terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Imagens e palavras

       Estas são as últimas palavras escritas em "O Livro de Imagem"/"Le livre d'image", o aguardado último filme de Jean-Luc Godard (2018) em que domina a recapitulação de uma história, a do cinema, o que o torna uma espécie de apostilha a "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du cinéma" (1988-1998), esse até agora o seu grande filme sobre o assunto.
      Depois de ter dito então "nous sommes tous encore là", como sombras surgem as imagens dos seus contemporâneos da nouvelle vague entretanto desaparecidos. Mas apesar disso o fundo do filme é o mesmo, com recurso aos mesmos exemplos do cinema americano e europeu, o que faz com que o cineasta continue muito centrado naquilo que já nem sequer é o melhor do cinema na actualidade - faltam a América Latina, a África, o sul da Ásia e o Extremo Oriente.
      Isso não o impede de continuar a pensar o cinema à sua maneira, com imagens montadas e sons livremente misturados, entre os quais as palavras, nomeadamente ditas pela sua própria voz, o que "JLG por JLG"/"JLG/JLG" (1994) tinha confirmado de modo inequívoco e claro para todos.
      Na fase mais recente da sua obra Jean-Luc Godard tem acentuado um pendor pensante, que já o caracterizava no seu início pelo menos na construção serial que Gilles Deleuze oportunamente notou, agora transferido em larga medida para a sua palavra pessoal dita além de escrita.
     O mérito maior de "O Livro de Imagem" está em a reflexão estar distribuída por imagens e palavras e na sua mistura, e aí de facto o filme avança em relação aos anteriores, nomeadamente com intensidades e alturas sonoras diferentes. Por aí passará mesmo a grande novidade proposta por este filme           
                       ‘Le Livre d’Image’: Godard questiona e mostra-nos a violência do mundo
      Sobre a história do século XX o autor mantém as mesmas referências revolucionárias, com especial incidência no final dos anos 10 do século XX, da Catalunha e de André Malraux entre muitas outras citações de proveniência francesa. Na história do cinema continuam presentes as vanguardas soviética e francesa dos anos 20, o expressionismo alemão, o cinema francês, o cinema japonês e o cinema americano, Dreyer, Hitchcock, Lang e Nicholas Ray, com a habitual referência ao cinema banal e uma ou outra novidade - Gus Van Sant.
      Na palavra do cineasta, sempre em off sob a forma de comentário, a reflexão atinge o seu ácume por volta dos 50 minutos, com as referências ao contraponto como sobreposição, à representação numa arte que nasceu num tempo e para um tempo que entretanto, segundo ele terá passado, entre outras.
       Reforça-se assim o lado de filme-ensaio, de que Godard tem sido um notável praticante com exclusão da narrativa, que surge meramente esboçada na parte final. Mas onde a reflexão conflui é sobre a violência na história, com referências que muito pertinentemente vêm até à actualidade.
       Pouco me importa que aqui Godard se repita pois esta é, afinal, a fase mais recente do seu pensamento e do seu cinema, que continuam a ser motivadores e inovadores apesar de tudo, mesmo se contra tudo e contra quase todos. As suas propostas no cinema e para o cinema devem, assim, ser tomadas em consideração por aquilo que são e por quem ele é, uma das figuras mais importantes da história do cinema e da sua contemporaneidade
      Sem excluir os aspectos formais e até incluindo-os especialmente, toca-me que o cineasta prossiga um percurso e uma obra de pendor filosofante, em que com Ingmar Bergman foi pioneiro no cinema moderno, mesmo assumindo desde o início a ideia de remake. E a sua ideia de choque no filme nem sequer está longe de Sergei Eisenstein.
     No final a voz embrulha-se naturalmente de cansaço, o que nos comove como discurso inacabado. Falta-lhe o fôlego para mais palavras que as imagens convocam, e sintomaticamente o filme acaba com palavras sem imagem e com imagens sem palavras. O que ficará para um próximo filme prosseguir.

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