quarta-feira, 31 de maio de 2017

O que se esconde

    "O Sentido do Fim"/"The Sense of an Ending" (2017) é a segunda longa-metragem do indiano Ritesh Batra, depois de "A Lancheira"/""Dabba" (2013). Baseado no romance homónimo de Julian Barnes, um dos melhores escritores da actualidade editado em Portugal pela Quetzal, Man Booker Prize em 2011 com este livro.
    Num país em que o cinema inglês é tratado "abaixo de cão" pela generalidade dos "cinéfilos iluminados", devo chamar a atenção para este filme de uma grande sobriedade e com uma narrativa superior que vem da sua origem literária. De facto, nele nada é o que parece, o que num momento temos por certo vem depois, logo a seguir ou mais tarde, a ser posto em causa.
    Tudo parte da velhice de Tony Westner/Jim Broadbend, divorciado de Margaret/Harriet Walter, cuja filha Susie/Michelle Dockery está no final da gravidez. Na juventude, Tony/Billy Howle teve uma namorada, Veronica Ford/Freya Mavor, que acabou por casar com um seu amigo, Adrian Finn/Joe Alwyn, que acaba de morrer.
                                      O Sentido do Fim Poster
     Passado cerca de uma hora em que o filme embrulha a narrativa entre o passado e o presente, Tony vai ao encontro dos seus amigos de juventude e acaba por ser procurado por Veronica/Charlotte Rampling, que começara por se negar a encontrá-lo ou a ceder-lhe o que Adrian terá deixado para ele.
    Claro que o mérito da narrativa, que é o melhor do filme, está no original, como já disse, mas mesmo com algum excesso Ritesh Batra, trabalhando sobre adaptação e argumento de Nick Payne, constrói um filme aparentemente monótono, em que parece pouco acontecer mas que dá conta de várias vidas com correcção e exigência, em planos geralmente fixos, o que lhe fica bem - com fotografia de Christopher Ross, pouca música de Max Richter e uma montagem expressiva de John F. Lyons.
    "O Sentido do Fim" é, em termos cinematográficos um melodrama sem excessos que na sua secura deliberada diz mais que os grandes e espectaculares melodramas cinematográficos e televisivos. Um pouco na tradição de David Lean mas com menos espectáculo. Vindo do país de Harry Potter isto interessa-me mais.
     Fruto acidental da ciência e da técnica no final do século XIX, posteriormente sujeito a múltiplas transformações, o cinema continua a firmar-se em outras artes e formas de expressão mais antigas, que mesmo se nem sempre enriquece pelo menos lhe servem, como neste caso, para se exprimir melhor e para elas chama a atenção (leiam Julian Barnes). Aqui o mérito de Ritesh Batra é de ter sabido aproveitar, sem a estragar, a sua fonte literária declarada.  
    Por sua vez, "Cameraperson" de Kirsten Johnson (2016) é um documentário que recolhe excertos de documentários feitos ao longo de 20 anos em que ela participou na fotografia, excertos esquecidos em filmes que passam e caem, eles também, no esquecimento.
     É ao que se esconde em filmes passados, rodados ao longo do globo - Bósnia-Herzgovina, Afeganistão, diversos países africanos, Iemen, Darfur, mas também nos Estados Unidos -, que a documentarista aqui dá vida e torna presente de novo, com o cuidado de regressar aos mesmos locais e filmes. Passa assim em revista conflitos graves através daqueles que neles mais sofreram, mas também inclui excertos privados da família e dos amigos da cineasta. 
                      Cameraperson Movie Review
    Ora, ao fazê-lo Kirsten Johnson não se limita a um "exercício de estilo" ou a uma mera "experiência", já que nos excertos seleccionados vida à sua própria câmara de filmar, sempre nas suas mãos e com a sua própria voz gravada em directo, por vezes também a sua própria imagem, o que permite equacionar o papel da câmara, da sua presença aberta, naqueles que filma.
      E aqui é a altura de percebermos todas as virtualidades do cinema e o seu aproveitamento fora dos circuitos de exibição comercial como elemento de mostração em que a presença da câmara não é indiferente no que de outro modo escaparia aos olhos públicos. Ao mostrar o que filmou de forma próxima e empática, "a mulher da câmara de filmar" levanta questões e rasga horizontes ao documentarismo.
     Recuperar excertos de filmes passados em "Cameraperson" serve a Kirsten Johnson, que entre nós é conhecida apenas pela sua participação na fotografia de "Citizenfour", de Laura Poitras (2014), para nos recordar, tirando-o do esquecimento, todo o sofrimento do mundo em tempos recentes e os que viram, e em muitos casos continuam a ver os seus direitos humanos brutalmente violados. Visto no mesmo dia que o anterior, no Arte, evidentemente. 

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