terça-feira, 26 de março de 2019

Pensar tudo e todos

    A propósito da filosofia alemã, de que o principal nome actual é Peter Sloterdijk, quero aqui chamar a atenção para uma ou duas coisas a partir da obra dele.
     Em 1999 ele publicou "Regras Para o Parque Humano: Resposta à Carta sobre o Humanismo" (Angelus Novus, 2008), em que fez um seleccionado levantamento de questões de Heidegger a que respondeu, concluindo pela substituição do humanismo do século XX pelo arquivo. De passagem aí fez a crítica da violência irracional dos media, sem adivinhar o 11 de Setembro de 2001 e o que se lhe seguiu, imprevisível.
     Em livros posteriores retomou algumas destas questões, nomeadamente no seu mais recente livro editado em português, "Tens de Mudar de Vida" (Lisboa: Relógio D'Água, 2018, original 2009), um livro nietzschiano na perspectiva da vertical mas também na crítica a Heidegger. O que é muito curioso porque lhe permite não sair da filosofia alemã e separar filósofos à primeira vista ligados.
     Outra das questões tratadas originalmente neste livro é o "espírito de recessão" base de uma "subjectividade da margem" (pág. 283), que por sua vez pode originar a ideia do "ser para a perfeição" (Capítulo 7. Perfeitos e Imperfeitos, pág. 303), o que é muito bem explorado.
                       Peter Sloterdijk (Foto: Flickr/Fronteiras do Pensamento)
    Nesse livro ele prevê a ascensão da ecologia na política, o que não levantava dificuldades já em 2009, mas não prevê a subida da extrema-direita nem dos neo-nazis, provavelmente ela também imprevisível. Mas muito bem chama a atenção para a superioridade da filosofia  continental contemporânea em relação à filosofia americana. 
    Uma das qualidades maiores deste filósofo é a clareza da sua crítica do comunismo no sécculo XX, incomum, rara e muito mais directa e acutilante do que a praticada por outros filósofos que com ele estiveram comprometidos e o procuram desculpar. Não há como pôr em causa mesmo o não evidente.
    Mas Peter Sloterdijk não foi indiferente à reemergência do fenómeno religioso, em "A Loucura de Deus: Do Combate dos três monoteísmos" (Lisboa: Relógio d'Água, 2009, original 2007) nem à crítica do capitalismo e de um mundo bipolar em "Crítica da Razão Cínica" (Lisboa: Relógio D'Água, 2011, original 1983, portanto ainda anterior à queda do Muro de Berlim), um livro de inspiração kantiana entre cinismo e kinismo.
   Em "O Estranhamento do Mundo" (Lisboa, Relógio d'Água, 2008, original 1993) destaco a reflexão sobre Críton na morte de Sócrates (pág. 121), de facto notável num livro moderno e muito bom que se alarga sobre a música (Capítulo VII. Onde estamos quando ouvimos música?, pág. 172)..
   Contudo, o conteúdo original de "Regras para o Parque Humano" veio a ser desenvolvido nomeadamente em "Palácio de Cristal - Para Uma Teoria Filosófica da Globalização" (Lisboa: Relógio d'Água, 2008, original 2005) que talvez seja, com "Cólera e Tempo - Ensaio Político-Psicológico" (Lisboa: Relógio d'Água, 2010, original 2006), de inspiração heideggeriana, e "Tens de Mudar de Vida" a sua obra que prefiro..
                                         
    Mas, embora falte a edição portuguesa de muita coisa, a sua filosofia é muito centrada na antropotécnica e na teoria da cultura, áreas em que o seu pensamento, globalização incluída, é de conhecimento muito proveitoso - em Portugal José A. Bragança de Miranda. 
     Não importam grandemente as minhas avaliações subjectivas, o que importa é a necessidade de pensar tudo e todos de todos os pontos de vista, e essa é uma função que a filosofia contemporânea mesmo se com atraso em relação a alguns novos factos tem preenchido. Como introdução está publicado em português "O Sol e a Morte - Diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs" (Lisboa, Relógio d'Água, 2007, original 2006).
    Agora é imperioso que sobre ela e a partir dela cada um vá elaborando o seu próprio pensamento, com recusa do inaceitável na extrema-direita, do neo-nazismo, do racismo, contra o terrorismo e as ditaduras, com ideias partilháveis sobre a construção do futuro, no que Peter Sloterdijk tem sido muito útil. Veja-se nomeadamente "Se a Europa  Acordar: Reflexões sobre o Programa duma Potência Mundial no Termo da sua Ausência Política" (Lisboa: Relógio D'Água, 2008, original de 2002)
    "Morte Aparente do Pensamento - Da filosofia e da ciência como prática" (Lisboa: Relógio D'Água, 2014, original 2010) é um dos seus mais recentes livros publicados em português. Ao longo da sua obra ele tem lidado com toda a história da filosofia, com natural destaque para a filosofia alemã, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger, Benjamin mas indo até à filosofia antiga greco-romana, medieval e moderna sempre em diálogo crítico muito produtivo na construção do seu discurso pessoal próprio. 
     Este um pensamento rigoroso, profundo e muito bem sustentado nos riscos que corre em território desconhecido. Seria muito útil a tradução portuguesa da trilogia "Esferas", bem como de "O Imperativo Estético" (Verlag Suhrkamp, 2007) que ocupam uma posição central na obra de Sloterdijk. Normalmente identificado por "A Mobilização Infinita - Para uma crítica da cinética política" (Lisboa: Relógio D'Água, 2002, original 1989), ele é a meu ver o mais importante filósofo vivo.
    Trata-se, com efeito, de um pensamento inquieto que nos desperta e fornece linhas de continuidade, de evolução e de ruptura que nos ajudam a pensar o ainda não pensado, a pensar de novo o mal pensado e arriscarmos pensar por nossa conta no inquietante mundo actual.
    
     Comentário:

"(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)"

Álvaro de Campos, "Tabacaria".

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