segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O imprevisto

    Pascal Quignard é um conhecido escritor francês com uma obra dividida entre a literatura e a filosofia. São conhecidos em Portugal alguns dos seus livros de ficção e o primeiro dos (até agora) dez volumes de "Dernier royaume", "As Sombras Errantes" (Lisboa: Gótica, 2003), um ciclo de pendor reflexivo e filosófico, embora tenha sido "Tous les matins du monde", feito em cinema por Alain Corneau em 1991, que o tornou mais conhecido.
    Em 2014 publicou em França "Critique du jugement" (Paris: Galilée), um título kantiano, para, como ele escreve, depois de ter deixado de ter de julgar por razões profissionais nas diversas actividades que exerceu, nomeadamente no ensino e na edição, reflectir sobre esta questão tão debatida em diversas disciplinas, entre as quais a filosofia - entretanto abandonara todas as suas actividades, essas e outras, para se dedicar exclusivamente à escrita. Com base, portanto, na experiência e no distanciamento.
    Trata-se de mais um livro excelente de um escritor muito considerado  em França e que conheço razoavelmente em especial na área filosófica. Dividido em quatro partes - 1. Krisis, 2. Phthonos. 3. Creatio, 4. Publicatio -, parte da discussão da questão da verdade para proceder depois à crítica do julgamento a partir da sua experiência e com base na filosofia, antiga e moderna, e na Bíblia, com extensão ao pensamento oriental, muito na linha do que tem feito a filosofia contemporânea.  
    O percurso da verdade para o julgamento tem distintas marcas heideggerianas, o que não surpreende num livro com influências do filósofo de "Ser e Tempo", embora ele não seja directamente convocado pelo autor no seu discorrer contínuo. Centra-se no julgamento popular do espectador na violência do combate de arena na Roma Antiga e depois no processo de criação artística, nomeadamente literária. Socorre-se de Espinosa e Kant (a publicação das três críticas em coincidência com a Revolução Francesa), Schopenhauer e Nietzsche, Freud e Lacan. Nota coincidências (Lully, Vermeer e Espinosa nasceram no mesmo ano). Ocupa-se das outras artes, nomeadamente do cinema em que refere a dificuldade do sonho explícito e o preto e branco (do mudo) - págs. 218-220.
     Com o seu jeito habitual de escrever fragmento atrás de fragmento, Pascal Quignard tem aqui um pensamento inquieto que saltita entre o longo (raro), o médio e o curto fragmento, no que atinge uma profundidade e uma clareza notáveis com largo recurso directo a citações e a breve narração de episódios da história (Marcel Proust, Emily Brontë, W. A. Mozart, entre outros), às vezes da sua história pessoal (a queima do seu livro "La Nuit sexuelle" em 2007).
                      
      Esse pensamento integra, ao contrário do que é dito no início, a crítica dos que julgam na nossa sociedade como ele julgou, quebrando tabus de ordem jurídica, política, social, religiosa e mediática com grande pertinência e apoio, por vezes, sobretudo na última parte, com algum exagero, noutros casos com algum pessimismo, justificado no contexto criado.
      O longo percurso pela história enriquece sobremaneira a argumentação, com algumas citações preciosas, tanto mais fecundas quanto mais raras e pouco conhecidas. A extensa listagem de palavras, susbstantivos e adjectivos, a respeito de certos assuntos aumenta a clareza e exemplifica exaustivamente os conceitos.
      Eis um belo livro filosófico original e criador - que acrescenta conhecimento -, em que de forma pertinente o imprevisto assume lugar de relevo. A preferência pela sombra, pelo escuro, sempre justificada, torna-o mais interessante num avanço imparável que, sem ignorar Deus, recusa o vazio. E o princípio repetido é o "não julgues" de Cristo a João.
      A perspectiva crítica é de desafio e curiosidade, o resultado forte e demolidor. Teria todo o interesse a tradução portuguesa pelo menos dos escritos filosóficos de Pascal Quignard, que já passou por Pedro Eiras em "Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos" (Deriva Editores, 2010).
     Destaco um excerto de um fragmento:
     "O fim da montanha é uma tensão como o fim do abismo é a vertigem. O fim da arte é a maior tensão possível. É o princípio da arte barroca. Tensão do estilo tendido entre os dois pólos do tempo desejante.
      Esta emoção gira sobre si mesma; vai cair; é uma vertigem.
      Deus não compreende aquilo que ele é." 
      (pág. 193, a tradução é minha).

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