segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Pensar junto

    Depois de "Ninfa moderna: Essai sur le drapé tombé" (2002) - que tem edição portuguesa de 2016 com tradução de António Preto na Imago/KKYM -, "Ninfa fluida: Essai sur le drapé-désir" (2015) e "Ninfa profunda: Essai sur le drapé-tourmente" (2017), no seu prosseguimeto Georges Didi-Huberman vai publicar este ano "Ninfa dolorosa: Essai sur la mémoire d'un geste", sempre na Gallimard.
   Justamente conhecido pelos seus livros sobre história e antropologia da arte, o autor, também filósofo, entre muitos outros livros tem igualmente publicados seis volumes de "L'oeil de l'histoire" nas Éditions de Minuit e o oportuno "Soulèvements" (Paris: Gallimmard/Jeu de Paume, 2016 - catálogo de exposição).
  Começa mesmo por definir "Ninfas: divindades menores sem poder «institucional», mas irradiantes de uma verdadeira potência para fascinar, para transtornar a alma e, com ela, todo o possível saber sobre a alma. Também perigosas, como o são a memória - quando identificada até aos seus continentes negros -, o desejo, o próprio tempo..." (2002, pág. 7, a tradução é minha).
   Melhor ou pior, todos conhecemos a maioria das imagens em causa nestes livros, mas a sua leitura atenta e em contexto pelo autor fá-las falar de maneira nova e diferente no seu todo e em cada uma das suas partes.
                                          http://img.over-blog-kiwi.com/1/05/51/08/20160209/ob_541d58_wp-20160209-00-04-51-pro.jpg                       
    Mas os títulos desta série das Ninfas são enganadores pois, embora trate delas ao longo da história da arte, cada um dos livros transborda a propósito de cada uma delas para outros campos, nomeadamente a visão moderna da cidade e a fotografia no primeiro.
   Numa escrita densa mas clara o autor vai procedendo a associações diversas dentro de um mesmo campo e entre eles por forma a convocar a expressão "pensar junto" (pág. 93), o que eleva cada livro para um patamar superior de interesse e qualidade. Deste modo passa de imagens sacras para realidades e imagens profanas de um modo que as enobrece todas.
   Sem qualquer espécie de pruridos, Georges Didi-Huberman trata de uma iconografia da arte, com análise detida de cada obra, na sua maior parte reproduzidas junto ao texto, o que permite o confronto  visual ao leitor.
   Não me escusarei a dizer que a primeira Ninfa, a moderna, assume referências expressas a Aby Warburg, a Walter Benjamin mas também a Charles Beaudelaire na sua abordagem da iconografia moderna e de cada peça juntamente com a realidade que convoca em cada caso, nomeadamente a da cidade que é (quase) sempre e inevitavelmente Paris.
                                      Georges Didi-Huberman
   Já a segunda Ninfa, a fluida, é todo ele construído sobre os estudos de Warburg sobre Sandro Botticelli e Domenico Ghirlandaio, felizmente publicados em português (Imago/KKYM, 2012 e 2015, com tradução de Artur Morão), com especial atenção às intensidades que percorrem, aéreas e genitais, "A Primavera" do primeiro. E aqui é feita inteira justiça às obras e aos pintores estudados mas também, e até especialmente, ao fundador da iconologia num livro que termina sobre o cinema e a escola líquida do cinema francês segundo Gilles Deleuze, aliás numa perspectiva nova.
   Lembro que no início deste século XXI o autor tinha já publicado "L'Image survivante. L'Histoire de l'art et temps de fantômes selon Aby Warburg" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2002), época de que data a maior parte deste livro, e que ao mesmo António Guerreiro dedicou em 2018 "O Demónio das Imagens - Sobre Aby Warburg" (Lisboa: Língua Morta).
   Por sua vez a terceira Ninfa, a profunda, ocupa-se de Victor Hugo, romancista, poeta, filósofo mas também desenhador, de que o autor descobre uma poética de imanência do meio, do mar, da terra e do vento em composições antropomórficas das tormentas e do tormento, no prosseguimento da anterior mas com a identificação entre o fluido e a mulher. A inspiração de Hugo no "Da Natureza das Coisas" de Lucrécio (Lisboa: Relógio d'Água, 2015) é desenvolvida com pertinência e bons resultados.Também no essencial este volume foi escrito na mesma época dos anteriores, 2002-2003.
   Este ciclo das Ninfas, que vai agora continuar com a dolorosa, anunciado para Março deste ano, nasceu quase lateralmente na obra de Didi-Huberman mas, ampliado pelo seu uso no ensino e pela publicação de excertos, está a assumir agora uma dimensão própria que lhe confere uma nova centralidade na obra do autor, ela própria central na actual história e antropologia da arte, uma obra que aqui recomendo e a que voltarei.

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