segunda-feira, 6 de março de 2017

Um e o outro

     Nas minhas hesitações em escolher entre dois muito bons qual o melhor comecei por Chaplin e Keaton a perceber que as razões partilhadas para a escolha de um contra o outro podiam ser usadas em qualquer dos sentidos.
    Chaplin é a criatura que criou e animou, soberbo recorte humano desfasado e em perda que consegue após múltiplas diabruras sair por cima, ou não completamente. Mas também a fundamental observação social a partir de um vagabundo maltrapilho que se confronta com um mundo que o olha com hostilidade.
    Definido nas curtas, que têm um ritmo endiabrado ao sabor de sucessivos gags, Charlot não se conforma com os abusos a que os ricos o submetem para o afastarem, se verem livres dele, e dando a volta acaba por os surpreender e fazer valer a sua posição. Quando é ele próprio o homem rico a ironia torna-se maior.
    Pinga-amor, também aí pode ser discutido na disputa e ver-se na contingência de tudo perder, num equilíbrio sempre instável entre movimentos contraditórios em sentidos diversos. Mas os seus olhares e gestos quando apaixonado definem-no inteiramente, até em excesso no rosto que o sorriso anima e os olhos excedem. Com as solas dos sapatos sempre rotas, tropeçando em si próprio continua a caminhar.
     Em si mesmo o gag chaplinesco consiste numa decomposição de momentos ou movimentos e num jogo difícil de coordenação e combinação de gestos e atitudes de diferentes personagens por forma a criar um suspense quanto ao desenlace de cada um, sempre surpreendente. Ele próprio não domina as máquinas, maiores ou menores, que o submetem, o manietam e o inquietam, a que tem de se ajustar. Em "L'image-mouvement" Gilles Deleuze chamou a atenção para a pequena diferença entre duas acções que aponta para a grande distância entre as respectivas situações nos seus filmes, que associam riso e emoção.       
                      Os 100 anos do personagem Carlitos, de Charles Chaplin United Artists/Divulgação
      Com a câmara normalmente fixa, dir-se-ia pobre o seu trabalho cinematográfico não se tratasse como se tratou de opção realista deliberada para concentrar a atenção nas personagens, nos espaços e no que neles lhes acontece, i. e., na materialidade de todo o seu universo humano e cinematográfico.  
     À malandrice de Chaplin responde a seriedade da máscara fisionómica inalterável de Buster Keaton, inquieto, mutante e em movimento progressivamente acelerado para chegar a tempo.
     Torna-se por isso necessária a intervenção da montagem para dar a sequência alternada de movimentos de uns e de outros, às vezes o que espera e os/as que o perseguem, e a câmara tem de correr atrás das personagens nas grandes deslocações físicas.
     Mais dinâmico e variado do ponto de vista cinematográfico, tem de acompanhar também o mundo interior da personagem, que se pode desdobrar no sonho do filme, no filme como sonho - Chaplin também sonha mas os seus sonhos exprimem desejos. O próprio plano é sempre equilibrado e rico para além da mera funcionalidade do cenário, que também existe.
     Enquanto Charlot foge Pamplinas corre desembestadamente para chegar a tempo de evitar alguma coisa, a catástrofe que frequentemente ele próprio desencadeou. O seu gesto torna-se largo contra a concentração em si do de Chaplin, que pretende preservar o seu espaço vital, e Keaton acaba por se tornar um herói típico que as mulheres preferem enquanto Charlot é por definição o anti-herói.
                     The Films of Buster Keaton Movie Review
     Em expansão embora, o movimento de Keaton encontra os seus obstáculos e os seus limites, com os quais ele se debate até se assenhorear da situação. Na inscrição excepcional do burlesco mudo na grande forma, o seu é um gag maquínico e de trajectória, com minorizações e séries causais como observa o mesmo Gilles Deleuze na mesama obra.
     Mas os seus filmes têm um esforço de optimismo enquanto Chaplin navega entre o humor, o lírico e o trágico - este expressamente em "A Woman of Paris" -, o que significa que um vai sempre em frente e o outro caminha aos ziguezagues impostos pela fortuna.
     Ao fim abrupto de Keaton, que não ultrapassou a barreira do sonoro, Chaplin respondeu com o alongamento dos seus filmes para a longa-metragem. Depois de "The Vagabond", "The Immigrant" e "Shoulder Arms", teve grande sucesso, em "The Gold Rush", com grandes momentos na casa desequilibrada e no comer dos sapatos, e em "The Circus", e tornou-se com o sonoro progressivamente melodramático enquanto espaçou filmes por eventual recusa do som com "City Lights" e "Modern Times". Mas "O Grande Ditador"/"The Dictator" e "O Barba Azul"/"Monsieur Verdoux" contam-se entre os seus grandes filmes e são obras-primas do cinema, em que no final do primeiro a palavra eleva da pequena à grande forma, enquanto Keaton teve de se ficar, depois de "Three Ages", por "Sherlock Jr.", "Seven Chances" e "The General" como cimos do seu trabalho ainda no tempo do mudo.
   Mais simples um, o malandro que consegue safar-se, mais elaborado em termos cinematográficos o outro, o homem sério a quem tudo acontece, estiveram muito à altura um do outro enquanto trabalharam simultaneamente e foi bem visto por Chaplin juntar Keaton ao final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" como por Samuel Becket agarrar  no segundo nos seus últimos anos para o fundamental "Film". Estiveram bem um para o outro numa época com outros grandes actores cómicos no cinema americano - Harold Lloyd, Harry Langdon, Laurel & Hardy, os Marx Brothers - e não voltou a haver ninguém como eles no cinema.
    Editados ambos em dvd, aconselho-os aos dois para perceberem bem toda a riqueza cinematográfica visual de um e do outro, Chaplin e Keaton, os dois maiores nomes do burlesco mudo, artistas superiores como realizadores e como actores, o primeiro também sempre argumentista e compositor dos seus filmes. Depois de verem, que cada um decida qual deles prefere. E a partir daí é sempre a dobrar.  Esta é difícil mas há pior.

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