domingo, 29 de outubro de 2017

Crónica finlandesa


  O mais recente filme do finlandês Aki Kaurismäki, "O Outro Lado da Esperança"/"Torvan tuolla puolen" (2017), pode considerar-se inspirado na curta-metragem "O Taberneiro" que fez para "Centro Histórico", encomenda de Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura. Com um outro desenvolvimento e um outro enquadramento narrativo, evidentemente. Mas liga-se também, e até principalmente, como segundo tomo de uma "trilogia dos portos", com "Le Havre" (2012), o filme francês do cineasta, pela sua temática: os refugiados.
    Após uma excelente abertura sem palavras, em que eles se cruzam pela primeira vez, tudo se passa entre um refugiado sírio, Khaled/Sherwan Haji, e o abastado dono de um restaurante, Wikström/Sakari Kuosmanen, que depois de largar o negócio e a mulher faz a sua pequena fortuna ao póquer numa das mais curiosas cenas do filme. O refugiado, que tem um amigo iraquiano, na Finlândia há mais tempo do que ele, tem as maiores dificuldades em ser aceite num país em que as autoridades consideram que nada de especial se passa no seu, contra o que dizem os noticiários televisivos mostrados logo a seguir. Mas tudo se torna fácil para ele a partir do momento em que consegue obter documentos de identificação falsos da qualidde dos verdadeiros numa cena bem humorada.
    O encontro entre os dois dá-se ao murro mas depois tudo corre bem, com Khaled como cozinheiro do restaurante de Wikström, ao lado dos outros empregados e de um cão. Mas ele tem uma irmã que ficou para trás numa fronteira e os acontecimentos engrenam em função dela na parte final.
                     
    Aki Kaurismäki tem uma maneira leal e franca de filmar, muitas vezes frontal, que deixa dito em cada plano de cada cena o que tem de ser dito para passar ao seguinte com plena inteligibilidade. Usa como de costume a elipse mas de maneira a que tudo seja perceptível. Impiedoso com o racismo dos finlandeses numa cena bem resolvida com a reacção dos mendigos, tenta captar deles também um lado idealista, utópico sem dúvida, ao nível de cumplicidade e proximidade.
     As cenas em que Khaled conta no Serviço de Estrangeiros a sua caminhada através da Ásia Menor e da Europa até à Finlândia, de que nada é mostrado, tal como a sua resposta à pergunta sobre as suas convicções religiosas estão excelente, rigorosamente filmadas, com actores muito bons como em todo o filme, atentos aos pormenores faciais e expressivos.
     Disse o cineasta em entrevista ao Ipsilon do Público que está farto de filmar, que este terá sido o seu último filme, e de facto quatro longas-metragens e seis curtas em 15 anos não é muito. Num filme que rima muito bem com "Le Havre" e dedicado à memória de Peter von Bagh (1943-2014), a despedida, que não se deseja, pode fazer sentido, quando ele leva já mais de 30 anos actividade cinematográfica. Se assim for vou sentir a sua falta, eu que o conheço desde antes do Festival Nórdico organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian em Julho de 1992, que mais extensamente o revelou entre nós.
     De facto, Aki Kaurismäki é um dos melhores cineastas do nosso tempo que fez já em filme uma muito curiosa "crónica finlandesa" em filmes de grande originalidade e apuro cinematográfico a que a música não é alheia, como de novo volta a acontecer neste "O Outro lado da Esperança", em que ela é mais uma vez recorrente, tocada por instrumentistas em plena actuação.

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