domingo, 11 de março de 2018

O rumor do mar

      Sempre vi os filmes da Rita Azevedo Gomes no cinema, de maneira que um fim de tarde, princípio da noite fui ao Cinema Ideal ver "Correspondências" (2016), o seu mais recente filme.
       Ocupa-se da correspondência epistolar trocada entre 1959 e 1978 por Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, dois nomes máximos da literatura e da poesia portuguesa do século XX - os únicos ao nível do Fernando Pessoa e do Herberto Helder -,  quando ele estave exilado no Brasil e nos Estados Unidos com a mulher, Mécia de Sena, enquanto ela permanecia em Portugal com o marido, Francisco Sousa Tavares, mas viajava muito.
       Com imagens e palavras gravadas de ambos, inéditas ou pouco conhecidas, o filme contém imagens actuais de contemporâneos deles - Mário Barroso, Luís Miguel Cintra entre outros - e de mais novos, que lêem as cartas e dizem poemas. Em palavras impiedosas sobre o país de então mas também sobre o país de sempre, mesmo sobre o cristianismo e a Grécia  Antiga que amavam, mito, tragédia e epopeia compreendidos, sobre a civilização azteca e sobre o extremo oriente, em vida e pensamento ambos se dizem com amizade e confiança um ao outro.
       Se, documentais, as imagens e as palavras de época são muito valiosas, a actualidade em que elas reverberam está muito conseguida, centrada no acto de dizer, nos ruídos e nos silêncios, nos corpos e nos cenários, nos gestos quotidianos. Por vezes, estridente, um violencelo irrompe, inopinado.
                                    
      Com homenagem expressa a Manoel de Oliveira e a João César Monteiro em imagens célebres, o segundo também em presença, "Correspondências", escrito e realizado por Rita Azevedo Gomes, faz lembrar sobretudo Marguerite Duras no seu movimento perpétuo da palavra dita em várias línguas, nos seus silêncios e na sua remissão para a poesia anterior. Mas estabelece a sua originalidade também na utilização de diversos formatos e nas divisões do ecrã em ecrãs menores, flutuantes.
        Fruto da colaboração múltipla de todos os participantes, destaco aqui a fotografia de Acácio de Almeida e Jorge Quintela, a música de Alexander Zekke e a montagem da realizadora e de Patrícia Saramago. Enrolando e desenrolando a sua estrutura em termos binários, unifica-se num ritmo distendido de planos longos, que por vezes se intensifica.
       Na sua exigência e no seu rigor, este filme longo e muito bom presta sentida homenagem àqueles que evoca e ao melhor da literatura e de poesia portuguesa. E termina com o rumor do mar, que me acompanhou à saída, quando atravessava a noite lisboeta, alheada e turística.
       Lembro que a eles tinham já sido dedicados "Sophia de Mello Breyner Andresen", de João César Monteiro (1969), e "Sinais de Vida", de Luís Filipe Rocha (1984), que fez também o filme "Sinais de Fogo" (1995) baseado no célebre romance de Jorge de Sena. E que Rita Azevedo Gomes se tinha já baseado em Sophia para "Frágil como o Mundo" (2001).
       Há coisas muito boas na cultura portuguesa e este filme, os seus dois protagonistas ou o último livro de Maria Filomena Molder contam-se entre elas.

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