domingo, 3 de março de 2019

Integridade

     Decorrendo entre 2001 e 2018, "As Cinzas Brancas Mais Puras"/"Jiang hu er nü"/Ash is Purest White" de Jia Zhang-Ke (2018) é um filme fabuloso, como só ele é capaz de fazer nos nossos dias.
    Inspirado no último projecto de um clássico do cinema chinês, Fei Mu (1906-1951), o filme inspira-se também em filmes anteriores do cineasta, "Unknown Pleasures"/"Ren xiao yao" (2002) e "Still Life: Natureza Morta"/"San xia hao ren" (2006), além de incluir excertos de filmes dele não utilizados na respectiva montagem final.
     Como se saídos de um filme de Johnny To ou John Woo, um mafioso do jiang hu, Bin/Fao Liao, e a sua namorada, Qiao/Tao Zhao, são presos, ela que lhe tinha salvo a vida por mais tempo do que ele. Quando sai ela percorre metade do país, incluindo a barragem das Três Gargantas onde se passava "Still Life - Natureza Morta", para o encontrar e encontra apesar de ele tentar não se mostrar.
    O diálogo entre os dois, primeiro em exteriores depois num interior pobre, é dos melhores momentos de cinema que me foi dado ver neste século. Mas ele tem um derrame cerebral e ela continua a acompanhá-lo apesar de parcialmente paralisado, Qiao faz questão de acender o fogo para afastar deles o azar, regressam ao vulcão do diálogo da primeira parte e não, não vos conto o final, sublime, com a imagem dela desfocada em ecrã de vídeo-vigilância..
                                   
    Há uma fantástica viagem de comboio e Qiao vai mostrar que também conhece o jogo, encontrar o homem que ama e não esqueceu. A explicação que ela dá no final a Bin para não o ter esquecido resume-se a uma palavra do meio mafioso: integridade.
    Com piscadela de olho a Yasujiro Ozu, faz-me lembrar o cinema clássico japonês, em especial Kenji Mizoguchi nos seus filmes a preto e branco - e ao privilegiar o ponto de vista feminino o cineasta confirma-o.
    "As Cinzas Brancas Mais Puras" tem argumento de Jia Zhang-Ke, fotografia de Eric Gautier, que explora a textura de diversos suportes, música de Giong Lim e montagem de Matthieu Laclau e Lim Xudong. Em entrevista aos Cahiers, o cineasta fala do papel de Tao Zhao na criação da sua personagem, nas qualidades dela como actriz e também do nela ele tem visto e continua a ver.. 
    Na mesma entrevista Jia Zhang-ke, que é um dos maiores cineastas do nosso tempo, diz ter querido prestar homenagem às mulheres chinesas da actualidade e contrastar um meio mafioso com princípios com a falta deles no presente do seu país.. Aliás, a alusão a dado momento às minas de carvão remete para uma actualidade difícil e em movimento.

Sem comentários:

Enviar um comentário