sábado, 28 de janeiro de 2017

A Série B

    Foi uma expressão cinematográfica tida no seu tempo como menor, em que trabalharam grandes artífices do cinema e foram feitos grandes filmes que de menores nada tinham.
    Iniciada com a criação da B companies como a Republic e a Monogram, começou por produzir filmes que passavam como segundos em sessões de que os primeiros eram da Série A, filmes de bom orçamento e com stars produzidos pelas majors e minors criadas em modelo definitivo no final dos anos 20 do Século XX, o que significa no final do cinema mudo - não vou contar aqui a história toda das B companies porque é longa e complicada.
    Ao especializarem-se em géneros populares, as companhias B apostavam no baixo orçamento, na utilização do mesmo espaço cenográfico para diferentes filmes, na manutenção da mesma equipa técnica e artística para vários filmes, o que significa que tinham uma ambição artística menor, compatível com o seu comparativamente menor poder económico.
   Aí se estrearam no cinema actores, técnicos e realizadores que ou nunca ascenderam às produções A ou então o fizeram depois de aí terem adquirido capacidades e experiência. O que aqui me vai interessar é o caso daqueles que ficaram por mais tempo, quando não sempre na Série B e dela fizeram um modelo maior do cinema americano, marcado pela escassez de meios e pelo génio dos que nela trabalharam.
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     Visto da perspectiva dos realizadores, houve grandes mestres da Série B entre os anos 30 e 60 do Século XX, aos quais se ficaram a dever grandes filmes de género e estilos pessoais de trabalho. Dou alguns exemplos. Allan Dwan, Edgar G. Ulmer, Andre De Toth, Rudolph Maté (antes conhecido director de fotografia) e Gerd Oswald em diferentes géneros, Jacques Tourneur a partir do filme de terror, Donald Siegel, Samuel Fuller, Joseph H. Lewis, Robert Siodmak e Anthony Mann (este nos anos 40) a partir do filme negro, Kurt Neumann, Christian Nyby, George Pal, Byron Haskin, Jack Arnold na ficção científica, Budd Boetticher a partir do western. Mas a Republic produziu também três filmes de John Ford.
    Claro que houve muitos outros mas estes contam-se entre aqueles cujos nomes ficaram e permanecem a assinalar estilos pessoais numa época e num modelo que a eles não eram propícios. Mas com a ideia de que a Série B americana é um vasto campo de cineastas e filmes que permanece por explorar pelos próprios historiadores americanos do cinema: Phil Karlson, Gordon Douglas, Ted Post, Richard Fleischer já no pós-guerra.
     Tratando-se de filmes de baixo orçamento, as futuras vedetas por lá passavam no início ou a ela regressavam por força de contratos, embora tivessem existido técnicos e actores que nela, como os produtores e realizadores, permaneceram toda a vida. E nos anos 30 e 40, a sua época áurea, o preto e branco era de rigor e ficava especialmente bem no filme negro ao ponto de, influência expressionista incluída, dele se ter tornado indissociável. Isto embora deva deixar claro que muitos filmes da Série B eram desde o início realmente muito maus, ao ponto de um cineasta como Gordon Douglas, que trabalhava no cinema desde os anos 30, só se ter nela destacado a partir dos anos 50 - na década de 60 chegou a realizar três filmes policiais com Frank Sinatra.
    O sentido desta minha recordação, que é também uma homenagem, é despertar a vossa atenção para os primeiros e primariamente esquecidos de Hollywood que, contudo, contribuíram decisivamente para a afirmação total desta em todos os domínios da produção cinematográfica numa época em que a produção média foi decisiva. Em filmes aparentemente feitos para os menos instruídos foram possíveis coisas a nível narrativo e de realização que não eram tratadas da mesma maneira nos "responsáveis" filmes de maior orçamento.
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    Num tempo em que Hollywood declinava já, no final dos anos 50 do Século XX, pude começar a acompanhá-los numa altura em que estes filmes passavam geralmente em "salas populares" ou "cinemas de bairro", de frequência menos burguesa e de lugares mais incómodos. E aí pude começar a ter o quadro deste "continente desconhecido" extremamente valioso do cinema desse tempo.  
    O princípio era simples: despachar uma história e um filme no menor tempo possível com a maior economia de meios. Compreende-se que com estas condições o trabalho fosse mais rude e menos acabado mas era também mais límpido, directo e despojado do que não fosse indispensável. Não havia tempo a perder, não havia dinheiro para gastar, e isso era favorável à adopção de estilos elípticos e a abreviações concentradas.
    Quando estavam em moda as superproduções com que as majors tentavam contrariar a crise suscitada pelo aparecimentos da televisão, eu quase não dava por essa crise ao continuar a ver os filmes da Série B. E nunca foram feitos filmes de terror como os de Jacques Tourneur, que também praticou com brio o western, nem filmes negros como os de Siegel, Fuller, Joseph H. Lewis (salvo "They Live By Night", de Nicholas Ray), nem westerns como os de Budd Boetticher, o primeiro dos quais mereceu um estudo de referência de André Bazin.
   Além do mais, eram filmes mais curtos, que só raramente chegavam a hora e meia, o que os tornavam pedaços de cinema muito apetecíveis. E devo notar que as séries televisivas da mesma época deviam muito à influência do cinema, nomeadamente da Série B, por exemplo "Naked City" que passou em Portugal, e ainda não era utilizado o vídeo na sua produção.
                                             
     Nos anos 50 tinha surgido a American International Pictures de Roger Corman e com ela, em filmes realizados por outros ou por ele próprio em regra já a cores a Série B teve seu último fôlego tanto mais relevante quanto em filmes seus se iniciou gente tão importante no futuro como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese. A obra-prima de Corman como realizador terá sido, além das adaptações de contos de Edgar Allan Poe e mais do que elas, "Massacre em Chicago"/"The St. Valentine's Day Massacre" (1967).
    É muito por causa da enorme qualidade cinematográfica da Série B e da curta duração da maioria dos seus filmes que eu me torço todo quando me aparecem filmes dos actuais grandes nomes de Hollywood com cerca de três horas, quando se percebe que tudo aquilo poderia ser feito com muito maior economia de meios. E fico com a ideia de que são os próprios americanos que não querem lembrar a sua Série B.
    Contaminados por ela, surgiram nos anos 50 filmes históricos, ditos "peplum" na linha do cinema mudo, e filmes de terror, ditos "giallo" italianos, e foi a partir desse modelo que veio a ser elaborado a partir da década seguinte o "spaghetti western" que Sergio Leone fez dilatar.
    Depois disso, foi sobretudo no filme de terror que a Série B ou o seu espírito se manteve, em cineastas como George A. Romero, John Carpenter, Joe Dante e Wes Craven. Um ou outro caso fora desse género não bastam para a impôr em termos contemporâneos, em que um ou outro cineasta nela, Série B, se moveu. Salvo o caso do cinema novo de Hong-Kong que, entre o policial e o filme de gangsters se moveu em termos de Série B e tem a sua principal figura actual em Johnnie To. E recordo que os filmes de artes marciais participavam ainda antes disso do mesmo modelo.
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    Os meus leitores que são cultos e modernos dir-me-ão que os tempos de hoje, com revolução digital e tudo, são melhores que os da velha Série B, mas lembrem-se que só poderão dizê-lo com conhecimento de causa se conhecerem esses pequenos filmes sem importância, que eu gostaria de pessoalmente apresentar a quem estivesse interessado, o que até agora nunca pude fazer. 
    Sobre o assunto não foi publicado nada desde "Photogénie de la série B", de Charles Tesson (Paris: Cahiers du Cinéma, 1997), sobretudo valioso pela iconografia que inclui. E recordo aqui o Manuel Cintra Ferreira (1942-2010), crítico de cinema sagaz e grande conhecedor do cinema americano e da Série B que durante anos programou sistematicamente na Cinemateca Portuguesa - lembro-me da última vez que o vi à saída da Cinemateca, com os livros debaixo do braço e a pôr o seu boné na cabeça, e espero que lhe seja prestada a homenagem que merece com a publicação dos seus textos sapientes escritos para aquela casa.    

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