terça-feira, 17 de julho de 2018

Antes do centenário

   Uma das mais importantes e influentes vanguardas dos anos 20 do século XX no cinema, o expressionismo alemão considera-se inaugurado por "O Gabinete do Dr. Caligari"/"Das Cabinet des Dr. Caligari", de Robert Wiene (1919), com argumento de Carl Mayer e Hans Janowitz. Considerado um marco da história do cinema, com mais filmes do mesmo realizador, típico embora não terá sido o mais importante do expressionismo.
  De facto, no mesmo ano de 1919 iniciam-se as obras de Fritz Lang e Friedrich W Murnau: "As Aranhas"/"Die Spinnen" (1ª parte), do primeiro, "O Rapaz de Azul"/"Der Knabe in Blau (Der Todessmaragd)" e "Satanás"/"Satanas", do segundo. Nomes maiores de toda a história do cinema com filmes de excepcional qualidade, obras fundamentais e uma extraordinária repercussão internacional. Em 1917 tinha sido criada a UFA, Universum Film Aktiengesellschaft, tornando possível uma produção alemã dos filmes alemães, anteriormente dominada pela Nordisk.
   Com influência do teatro alemão, nomeadamente de Max Reinhardt, que em 2013 dirigiu o filme "A Ilha dos Bem-Aventurados"/"Die Insel der Seeligen, o expressionismo alemão foi a expressão no cinema de um movimento mais largo, proveniente da pintura e das outras artes, nomeadamente das pesquisas de Die Brücke, fundada em 1905 por Ernst Ludwig Kirchner, e do Die Blaue Reiter, fundado em 1912 por Vassily Kandinsky, Paul Klee e Franz Marc. Teve precursores em "O Estudante de Praga"/"Der student von Prag", do dinamarquês Stellen Rye (2013), no primeiro "Golem" de Paul Wegener e Henrik Galeen (1914) - haveria um segundo, "Golem"/"Der Golem - Wie er in die Welt kam", de Wegener e Carl Boese (1920) - e em "Homunculos", de Otto Rippert (2016).
    No seu seio é comum distinguir o caligarismo, o kammerspiel e o expressionismo propriamente dito. O primeiro parte do filme inicial e como ele explora o claro-escuro, o contraste de luz e sombras desenhados nos cenários distorcidos em que, monstruosas, as personagens se inscrevem. Com ele Henri Langlois identificava todo o movimento. O segundo foi um cinema de câmara, no duplo sentido de espaços fechados e de movimentos da câmara-aparelho de filmar e teve o seu expoente em Murnau com "O Último dos Homens"/"Der Letze Mann" (1924), com argumento de Carl Mayer.        
                       Image result for nosferatu 1922
      Muito diversificado, ter-se-á caracterizado pelo espiritual não-psicológico numa vida não-orgânica das coisas, decorrente da intensificação da luz e dos seus contrastes, com o cone a sustituir o círculo e a esfera, ângulos e triângulos pontiagudos em vez de linhas curvas ou rectangulares.
     Em "A Imagem-Movmento", Gilles Deleuze caracteriza-o mais pela alternância - de claro/escuro, de luz/sombra - contra a alternativa do espírito da abstração lírica. Como uma oposição infinita, como uma linha perpetuamente quebrada, com subordinação do extensivo ao intensivo, em que os contrastes se atenuam e surge mesmo o primeiro colorismo no cinema.  Um mundo em que os autómatos, os robots e os fantoches se tornam sonâmbulos, zombies ou golems que exprimem uma vida não-orgânica.
       Destacam-se "O Doutor Mabuse"/"Doktor Mabuse Der Spieler" e "A Morte Cansada"/"Der Müde Tod" (1921) e "Os Nibelungos"/"Die Niebelungen" (1924), de Lang, "Nosferatu, o Vampiro"/"Nosferatu, Eine Simphonie des Grauens" (1922), "Tartufo"/"Tartüff" (1925) e "Fausto"/"Faust" (1926) de Murnau, "O Gabinete das Figuras de Cera"/"Waschfigurenkabinett", de Paul Leni (1924). Robert Wiene faz "Genuine" (1920), "Raskolnikov" (1923) e "As Mãos de Orlac"/"Orlacs Hände" (1924), Hans Kobus "Torgus" (1920), Karl Heinz Martin "Von Morgens bis Mitternachts" (1920), Arthur Robison "Schatten" (1922), E. A. Dupont "Baruck" (1923) e "Variedades"/"Variete" (1925) e o romeno Lupu Pick faz "Rail"/"Scherben" (1922) e "A Noite de São Silvestre"/"Sylvester" (1923), com argumento de Carl Mayer, dois filmes que aliam kammerspiel e expressionismo.
       Além de argumentistas como Carl Mayer, colaborador habitual de Murnau, são de referir os cenografistas Heinz Poelzig, Robert Herlth ou Walter Röhrig, directores de fotografia como Fritz Arno Wagner e Karl Freund, além de actores como Conrad Weidt, Lya De Putti e Emil Jannings entre muitos outros..
                     
     Pessoalmente, contra Deleuze considero o expressionismo alemão no cinema uma verdadeira vanguarda mas, por ter estado muito ligado ao romantismo e à filosofia alemã do século XIX - embora reconheça com Kracauer que ele antecipou os fantasmas que haviam de surgir na Alemanha nos anos 30 - tenho dificuldade em considerá-lo plenamente moderno por ter prolongado a  cultura alemã de oitocentos.
   Cumprido em 1926, sucederam-lhe ainda alguns filmes, nomeadamente de Lang, como "Metropolis" (1927), "Matou"/"M" (1931) e "O Testamento do Dr. Mabuse"/"Das Testament des Dr. Mabuse" (1933), mas a partir de então surgiu na Alemanha um cinema mais realista, ligado à crise económica e social do país, em que se destacou G. W. Pabst, Walter Ruttman no documentário, no que terá correspondido no cinema à nova objectividade. E tinha surgido também em 1922 a animação de sombras de Lotte Reiniger.
     Na América em meados dos anos 20, Murnau aí dirigiu filmes míticos, como "Aurora"/"Sunrise" (1927), enquanto Lang saiu da Alemanha depois de convidado para dirigir o cinema alemão em 1933, foi primeiro para Paris, depois para os Estados Unidos onde desenvolveu uma segunda parte muito profícua da sua obra durante 20 anos, em que a marca do expressionismo esteve menos presente que na do Murnau americano.
   Com os seus contrastes, o expresionismo alemão influenciou nomeadamente Josef von Sternberg, Orson Welles (a iluminação ao fundo do cenário) e o filme negro. Lang e Murnau terão sido os seus nomes fundamentais embora o expressionismo típico tenha passado mais por outros. E deviam estar há muito editadas em português as excepcionais monografias de Lotte H. Eisner sobre os dois, o que, com o conhecimento dos filmes deles, poderia contribuir para evitar juízos precipitados.

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