguns dos mais proeminentes artistas portugueses contemporâneos. Claro que o que este escreve "não tem rede" salvo os seus próprios escritos, incluindo poéticos, anteriores, enquanto aquele tem atrás de si um julgamento já formado e estabelecido pela história da arte.
    Vale a pena lê-los a um e ao outro, e o livro de Julian Barnes merecia ser traduzido para português. Quanto à edição do livro português ela é de uma nova editora, a Patavina, que aqui saúdo neste início pela qualidade desta edição e à qual desejo o melhor futuro.

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