quinta-feira, 29 de junho de 2017

Um com o outro

          David Lynch é mais velho do que Quentin Tarantino e começou no cinema antes dele, mas entre os dois eles partilham o maior destaque no cinema americano contemporâneo, que corresponde ao chamado (em tempos) "capitalismo tardio".
         Iniciando-se no cinema nos anos 70 ainda, Lynch rapidamente atingiu o sucesso e a fama nos anos 80, sobretudo devido a "O Homem Elefante"/The Elephant Man" (1980), o discutível "Dune" (1984) e "Veludo Azul"/"Blue Velvet" (1986). A partir de "Coração Selvagem"/"Wild at Heart" (1990), e incluindo "Twin Peaks" série (1990, 1991) e filme (1991), sucedem-se os (poucos) grandes filmes.
         Com traços surrealistas, a sua obra desdobra-se em renovada forma cinematográfica, sempre com grande exigência artística, até atingir o seu cume, depois de "Estrada Perdida"/"Lost Highway" (1997), em "Mulholland Dr." (2001) e "Inland Empire" (2006), após o que tem trabalhado especialmente em vídeo e na curta-metragem.
        No seu cinema da inquietação, David Lynch impôs um estilo e temáticas que se mostraram de grande pertinência e actualidade, desafiando o espectador com o qual cada filme seu contava e jogava para que ele fizesse a sua parte completando-o.
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       Tarantino, formado pelas cassetes-vídeo que vendia na loja onde começou por trabalhar, impôs-se no topo com "Cães Danados"/"Reservoir Dogs" (1992), conheceu novos sucessos com "Pulp Fiction" (1994) e a ideia original de "Natural Born Killers", de Oliver Stone (1994), seguidos de "Kill Bill" (2003, 2004).
       Voltado para a violência exacerbada e para o neo noir, o seu exagero em dispêndio de adrenalina passou como fantasia romanesca por uma parte importante do melhor (e também do pior) do cinema americano contemporâneo.
        Determinante numa nova dinâmica cinematográfica, jogou com o passado do cinema sem rebuço enquanto para ele rasgava de forma pessoal novos horizontes, por vezes com o seu amigo Roberto Rodriguez como em "Sin City: Cidade do Pecado"/"Sin City" (2005), como realizador convidado, e "Grindhouse" (2007).
         Ambos atravessaram assim a barreira da revolução digital, de que cada um a seu modo tirou proveito. Mais voltado Lynch para uma realidade normal subvertida pelo inesperado e para a construção temporal, excepto em "Um Homem Simples"/"A Simple Man" (1999), Tarantino enfrentou mais directamente os géneros, nomeadamente o film noir mas também o filme de guerra em "Sacanas Sem Lei"/"Inglorious Basterds" (2009) e o western em "Django Libertado"/"Django Unchained" (2012) e "Os Oito Odiados"/"The Hateful Eight" (2012), de forma que os subverteu a todos.                                                    
                     
         Ambos argumentistas dos seus filmes, e portanto autores totais, um trabalha raramente para o cinema, enquanto o outro diz ir só até aos dez filmes. Um mais do lado da imaginação, o outro mais do lado de um realismo transfigurado, os dois trabalharam para cinema e para televisão e arriscaram sempre tudo em cada filme ou série. 
     Foram e continuam a ser homens do seu tempo, modernos ou pós-modernos e contemporâneos, sem se deixarem minimizar nem banalizar pela produção cinematográfica ou televisiva correntes mas jogando com elas. 
       Assombrados cada um deles pela sua própria visão do cinema, não ficaram parados nem trabalharam para a história, antes, pioneiros imprevisíveis, avançaram sempre por novos e inesperados territórios. E foram reconhecidos: Lynch foi Palma de Ouro em Cannes em 1991 por "Coração Selvagem", melhor realizador em 2001 por "Mulholland Dr." no mesmo festival, Leão de Ouro Honorário em Veneza em 2006; Tarantino Palma de Ouro em Cannes em 1994 por "Pulp Fiction", Oscar do melhor argumento original em 1994 pelo mesmo filme e em 2012 por "Django Libertado".
       Melhor do que eles só os Coen às vezes, Jim Jarmush e James Gray sempre. Mas para compreender o cinema contemporâneo é preciso conhecê-los bem aos dois. Um com o outro, cada um deles usando sempre a primeira pessoa do singular.

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