Na morte do escritor português Fernando Campos, sinto-me autorizado a escrever sobre a grande literatura, começando justamente pela referência a autores mortos recentemente, no final do século XX ou já no século XXI. Sem querer com isto discriminar os vivos, será o ponto de partida para uma série de entradas.
A
grande literatura não se distingue por ser especialmente satisfatória,
no sentido de gratificante, nem por ser de leitura fácil, que também
pode ser, nem pelo número e dimensão das dintinções atribuídas, mas por
saber problematizar questões grandes ou pequenas e por problematizar-se a
si própria. A tendência de distinguir grandes e pequenas questões, que
vem da grande literatura do século XIX, tal como a distinção entre livros com muitas e com poucas páginas, não é hoje em dia sustentável, o que é bem notório no caso do conto.
A grande literatura define-se no cerzir da escrita, o estilo, ou na composição, orgânica ou fragmentária, mas também na exploração de grandes questões, critério menos seguro porque às vezes, com excesso de ambição espalha-se, e na criação de personagens, de situações e de ideias. Ela não ignora a literatura do passado ou sua contemporânea, os grandes textos literários de referência, antes com eles dialoga, às vezes em termos intertextuais e remetendo para um metatexto.
A grande literatura não tem a preocupação da edificação moral, pode em vez dela ter a de nos inquietar na nossa boa consciência e nos atrair para o seu contrário - Georges Bataille escreveu sobre isso num livro actualmente disponível em português. Não tem nada a ver com o conceito de best-seller que por sua vez nada tem a ver com ela, e pode viver na quase ignorância pública. Mas há também um acolhimento público e um reconhecimento crítico, que passam por distinções atribuídas e não devem ser postos de lado.
A grande literatura dirige-se a todos mas pode acontecer que nem todos sejam sensíveis a toda ela por uma ou outra razão, cultural ou de literacia por exemplo. E há restrições ao seu acesso que podem ter origem no idioma original e na sua disponibilidade noutros idiomas, questão relativamente à qual não estamos mal servidos em português na área da ficção.
A grande literatura não nos conforma no nosso pensar e sentir, não é necessariamente de consolação e não tem de ser forçosamente de leitura difícil, embora também o possa ser. De resto morrem escritores de grande nível em todas as idades, para alguns dos casos mais recentes me cumpre neste momento chamar a vossa atenção, indicando para cada um a sua editora portuguesa preferencial.
Há os casos evidentes de escândalo da morte precoce que interrompe uma obra brilhante, como o chileno Roberto Bolaño (Quetzal) ou o austríaco W. G. Sebald (Teorema, Quetzal), ambos com livros saídos recentemente em português, como há caso de veteranos, como Fernando Campos (DIFEL, Alfaguara) ou Antonio Tabucci (Dom Quixote), este com o seu primeiro livro agora editado entre nós, o uruguaio Mario Benedetti (Cavalo de Ferro) ou o argentino Juan José Saer (Caminho).
O que particulariza a grande literatura é que ela é universal, nasce em qualquer país ou canto do globo sobre qualquer questão que interessa o escritor e o leva a transcender o caso particular para imprimir carácter mais geral, susceptível de envolver todos os leitores, ao que escreve.
Não podemos sequer dizer, como já tenho ouvido, que hoje em dia não existe literatura ao nível da do passado porque pura e simplesmente tal não é verdade, nem podemos restringir a grande literatura a parâmetros formais ou de género. Mas também não devemos forçar-nos a ler escritores tidos como grandes se eles não nos dizem nada de especial, nem renunciar a ler escritores considerados menores que nos agradam e que às vezes não o são tanto como isso (menores).
Há grandes escritores que tiveram vidas atribuladas, como o húngaro Sándor Márai (Dom Quixote) e o americano David Foster Wallace (Quetzal), e grandes escritores que cultivaram o modelo de short sories como Raymond Carver (Teorema, Quetzal) ou Alice Munro (Relógio D'Água), ou que praticaram a prosa e a poesia, como Vasco Graça Moura (Quetzal), a ficção e o ensaio como Umberto Eco (DIFEL, Dom Quixote), e em nenhuma das áreas podem ser ignorados.
Mas há também os grandes poetas, xamãnicos e iluminados, de que me limito a mencionar aqui Alexandre O'Neill, de quem acaba de sair uma nova "poesia completa" com muitos dispersos, Al Berto, Luís Miguel Nava, Daniel Faria (Assírio & Alvim), e Herberto Helder (Assírio & Alvim, Porto Editora). Tal como existiram a prosa poética de Maria Gabriela Llansol (Relógio D'Água, Assírio & Alvim) e perduram o mexicano Carlos Fuentes (Dom Quixote) e o português José Saramago (Caminho, Porto Editora).
Começar isto pelos mortos é uma questão de princípio, de justiça, porque eles tendem ou a ser esquecidos ou então sobrevalorizados.