quinta-feira, 28 de março de 2019

Contado por eles

   "Espaço para Sonhar" (Lisboa: Elsinore, 2018) são memórias e autobiografia de David Lynch com autoria dele e Kristine McKenna. Adaptando o modelo do Hitchcock-Truffaut, cada capítulo é dividido em duas partes, a primeira de depoimentos daqueles que com ele conviveram e trabalharam, a segunda escrita por ele.
   Artista de corpo inteiro, ficamos a conhecer de Lynch as suas aptidões manuais e artísticas e a génese e desenvolvimentos dos seus trabalhos para cinema e televisão mas também em pintura, fotografia e vídeo, o que torna este livro um panorama muito completo a seu respeito.
   Desde antes de "Eraserhead" (1977) até à actualidade, a vida do cineasta é uma vida de artista, dissociada das exigências da indústria do cinema e em conflito com elas. Todos os que foram ouvidos concordam em que é uma excelente pessoa, de quem os actores gostam e que gosta dos actores, criando a qualquer pretexto a partir de qualquer motivo, humano, natural, objectal.
    A sua obsessão do detalhe e da precisão leva a que tudo em cada filme ou série televisiva seus seja rigorosamente preparado e levado à perfeição na concretização de tudo o que idealizou, embora ele permaneça aberto ao  imprevisto e à inspiração do momento nas filmagens. E na idealização prévia ele vai trabalhando quase inconscientemente, fixando tudo e todos que lhe despertam a atenção e o interesse.
   Curiosamente, as memórias dele não são sempre coincidentes com as de outros, o que se compreende. E claro que a Meditação Transcendental, que deu origem ao seu livro "Catching the big fish; meditation, consciousness, and creativity" (New York: Jeremy P. Tarcher/Penguin, 2006), que tem edição portuguesa, não é esquecida como parte central da vida dele. O mesmo sucedendo com a David Lynch Foundation - https://www.davidlynchfoundation.org/.
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   O que o cinema foi e aquilo em que ele e a televisão se tornaram nos últimos 50 anos é passado atentamente em revista a propósito de cada um dos filmes, séries, exposições, vídeos e do site dele, com esclarecimentos sobre contactos quase sempre difíceis. Mas ressalvo de novo o que ele diz dos seus actores, levados aos seus limites expressivos e emocionais, sempre considerados excelentes, e o que dele eles dizem - mas também técnicos e outros colaboradores.
  De igual modo a vida pessoal e familiar dele e o contacto com os seus amigos são passados em revista desde a infância. Contudo, a génese e desenvolvimento de cada trabalho é aqui essencial a par do retrato do homem indissociável do artista, dos seus sentimentos e emoções na base de uma forte pulsão criativa.
   Lynch é um puro artista em tudo o que toca, diz e faz, um dos principais cineastas e artistas contemporâneos e um dos melhores do século XXI - "Mulholland Drive" (2001) foi considerado em 2016 pela BBC Culture o melhor filme deste século. Conheceu êxitos e fracassos e de tudo isso fala este livro em pormenor.
   Embora seja uma pequena parte da sua história, como ele confidencia no final, este é assim um livro fundamental que aqui vivamente recomendo sobre um homem bom e genial. Depois de o lerem revejam filmes, séries e clips para poderem entender o que não viram da primeira vez - a história das "camadas" é só conversa fiada de velhinhas.
   Sobre David Lynch ver "Amar e sofrer", de 27 de Maio de 2017, "Amar e sofrer +", de 7 de Junho de 2017, e "Um com o outro", de 29 de Junho de 2017.

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