domingo, 29 de outubro de 2017

Só quando chove

   "Mrs. Fang", o último documentário de Wang Bing (2017), foi apresentado no Doclisboa 2017 e foi o único filme deste importante festival internacional de cinema de Lisboa que consegui ver.
  Trata-se de mais um excelente trabalho deste extraordinário documentarista chinês, desta feita sobre uma idosa com Alzheimer diagnosticado oito anos antes, em estado terminal, em sua casa e acompanhada pelos seus familiares depois de no hospital a terem mandado para o domicílio.
   Pouco sabemos sobre ela além do seu estado presente, salvo o que os filhos, a nora e o genro dizem sobre o seu passado. Porém, o recorrente regresso a ela impõe-na como figura central, silenciosa e dominante, e esse é um dos méritos maiores deste filme. Mas o cineasta também sai para o exterior, acompanhando as personageens masculinas que conversam e vão à pesca.
                     
   Num filme que cumpre, como de costume no cineasta, as regras do plano fixo e da profundidade de campo em interiores, dois momentos maiores são o passeio dos pescadores seguidos em travelling para a frente durante um plano muito longo e o grande-plano da Senhora Fang, deitada como está todo o tempo salvo nas imagens iniciais, anteriores, também ele muito longo. 
   Além disso, os ruídos de fora de campo são uma constante, da chuva a cair ao latido dos cães, mas a sua intensidade desce até à indistinção durante o longo grande-plano da protagonista, como se tentando replicar o ponto de escuta dela. No final, três meses depois da morte da Senhora Fang, na sua canoa um pescador diminui de tamanho ao afastar-se de nós, acabando como um simples traço, uma linha no fundo do plano.
  Com a grande seriedade e o grande saber que o caracterizam sempre, Wang Bing prossegue a sua obra com um filme que nem sequer é muito longo, em que continua a demonstrar que o documentário é o mais sério dos "géneros cinematográficos" (sobre o cineasta ver "No caos", de 14 de Junho de 2017).

Crónica finlandesa


  O mais recente filme do finlandês Aki Kaurismäki, "O Outro Lado da Esperança"/"Torvan tuolla puolen" (2017), pode considerar-se inspirado na curta-metragem "O Taberneiro" que fez para "Centro Histórico", encomenda de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Com um outro desenvolvimento e um outro enquadramento narrativo, evidentemente. Mas liga-se também, e até principalmente, como segundo tomo de uma "trilogia dos portos", com "Le Havre" (2012), o filme francês do cineasta, pela sua temática: os refugiados.
    Após uma excelente abertura sem palavras, em que eles se cruzam pela primeira vez, tudo se passa entre um refugiado sírio, Khaled/Sherwan Haji, e o abastado dono de um restaurante, Wikström/Sakari Kuosmanen, que depois de largar o negócio e a mulher faz a sua pequena fortuna ao póquer numa das mais curiosas cenas do filme. O refugiado, que tem um amigo iraquiano, na Finlândia há mais tempo do que ele, tem as maiores dificuldades em ser aceite num país em que as autoridades consideram que nada de especial se passa no seu, contra o que dizem os noticiários televisivos mostrados logo a seguir. Mas tudo se torna fácil para ele a partir do momento em que consegue obter documentos de identificação falsos da qualidde dos verdadeiros numa cena bem humorada.
    O encontro entre os dois dá-se ao murro mas depois tudo corre bem, com Khaled como cozinheiro do restaurante de Wikström, ao lado dos outros empregados e de um cão. Mas ele tem uma irmã que ficou para trás numa fronteira e os acontecimentos engrenam em função dela na parte final.
                     
    Aki Kaurismäki tem uma maneira leal e franca de filmar, muitas vezes frontal, que deixa dito em cada plano de cada cena o que tem de ser dito para passar ao seguinte com plena inteligibilidade. Usa como de costume a elipse mas de maneira a que tudo seja perceptível. Impiedoso com o racismo dos finlandeses numa cena bem resolvida com a reacção dos mendigos, tenta captar deles também um lado idealista, utópico sem dúvida, ao nível de cumplicidade e proximidade.
     As cenas em que Khaled conta no Serviço de Estrangeiros a sua caminhada através da Ásia Menor e da Europa até à Finlândia, de que nada é mostrado, tal como a sua resposta à pergunta sobre as suas convicções religiosas estão excelente, rigorosamente filmadas, com actores muito bons como em todo o filme, atentos aos pormenores faciais e expressivos.
     Disse o cineasta em entrevista ao Ipsilon do Público que está farto de filmar, que este terá sido o seu último filme, e de facto quatro longas-metragens e seis curtas em 15 anos não é muito. Num filme que rima muito bem com "Le Havre" e dedicado à memória de Peter von Bagh (1943-2014), a despedida, que não se deseja, pode fazer sentido, quando ele leva já mais de 30 anos actividade cinematográfica. Se assim for vou sentir a sua falta, eu que o conheço desde antes do Festival Nórdico organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian em Julho de 1992, que mais extensamente o revelou entre nós.
     De facto, Aki Kaurismäki é um dos melhores cineastas do nosso tempo que fez já em filme uma muito curiosa "crónica finlandesa" em filmes de grande originalidade e apuro cinematográfico a que a música não é alheia, como de novo volta a acontecer neste "O Outro lado da Esperança", em que ela é mais uma vez recorrente, tocada por instrumentistas em plena actuação.

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O melhor a cores

     Agora que para Novembro próximo a Cinemateca Portuguesa tem programado mais um ciclo dedicado à Série B, "Hollywood B", que vivamente vos aconselho, aconteceu-me na navegação pela internet encontrar finalmente um filme que em vão procurava há muito: "Massacre de Chicago"/"The St. Valentine's Day Massacre", de Roger Corman (1967).
     Queria rever este filme porque dele guardava uma recordação muito boa de quando estreou em Portugal. E é de facto excelente, jornalístico com a sua voice over narrativa que apresenta os protagonistas e introduz as situações. Seco e duro, brutal e elíptico, com a grande economia de meios que caracterizou a Série B.
    Não vi tudo, mas do que conheço de filmes de gangsters é o melhor a seguir ao "Scarface" de Howard Hawks (1932) - o melhor a cores -, à frente do que "grandes artistas", que então começavam nas produções de Corman, vieram a fazer a partir da década seguinte: Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma - mais tarde Quentin Tarantino, Michael Mann.
                      
         É o prazer do cinema de um grande cineasta, que criou nos anos 50 a American International Picture e a Allied Artists, em 1970 a New World Pictures, e por isso mais conhecido como produtor ou então pelos seus filmes que adaptavam contos de Edgar Allan Poe no início dos anos 60. Ele aparece no final de "O Estado das Coisa"/"Der Stand der Dinge", de Wim Wenders (1982), um filme parcialmente rodado em Portugal, na figura do produtor em Hollywood.
     Magnífico exercício de estilo sobre argumento de Howard Browne, num ritmo implacável em que no final as armas se ouvem muito mais do que se vêem, com Jason Robards como Al Capone e capazes actores secundários noutros papéis. Nem os melhores nomes da Série B aí chegaram. Nem o próprio Corman em "Machine-Gun Kelly" (1958) que, a preto e branco, embora mais fetichista é já muito bom, podendo mesmo formar com este "Massacre de Chicago" um belo díptico na sua obra.
     De há muito reconhecido internacionalmente, hoje com 91 anos e ainda em actividade como produtor, Roger Corman já teve uma retrospectiva completa em Portugal, de Junho a Setembro de 2007 na Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, com direito ao catálogo “O Anjo Selvagem de Hollywood”, com organização literária de Manuel Cintra Ferreira e coordenação de Luís Miguel Oliveira.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Far, far and away

   Desde o início da exploração espacial por humanos que mative, num caderno Amber de folhas amovíveis, o registo de cada viagem, do nome e fotografia de cada astronauta, das respectivas coordenadas temporias e técnicas, pelo menos tanto quanto elas eram então divulgadas em Portugal. Mas também comprava revistas americanas e francesas para ter mais pormenores e mais e melhores imagens. Tudo isso ainda guardo. Este, pois, o meu segundo vício secreto desde a juventude.
    Li nessa altura o que foi publicado entre nós sobre a actividade de Wernher von Braun durante a II Guerra Mundial, pelo comecei a considerar-me um leigo iniciado no assunto. Interessava-me sobretudo a proeza humana, o homem no espaço, o que continuou a motivar-me até depois do primeiro desembarque humano na Lua, que acompanhei em directo.
   Iniciado quando da competição americano-soviético, esse caderno acabou com a última viagem à Lua por absoluta falta de tempo - sempre tive, desde o início, muito, excessivo trabalho. Meteu-se depois pelo meio a astrofísica, sobretude com Stephen Hawking, que li e me levou a transferir o meu interesse para a questão mais larga do espaço e do tempo cósmico.
                       
        Claro que continuo a acompanhar pelos meios de comunicação a exploração humana do espaço, ainda bem próximo da Terra e agora centrada na prova da resistência humana, mas sem detalhes técnicos. O meu interesse está agora voltado sobretudo para as descobertas e os registos da astrofísica e para a cosmologia, o que, devo confessar, é acompanhado por um interesse pela paleo-antropologia.
           Não sei muito bem o que fazer de tudo isto, é o conhecimento por si mesmo que me chama e motiva para além, muito para além do imediatismo do quotidiano em que se insere, como nova fronteira da humanidade - o conhecimento independentemente do seu objecto, mas especialmente o conhecimento científico e filosófico, que está por trás do meu interesse pelas artes, pela literatura, pelo cinema, pela filosofia, esses meus "vícios conhecidos".
      E é bom deixar aqui registado que o que me interessa mais é o próprio conhecimento, pois outros se interessarão pela astronáutica e pela astrofísica por motivos diferentes. No cinema como na literatura a ficção-científica nem sequer é o meu género favorito - não é para mim de modo nenhum prioritário ver o novo "Blade Runner". Agora vontade de saber - de saber, note-se, não de poder - isso move-me todos os dias perante os objectos ou eventos mais comezinhos.
       Para além disso há a música no seu simples acontecer sonoro, acústico e temporal. Por isso agora estaciono habitualmente no Mezzo e no Arte concert, que aconselho, contra todas as catástrofes e trafulhices deste mundo e do outro. Na música como no conhecimento encontro a beleza que me interessa.

domingo, 22 de outubro de 2017

A ausência

   "Os Fantasmas de Ismael"/"Les fantômes d'Ismaël" de Arnaud Desplechin (2017) é mais um filme muito bom deste grande cineasta francês. Com uma narrativa conhecida, a partir de argumento de Lea Mysius, Julie Peyr e do realizador, a primeira mulher do protagonista, Ismael Vuillard/Mathieu Amalric, que desaparecera 21 anos antes, Carlotta Bloom/Marion Cotillard, regressa depois de ele ter voltado a casar com Sylvia/Charlotte Gainsbourg, astrónoma. 
   Mas as coisas não se ficam por aí, pois ele tem um irmão, Ivan Dedalus/Louis Garrel, diplomata no exterior e cuja memória o atormenta. Realizador de cinema, Ismael transfere para o filme que está a fazer a personagem do seu irmão, enquanto o pai de Carlotta, Henri Bloom/László Szabo, cineasta como ele, acaba por ter um colapso cardíaco ao saber do regresso da filha.
    E há ainda uma terceira mulher, Arielle-Faunia/Alba Rohrwacher num papel duplo junto de cada um dos dois irmãos, mais um fantasma do protagonista mas que vem desempatar ao empatar mais.
                      
  Variado, dispersivo e com grandes actores, este é um filme que cativa pelas melhores razões, denso e complexificado pelo carácter judeu das suas personagens principais. E é do discurso de Henri Bloom quando homenageado em Telavive durante um festival de cinema que sai a temática da ausência, num filme em que o outro realizador, o próprio Ismael, se ausenta das filmagens.
  Com alusões a Hitchcock em Carlotta e a James Joyce com os nomes de Bloom e Dedalus, este mais um grande filme de um excelente realizador francês que não facilita a vida ao espectador ignorante, que espera que tudo lhe seja explicado claramente. É, pois, preciso apanhar todas as pistas que, como pontas soltas, são deixadas ao longo do filme para o compreender plenamente.
   Vejam "Os Fantasmas de Ismael", que tem excelente fotografia de Irine Lubtchansky, com as referências todas que ele convoca, também sobre o próprio cinema, e compreendam-no a partir da sua complexidade exigente. A este nível o cinema interessa sempre mais.

A horda

   "Fragmentado"/"Split", a mais recente longa-metragem de M. Night-Shyamalan (2016), depois de "A Visita"/"The Visit" (2015) devolve-nos o cineasta em melhor estado e condição que os imediatamente precedentes filmes dele tinham mostrado.
   Três raparigas são raptadas por Dennis/James McAvoy, que tem 23 personalidades e identidades diferentes, com as quais elas têm de lidar para se salvarem antes da criação da 24ª personalidade, o que elas ignoram mas a Drª. Fletcher/Betty Buckley, a psiquiatra que segue o doente e é também sequestrada, sabe.
   Trabalhando de novo sobre argumento seu, o cineasta constrói um apelativo filme de terror, um thriller psicológico em que, depois de fracassadas as tentativas de evasão, só Casey/Anya Taylor-Joy, das três raptadas a que conserva memória da infância, consegue sobreviver, depois de ter disparado contra o monstro proliferante, que julga que lhe retiram a luz e que só sofrendo se pode afirmar.
                      split-images-movie-2016
     Com um trabalho magistral de James McAvoy, "Fragmentado" de M. Night Shyamalan é um bom filme que vem garantir que o cineasta não se perdeu nas grandes produções ("O Último Airbender"/"The Last Airbender", 2010; "Depois da Terra"/"After Earth", 2013) depois do seu início promissor em "O Sexto Sentido"/"The Sixth Sense" (1999).
    O caso clínico de Kevin Wendell Crumb está bem tratado como "distúrbio dissociativo da personalidade" e o terror que ele inspira é bem explorado, com actrizes muito seguras e a elipse das mortes salvo no caso da psiquiatra. No seu final, com o aparecimento de Bruce Willis, o filme remete para "O Protegido"/"Unbreakable" (2000) do próprio Shyamalan, em que ele era David Dunn.
      Que o lugar do cativeiro seja por baixo de um jardim zoológico faz sentido. A fotografia de Mike Gioulakis é especialmente boa no tratamento da luz e da sombra. Tudo volta, pois, ao melhor nível na obra do cineasta, que se conta entre os mais originais e curiosos do cinema americano contemporâneo.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Centenária

   A grande actriz francesa Danielle Darrieux (1917-2017) deixou-nos com cem anos de vida preenchidos por uma grande dedicação ao trabalho de actriz de cinema, em que foi exímia e atingiu a excelência.
   Trabalhou com os grandes nomes do cinema europeu e americano, entre os quais Billy Wilder, Max Ophüls, Joseph L. Mankiewicz, Jacques Demy, Claude Chabrol, e participou já este século em "8 Mulheres"/"8 Femmes" de François Ozon (2002), em que contracenou com grandes actrizes francesas mais novas. Trabalhou também para a televisão. 
                     https://i.pinimg.com/originals/54/f5/7b/54f57b4bebb8886b1e4b032679a434d2.jpg
    De grande sensibilidade e inteligência como actriz, o seu nome fica ligado a alguns dos melhores momentos do cinema do seu tempo. De uma grande beleza e uma grande elegância, a sua figura permanece nos filmes que interpretou para deleite de todos nós. 
     Terá atingido o seu melhor nos filmes que fez com Max Ophüls, "La ronde" (1950), "Le plaisir" (1952) e "Madame de..." (1953), que a celebrizaram. Mas emprestou a sua arte e o seu saber a um sem número de filmes marcantes, mesmo da nouvelle vague francesa com Chabrol ("Landru", 1963), Demy ("Les demoiselles de Rochefort", 1967, e "Une chambre en ville", 1982) e Téchiné ("Le lieu du crime", 1986), que criaram a sua lenda, o seu mito como mulher e como actriz, que permanece.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Convencional

   O filme "Vedações"/"Fences" de Denzel Washinton (2016) põe em cinema a peça teatral homónima da Broadway, da autoria de August Wilson, também responsável pelo argumento.
   Não tem nada de verdadeiramente original ou característico, passa-se com uma família negra como poderia passar-se com uma família branca. Tem a seu favor decorrer quase todo o tempo na residência de Troy e Rose Maxson, Denzel Washinton e Viola Davis, mas isso fica a dever-se à sua origem teatral. Manter a teatralidade não é, neste caso, uma qualidade. 
                     https://theyoungempire.files.wordpress.com/2017/02/fences-main.jpg
   Há que ressalvar a perspectiva crítica, que é sobre negros como podia ser sobre brancos. Mas estava já tudo na peça teatral de origem, um melodrama tradicional à maneira americana, com todos os clichés, do pai que repete com o filho o que recebeu do seu pai, do marido infiel, das mortes de conveniência.
    A meu ver pouco se ganha com este filme para além de trazer para o cinema um trabalho teatral, assim retirado do seu reduto. Há a conversa de Troy com a morte, o irmão dele, Gabe/Mykelti Williamson, a interpretação de Viola Davis e o final edificante, o que, se é suficiente para fazer um filme regular, é insuficiente para fazer um grande filme. 
    Em suma, peça para actores, filme de actores, sem grandes ideias de realização, que não leva a concentração espacial até ao fim e se queda pelo naturalismo imediato.

domingo, 15 de outubro de 2017

Duas vezes dois irmãos

    "Good Time" é a segunda longa-metragem de ficção dos irmãos Benny e Josh Safdie (2017), que têm também no seu activo dois documentários longos e algumas curtas-metragens de ficção e documentário.
    Connie Nikas/Robert Pattinson assalta um banco com o seu irmão Nick/Bennie Safdie, que sofre de atraso mental. Transferido este para a prisãol, trata-se para Connie de o fazer sair. Só que em vez de Nick liberta outro, Ray/Buddy Durees, em liberdade condicional e preso, com ligações ao meio da droga.
    Com argumento de Ronald Bronstein e Josh Safdie, uma preparação que envolveu personagens reais e filmado em New York em cenários reais, "Good Time" torna-se surpeendente sobretudo porque os cineastas filmam sofregamente em grande proximidade com os rostos das personagens em espaços nocturnos escassamente iluminados, do que resulta um filme muito elaborado em larga medida dependente dos actores.
                      http://redcarpetrefs.com/wp-content/uploads/2017/08/download.png
        E a proximidade é tal que nem sequer deixa espaço para o humor que não seja negro, o que torna o filme de difícil acompanhamento embora de méritos inegáveis. É de realçar o feito de se passar na sua maior parte numa mesma noite. Destaque para a fotografia de Sean Price Williams, para a música de Oneohtrix Point Never e para a montagem dos dois argumentistas.
       Que o filme parta das sessões de terapia de Nick e com elas acabe parece mostrar que as personagens não vivem longe de um universo concentracionário, sem saída, e precisam todas de tratamento. Por essas sessões passa o pouco de normalidade deste filme, embora haja também o envolvimento da mãe dos dois irmãos.
       Connie e Ray ainda tentam um golpe de droga, mas o caminho deles é de perdição, como é de regra no filme negro, pobres diabos entregues a si próprios numa cidade imensa que os ignora, só dá por eles quando constituem problema. E aí o contraste com a instituição torna-se mais claro.
      Ao mostrar como as coisas podem acontecer e acontecem entre gente miúda, peixe miúdo, este é um filme sem nada de perverso e está muito bem feito, sem excesso de melodrama, duro e seco. E atenção aos irmãos Safdie, pois neste filme rodado em película o cinema americano renasce.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

O mais difícil dos métiers

  Jean Rochefort (1930-2017) foi um grande actor francês, intérprete de personagens difíceis e ingratos sempre com uma grande sobriedade, que ia de para com uma grande expressividade na sua capacidade superior de comediante.
   Em si, ele reuniu as grandes tradições do cinema francês, do mais popular ao mais exigente. Foi o rosto e a figura do francês típico no cinema, embora tenha trabalhado todo o tipo de personagens e todo o género de filmes, também para a televisão.
                      https://azertag.az/files/galleryphoto/2017/3/1000x669/15075512795968752900_1000x669.jpg
   Trabalhou com Luis Buñuel, Betrand Tavernier, Edouard Molinaro, Claude Chabrol, Alain Cavalier, Patrice Leconte, entre muitos outros, e atingiu a excelência no mais difícil métier do mundo: o de actor. Contracenou com os grandes actores e actrizes do seu tempo, teve uma carreira internacional e foi um exemplo de qualidade e dignidade no seu trabalho profissional. No início deste século chegou a ser Dom Quixote num filme inacabado de Terry Gilliam. 
   Curvo-me neste momento perante a sua memória.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

The next big thing

    Um dos meus "vícios secretos" desde muito novo é as corridas de automóveis. Não quaisquer umas mas a Fórmula 1. Agora, que não tenho tempo para ver as provas em directo na televisão, vou pelo menos ver o resultado de cada uma das corridas.
     Vi assim, atavés da televisão, correrem os grandes campeões desta modalidade, entre os quais Jim Clark, Jackie Stewart, Niki Lauda, Alain Prost, Emerson Fittipaldi, Ayrton Senna, Michael Schumacher. Vi e apreciei e aprendi.
                     http://e2.365dm.com/17/10/16-9/20/skysports-lewis-hamilton-mercedes-f1_4123743.jpg?20171009094748
       Neste momento, em que Lewis Hamilton se desenha como o novo campeoníssimo indiscutível, estou muito satisfeito por ainda o ter visto correr - em breves resumos da BBC. Trata-se de um homem desembaraçado e com bom aspecto, com uma condução inteligente e fina, que tem neste momento a seu favor a destreza e a experiência.
      Desejo, pois, que ele bata todos os records que ainda lhe faltam e se venha a tornar a nova grande referência do automobilismo mundial, contando sempre com rivais à sua altura e com o cumprimento das regras por todos para provar, também ele, que aqui só os muito melhores vencem. (Contrariamente ao que se possa pensar, os verdadeiros fãs do automobilismo de competição são condutores seguros, na cidade e na estrada.)
      Nunca fui de futebóis ou motas, mas de automóveis ao mais alto nível de competição, sem favoritismo por marcas porque um bom condutor de competição conduz sempre bem, qualquer que seja o carro - embora, efectivamente, conduza melhor os melhores carros. Sobre outro "vício secreto" antigo escreverei aqui um destes dias.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Anne Wiazemsky (1947/2017)

    Nascida em Berlim, neta de François Mauriac, começou no cinema com Robert Bresson, Marie em "Peregrinação Exemplar"/"Au hasard Balthazar" (1966). Passou para os braços de Jean-Luc Godard, com quem trabalhou e foi casada durante 12 anos, na sua fase mais politizada, com o Maio de 68, mas fez também dois filmes com Pier Paolo Pasolini: "Teorema" (1968) e "Pocilga"/"Porcile" (1969). 
                                 http://movieposters.2038.net/p/Au-Hasard-Balthazar.jpg                 
     Trabalhou mais tarde com Philippe Garrel em "L'enfant secret" (1979) e "Elle a passé tant d'heures sous les sunlights..." (1985), com André Téchiné em "Encontro"/"Rendez-vous" (1985), e continuou como actriz até 1988, num total de mais de 20 anos de actividade.
      Embora tenha interpretado muitos outros filmes, não foi uma celebridade do cinema fora desses filmes sérios e de culto em que trabalhou, e acabou por se dedicar à escrita literária com sucesso e realizar documentários para a televisão. Tem um lugar muito especial na história do cinema e na memória de todos os que viram os filmes em que participou.

O terceiro homem

   Quando se fala no cinema novo português dos anos 60 do século XX costumam referir-se Fernando Lopes e Paulo Rocha, até Manoel de Oliveira, e esquece-se o António de Macedo (1931-2017), então o terceiro grande realizador das Produções Cunha Telles. Autor de "Domingo à Tarde", baseado em Fernando Namora (1965), "Nojo aos Cães" (1970) e "A Promessa", baseado em Bernardo Santareno (1972), ele foi, contudo, um nome central dessa geração decisiva na transformação do cinema português, caído no esquecimento e já este século recuperado com toda a justiça.
    Menos comprometido com uma linha estética definida, culto e erudito praticou um cinema mais eclético que incluía a experimentação. Igualmente envolvido politicamente, ele foi então um cineasta original e importante, que contudo mudou de rumo depois do 25 de Abril. Desde contam-se na sua obra "O Rico, o Camelo e o Reino ou O Princípio da Sabedoria" (1975), "As Horas de Maria" (1976), "O Príncipe com Orelhas de Burro", baseado em José Régio (1979), "Os Abismos da Meia-Noite" (1983), "Os Emissários de Khalôm" (1988), "A Maldição de Marialva", baseado em João Palma-Ferreira (1989) - pelos quatro últimos foi associado ao cinema fantástico - e "Chá Forte com Limão" (1993), bons filmes mas sem o fulgor e o impacto dos iniciais.
                      http://www.cinemateca.pt/getattachment/799ca52e-338f-40ea-bb87-2e05cd5fe92a/O-Cinema-de-Antonio-de-Macedo-em-projecao.aspx?maxsidesize=650
    Arquitecto, foi um cineasta polémico, esteve na fundação do Centro Português de Cinema, fez também curtas-metragens e documetários e trabalhou para a televisão. Professor e escritor, com livros dedicados ao esoterismo, foi um exemplo de verticalidade e da tentativa de conciliação de um cinema de autor com um cinema comercial, o que o levou ao fracasso de "Sete Balas Para Selma" (1967), a sua segunda longa-metragem. 
   Terá deixado inédito "O Segredo das Pedras Vivas" (2016), feito depois de um interregno 20 anos.. Recordo neste momento a tarde em que, no Cinema Condes, em Lisboa, descobri "A Promessa" como um filme português novo e diferente. Expresso o meu  sentido pesar aos seus filhos, Susana e António Sousa Dias.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Um homem do outro mundo

   Nascido em Praga, por cuja universidade se doutorou em Filosofia, Jorge Listopad (1921-2017), que agora nos deixou, viveu em Portugal a maior parte da sua vida, especialmente dedicada ao teatro, que amava e encenou como poucos. Também homem de televisão, crítico, escritor e professor, por um desses acasos não acidentais da guerra, da resistência e do pós-guerra acabou por dominar o português e nele se exprimir como em língua materna. 
                                    http://images-cdn.impresa.pt/expresso/2017-10-02-Jorge-Listopad/original/mw-320
   Tinha nos anos 50 convivido em Paris com os grandes nomes da literatura e da cultura francesa e europeia de então e veio depois a conhecer muito bem a cultura portuguesa, que se lhe tornou familiar ao ponto de ter adquirido a nacionalidade portuguesa e ter participado no seu estudo e na sua divulgação. 
   No jornalismo cultural, de que foi colaborador assíduo, havia uma espécie de ritual em ler a sua coluna, em que escrevia sobre tudo porque tudo no mundo da cultura lhe era familiar e o interessava, para saber o que ele dizia. Homens da dimensão dele escasseiam hoje em dia. Todos sentimos a sua falta.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Superlativo

   "A Fábrica de Nada", de Pedro Pinho (2017), que conta com argumento a várias mãos, de Tiago Hespanha, Luísa Homem, Leonor Noivo e do próprio Pedro Pinho a partir de ideia de Jorge Silva Melo baseada em peça teatral da holandesa Judith Herzbel, é produzido por João Matos e Susana Nobre para a Terratreme como criação colectiva. É um filme longo e muito bom, que envolveu uma investigação aturada e uma preparação longa e minuciosa.
   Este é daqueles filmes que não se conta, vê-se, sente-se e compreende-se em todo o seu impacto humano e político na actualidade, e cada um que retire as suas conclusões ou ilações próprias. Em resumo direi que trata de um caso de greve e ocupação seguido de auto-gestão, situado em Portugal nos nossos dias - na Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira -, baseado em factos reais ocorridos entre o final do século XX e o início do XXI com uma empresa e operários reais.
  Sem pretensiosismo ou preciosismo formal, Pedro Pinho trabalha com os seus actores, profissionais (José  Vargas Smith e Carla Galvão nomeadamente e nos principais papéis) e não-profissionais a um nível imediato de criação e improvisação que torna tudo credível num primeiro grau, reservando para a discussão política ao vivo do início da sua segunda parte o comentário a várias vozes qualificadas, bem visto e discutido, daquele caso, que pretende enquadrá-lo e faz parte do filme. 
                     https://i.vimeocdn.com/video/636545097_1280x720.jpg
  Elucidativo sobre a actualidade, este um filme que nos deixa perplexos mas satisfeitos porque a vida, o mundo da vida é assim mesmo quando tem um argentino por trás que pretende documentar o sucedido (Danièle Incalcaterra) e não como discursos políticos, filósóficos e outros nos pretendem fazer crer. Há a vida na fábrica, a vida familiar - que envolve a casa, o shopping, o rio - e o tempo para espairecer, fazer outra coisa, no caso música - punk - que acaba por introduzir a dimensão musical no filme. Com os grandes prédios modernos ao longe.
  A vida escorre por entre máquinas e homens, e no seu transcorrer o filme assume-se como ensaio reflexivo e também como musical por momentos, entre o documentário de reconstituição e a ficção, o que lhe fica bem. Depois da encomenda inesperada, as perguntas finais são para colocar depois de um grito, no diálogo de troca de palavras entre o Zé Vargas e o malvado do argentino.
  Para quem não tenha ilusões e queira compreender um pouco melhor Portugal e o mundo de hoje este é um filme altamente recomendável, que termina ao som da música e da voz do Zeca Afonso, evocativa e saudosa mas alegre e combativa. Nada nos deve ser retirado nem dado sem a nossa intervenção pessoal.
  "A Fábrica de Nada" de Pedro Pinho e da Terratreme coloca de novo o cinema português em evidência pelos melhores motivos. Em especial ao Jorge Silva Melo, grande criador teatral e cinematográfico e eminência parda da sua geração que a tantos formou, deixo aqui as minhas felicitações. Mas não esqueço este novo colectivo, a Terratreme, ao qual desejo as maiores felicidades e os melhores sucessos bem merecidos - as escolhas da FIPRESCI não costumam ser acidentais, como com este filme aconteceu este ano em Cannes.