sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Vertiginoso

    Daniel Mendelsohn é um professor universitário de cultura clássica e escritor, ensaísta, tradutor (de C. P. Cavafy) e crítico norte-americano parcialmente traduzido em português, de que comecei por ler, como me acontece, o último livro, "Uma Odisseia: Um Pai, Um Filho e Uma Epopeia" (Lisboa: Elsinore, 2018), e agora estou a ler os livros mais antigos.
   A sua escrita é fascinante porque, exaustiva, espraiada, se baseia na realidade com alguns ajustamentos, nomeadamente na identificação de personagens, e porque a sua vasta e abrangente cultura parte de gregos e latinos e vai até à actualidade. E a realidade que nos seus livros está em causa é a sua, pessoal, e da sua família, como exemplarmente também acontece no seu anterior "Os Desaparecidos - À Procura de Seis em Seis Milhões" (Lisboa: Dom Quixote, 2009)".
   Os seus livros são assim sobre história, sobre cultura, sobre filosofia da história e filosofia da cultura, nomeadamente da própria literatura, e não são grandemente prejudicados pelas traduções portuguesas, entre o regular e o muito bom. A sua escrita tranquila e perfeita passa assim sem problemas de maior, em especial no seu livro mais recente.
                                      The Lost
   Girando à volta de conflitos bélicos do passado - a Guerra de Tróia, a II Guerra Mundial - procura encontrar a sua origem na descrição e no estudo de casos individualizados, partindo do texto histórico, das memórias familiares ou mais frequentemente de ambos. Embora  ele próprio explique que aquilo é apenas o que de facto sucedeu.
   Em "Uma Odisseia" opta por uma narrativa no presente, de um seminário por si leccionado e que foi frequentado pelo seu pai como mais um aluno, o que lhe permite introduzir logo aí o elemento pessoal que se rebate sobre a narrativa épica antiga, uma referência literária e cultural que estuda e comenta confrontando-a com a experiência da II Guerra Mundial do seu pai.
   Já em "Os Desaparecidos" põe em cena a sua família, partindo de si próprio e dos seus irmãos e irmã para tentar saber ao certo o que e como aconteceu a antepassados mortos pelos nazis, o que o leva a rebuscar a história da família ao longo dos últimos séculos na Europa. E aqui a referência literária persiste na Bíblia hebraica, sobre a violência individual e na história.
   Dando a distância na proximidade e a proximidade na distância, na sua escrita minuciosa o autor joga com o espaço e o tempo de uma maneira superior, tornando o passado e longínquo próximos e, por meio disso, o presente e próximo estranhos, sempre com apoio em outros textos literários que, introduzindo a diacronia convocam a distância e abrem o caminho à reflexão e à filosofia da literatura e da história.
                                      
    Em especial os avanços e recuos na narrativa são acompanhados por uma cronologia sólida e encontram justificação no que no presente acontece ao narrador, num procedimento muito bem explorado que implica histórias dentro de outra história, com circulação de personagens, opiniões, memórias e recordações.
    A escrita muito pessoal, precisa, faz com que os livros de Daniel Mendelsohn se situem ao mais alto nível literário, assertivo e coloquial simultaneamente, e também reflexivo, num processo que replica as outras artes, incluindo o cinema, no seu melhor e também a filosofia na busca da origem e significado de palavras e expressões antigas.
  Original e desmedido, tudo acaba por fluir na realidade e na literatura convocada contra a expectativa do narrador diegético e do leitor, fulminado por o dito narrador ser identificado com o próprio autor, que assim vai aperfeiçoando o seu (e nosso) conhecimento da vida, dos outros, dos textos e de si mesmo. E nos melhora.
                                       An Odyssey by Daniel Mendelsohn
     Passando parte da narrativa para diferentes personagens e para a discussão com elas, o autor escreve como um fole, fechando e abrindo o curso da narrativa de forma inesperada mas sempre lógica e justificadamente, indo da psicologia ao sentimento, da dúvida à emoção. E ao rebuscar no passado não cessa de rasgar horizontes contra aquilo que alguns ainda hoje negam
    Pouco conhecido e pouco falado em Portugal, Daniel Mendelsohn já recebeu nos Estados Unidos as maiores distinções literárias e destaca-se na literatura americana contemporânea, atravessando um momento de alguma evidência mesmo depois da morte de Philip Roth, devido ao seu método original e muito conseguido, à sua escrita e à grande 
pertinência dos assuntos tratados.
     Às vezes lembra Marcel Proust, outras as narrativas autobiográficas mais conseguidas de Amos Oz ("Uma História de Amor e Trevas" - Lisboa: Presença, 2007) e Orhan Pamuk ("Istambul: Memórias de Uma Cidade" - Lisboa, Presença, 2008) na sua pesquisa da verdade de um texto como da verdade da história. Encarada em casos individuais que remetem para o colectivo, a história é assim repensada à distância de modo a colocar-nos no seu interior, a familiarizar-nos com aqueles que a viveram nos textos estudados e na vida real.
    Apaixonado pelo melhor de literatura norte-americana desde a minha juventude, em que até Jorge de Sena traduzia Ernest Hemingway e William Faulkner, assim actualizo o meu conhecimento dela com um autor que sem reservas aqui aconselho e seria grave não conhecer, membro da American Academy of Arts and Sciences e da American Philosophical Association.
    "Do mesmo modo, para ter uma verdadeira noção da preciosidade das vidas que foram salvas, é necessário ter uma noção absoluta do horror de que foram tão miraculosamente preservadas." (Os Desaparecidos", pág. 179 da edição portuguesa).

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