quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Também no documentário

   Comemora-se este ano o centésimo aniversário do nascimento de Jean Rouch, o genial criador do documentário moderno e do cinéma-vérité, assinalado em França na Cinemathèque Française e na Bibliothéque nationale. O último número dos Cahiers du Cinéma fala extensamente sobre ele pela pena de gerações diferentes.
    Os seus documentários iniciais, feitos no pós-guerra em África, não acompanhavam só o ritual que os motivava, que era precedido pela apresentação individual de cada um dos intervenientes. O seu filme mais conhecido e citado dessa época é "Les maîtres fous" (1955), embora todos tenham sido importantes. Mesmo assim discutido pelos seus pares no Museu do Homem, em Paris, com a acusação de "paternalismo", nunca se furtou ao diálogo.
    Com esses filmes inaugurais dos anos 40 e 50 Jean Rouch ajudou ao nascimento do cinema africano, mesmo se discutido pelos cineastas locais, que com ele aprenderam a fazer filmes. E também o hábito saudável de não ter medo do que filmar nem de se expor, de criar em cinema uma realidade africana original nova.
                      
       Depois de ter usado o comentário off em voice over, em 1960 com "Chronique d'un été", co-realizado com o sociólogo Edgar Morin, impôs a entrevista em directo com microfone portátil e exposição do entrevistador, no final a discussão dos participantes e a dos próprios realizadores. Tendo filmado brancos em África e negros em Paris, enveredou, depois de experiências singulares como "Gare du Nord", segmento de "Paris vu par..." (1965), pela ligação do documentário e de alguma ficção, sem abandonar os rituais e o modo de vida dos africanos.
      Precedeu a nouvelle vague francesa, que depois acompanhou. No reconhecimento de uma influência, a de "Douro, Faina Fluvial" (1931), Jean Rouch esteve em Portugal para filmar no Douro com Manoel de Oliveira "En une poignée de mains amies" (1996), um filme pouco visto e que mercia uma outra divulgação. Tornou-se ainda em vida uma referência do documentário e do modo de o cinema lidar com o real.
    Frederick Wiseman estreou-se no cinema quando Rouch já levava 20 anos de actividade e pratica desde o início um documentário de obervação pura, em que a intervenção do cineasta está por regra ausente em benefício do acompanhamente de uma actividade e dos que a desenvolvem.
    Desse modo, desde "Titicut Follies" (1967) fez a crónica detida das instituições americanas e algumas europeias, revelando ao mundo aspectos menos conhecidos, uns controversos outros não, da vida da sua sociedade de origem e de outras no seu tempo. Sem querer ter nada a ver com o cinéma-vérité, que Rouch inaugurou, praticando antes um cinema directo.
                      
        Nada interessado em palhaçadas mediáticas, Wiseman prossegue o seu trabalho há 50 anos com uma pertinácia e uma pertinência notáveis, que fazem dele uma lenda viva do cinema e do documentário. Longe de Hollywood, de que nunca precisou e com que nunca teve nada a ver, com a sua própria produtora e distribuidora, a Zipporah Films, continua a trabalhar intensamente.
        Com filmes por vezes muito longos em especial nos úitimos 25 anos, o cinema de Fred Wiseman ajuda-nos a reconhecer a realidade social norte-americana em todas as suas facetas, objectivamente já que ele se limita a filmar sem interferir no que tem diante de si e da sua câmara, num exemplar exercício de ver e captar para mostrar o que acontece. O seu segredo está na escolha do tema de cada filme, na filmagem e depois na montagem precisa, com grande sentido do ritmo, das correspondências e da simetria. Ainda não pude ver "Ex Libris: New York Public Library" (2017), o seu último e muito longo filme, que espero estreie em Portugal depois de ter passado no Doclisboa.
       Mais experimental Rouch, mais clássico Wiseman, eles replicaram à distância os fundadores do documentário no cinema, Dziga Vertov mais experimental, Robert Flaherty mais próximo de um modelo clássico. E no entanto o cinema vérité de um vem de Flaherty enquanto o cinema directo do outro vem de Vertov, num muito curioso cruzamento de referências.

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