quarta-feira, 24 de maio de 2017

Caminhar

    Com argumento em que as actrizes participaram num "trabalho de campo" prévio, "Fátima" de João Canijo" (2017) é um filme surpreendente de um dos mais destacados cineastas portugueses. Um filme de risco que se aguenta menos mal nos objectivos que se tinha traçado.
    Uma peregrinação a Fátima - conhecido santuário mariano devido a "aparições" a três humildes pastorinhos que ali terão ocorrido cumprem-se agora cem anos - a partir de Vinhais, distrito de Bragança, em Trás-os-Montes. A pé, como manda a devoção dos portugueses.
    Sem ceder a facilidades, Canijo constrói com as suas actrizes um filme seco que pretende assemelhar-se a um documentário raconstituído que inclui a ficção minimal possível. Persistentes todos, realizador, equipa técnica e actrizes, o filme consegue com isso construir-se como apologia da fé de que capta os aspectos humanos nos pequenos episódios do percurso. 
    São exactamente os pequenos pormenores que no convívio entre mulheres - pois trata-se de um grupo constituído exclusivamente por mulheres - se estabelecem que pontuam e assinalam um filme que vale fundamentalmente por elas e com elas. "Fátima" de João Canijo é um filme longo que se pode tornar fastidioso para quem não entrar na sua lógica de percurso descrito em conjunto. Quem o acompanhar até ao fim fica enriquecido por um feito cinematográfico sobre um assunto de que o cinema português já se tinha ocupado há muitos anos, agora encarado de forma original e diferente.
                     
   
    Com um grupo de actrizes à altura e diálogos por vezes saborosos entre mulheres, o espectador acredita no que vê, na determinação e nas escaramuças, nos percalços e nos incidentes, o último dos quais envolve um homem e está bem resolvido em termos cinematográficos, sem abusar da credulidade do espectador.
     Num elenco em que se destacam Rita Blanco e Ana Moreira e em que é bom rever Márcia Breia e Teresa Madruga, todas as caracterizações cumprem e estão à altura numa planificação segura e variada, embora se perceba uma desigualdade das pronúncias locais, que umas actrizes procuram cumprir - e cumprem menos mal - e outras não no que é um artifício sensível que o documentário declarado evitaria.
    Muito à sua maneira, Canijo constrói este seu mais recente filme com mulheres e sobre elas por acumulação, aqui justificada pelo espaço percorrido e pelo tempo levado a percorrê-lo a pé. Embora conseguido em parte, o filme ressente-se também de uma montagem audiovisual por vezes dispersa e dispersiva - a peregrinação como espectáculo, o que é o mais discutível como registo - que obsta ao seu mais completo sucesso. 
   Chamo a este respeito a atenção para a exposição "Madonna - Tesouros dos Museus do Vaticano", patente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, até 10 de Setembro próximo.

Sem comentários:

Enviar um comentário