sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Na nova ordem

    "Le disciple"/"The Student"/"(M)uchenik" é o penúltimo filme do russo Kirill Serebrennikov (2016), um cineasta desconhecido em Portugal e perseguido pelas autoridades actuais do seu país. Trata do reaparecimento disfuncional da religião na Rússia pós-comunista sem contemplações nem falsas esperanças.
    Veniamin Yuzhin/Pyotr Skvortsov é aluno de uma escola secundária em que se destaca pela sua obsessão bíblica, que cita a torto e a direito contra tudo e contra todos. A insatisfação que assim demonstra é um ponto a notar a seu favor enquanto o fanatismo para que descamba, com conflito com a autoridade religiosa e a colocação de uma cruz com crucificado na sala de aulas, diz tudo sobre a impotência do sistema, em que apenas uma professora, Elena Krasnova/Viktoriya Isakova, tenta perceber o seu caso e acaba resistindo ao despedimento que a atinge depois de Veniamin ter assassinado o seu discípulo coxo, crédulo e amantíssimo, Grigory Zaytsev/Alexandr Gorchilin, em segredo.
                        The Student Cannes Film Festival
     Longe de ser beatamente religioso, o filme, com argumento do realizador e Marius von Mayenburg baseado numa peça deste e que abre com um longo plano-sequência de mãe e filho em casa, põe o dedo numa ferida aberta, a de uma sociedade sem referências cívicas ou morais que a si própria se devora como uma serpente abocanhando a própria cauda.
    Não me interessam sobremaneira os diagnósticos de falência de um regime pseudo-democrático, de facto autoritário, nem de regresso da religião para preencher um vazio existencial, embora eles sejam relevantes. O que me impressiona neste filme é que todos querem ser iguais por uma bitola comum e rasteira, bem comportada, que o protagonista mesmo com os seus excessos, que incluem falsas acusações anti-semitas, leia-se fascistas, a par de catadupas de citações bíblicas, procura contrariar.
      Vítima do sistema pós-comunista, Kirill Serebrennikov é ameaçado e perseguido pelo regime por pôr em causa as relações dele com a Igreja Ortodoxa Russa, faz-me recordar outros cineastas como ele perseguidos pelo senhor Putin e leva-me a evocar Kira Muratova (1934-2018), recentemente falecida, que, vítima da censura comunista, apesar da qualidade dos seus filmes foi completamente ignorada nos 12 filmes realizados depois da queda do regime soviético. 
      Isto é tudo muito mais complicado do que vocês pensam. Este filme terrível e muito bom, com ressonâncias dostoievskianas, passou esta semana no Arte. Sobre o actual cinema russo ver "Vida sem amor", de 11 de Fevereiro de 2018.

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