quarta-feira, 17 de maio de 2017

Entre dois o terceiro

   Houve um tempo em que a discussão do melhor cineasta de sempre passou pelos nomes de Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Colocada nestes termos, que estão longe de ser errados, a questão é de resposta duvidosa e difícil.
    De facto, ambos começaram no tempo do cinema mudo e ambos foram para os Estados Unidos durante os anos 30 por razões diferentes e aí receberam consagração internacional. Quer um quer o outro excederam-se em qualidade cinematográfica, um com a ideia do suspense, o outro com a imposição de uma perspectiva ética.
   Grandes directores de actores, Hitchcock e Lang construíram filme a filme obras poderosas, fascinantes e superiores - e esta perspectiva da obra no seu todo é aqui fundamental -, de modo a tornarem-se e torná-los, aos filmes, parte integrante e maior da história do cinema - quem não os conhecer não pode dizer que conhece bem o cinema.
   Ambos enfrentaram também os tempos da II Guerra Mundial e os seus dilemas, as suas personagens sórdidas e grandiosas, sem complacência e agarrando de frente os seus pontos de fractura histórica - Hitchcock em "Correspondente de Guerra"/"Foreing Correspondente", "Sabotagem"/"Saboteur" e "A Corda"/"The Rope", Lang em "Feras Homanas"/"Man Hunt", "Os carrascos também morrem/"Hangmen Also Die", com a participação de Bertolt Brecht, e "Guerrilheiros nas Filipinas"/"American Guerrilla in the Philippines".  
                      http://www.tasteofcinema.com/wp-content/uploads/2013/12/french-cancan.jpg               
    Mas Fritz Lang tinha ocupado um lugar central no expressionismo alemão nos anos 20, pelo que talvez seja ainda hoje mais conhecido, enquanto nessa época Hitchcock se limitava a iniciar e experimentar a sua temática e o seu estilo que haviam de lhe dar um lugar único e superior no cinema. No final das suas vidas ambos regressaram às origens, Lang para o díptico indiano e "O Diabólico Dr. Mabuse"/"Die 1000 Augen des Dr. Mabuse", Hitchcock para "Frenzy".
    Há assim um notório equilíbrio no trabalho cinematográfico de ambos que os torna ainda mais comparáveis. Mas no seu tempo trabalhou também o francês Jean Renoir, como eles com inícios no cinema no tempo do mudo, que como eles foi para a América durante II Guerra Mundial e como eles regressou às origens nos anos finais, na década de 50.
    Com a sua visão carnal e psicológica, que acolheu a cultura francesa que herdou do seu pai, o pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir, possuídor de um universo pessoal muito próprio em que as mulheres sempre ocuparam lugar central e em que os homens surgiam como dominados ("La chienne", com remake de Fritz Lang em "Almas Perveersas"/"Scarlett Street"), como iguais ("A Regra do Jogo"/"La règle du jeu") ou como dominantes ("French Cancan"), na sua sabedoria imensa e na sua estética superior que desde o início do sonoro antecipou pelo menos a "profundidade de campo", entre os dois maiores Jean Renoir é a minha terceira escolha como melhor cineasta de sempre.
     Fritz Lang dizia que ele se adaptara mal em Hollywood por falar mal inglês mas o certo é que o que ele fez antes - "Madame Bovary", "Toni", "O Crime do Sr. Lange"/"Le crime de Monsieur Lange", "Passeio ao campo"/"Partie de campagne" sobre Maupassant, "Les bas fonds" a partir de Gorki, "A  Grande Ilusão"/"La grande illusion", "A Fera Humana"/"La bête humaine" a partir de Zola - e depois da sua estadia americana - "O Rio Sagrado"/"The River", "A Comédia e a Vida"/"Le carrosse d'or", "Helena e os Homens"/"Elena et les hommes", "O Testamento do Médico e do Monstro"/"Le testament do docteur Cordelier", "Le déjeuner sur l'herbe", "O Cabo de Guerra"/"Le caporal épinglé" - justifica amplamente o título do melhor cineasta de sempre. Ninguém como ele viu a vida, o mundo e o cinema do seu tempo como ele, que foi também dos cineastas mais influentes no futuro - Truffaut e Chabrol em especial, entre mutos outros que ecoaram "A Grande Ilusão" e "A Regra do Jogo".
    Ao ascetismo de Robert Bresson, tão amado por tantos e que admiro, sempre com Claude Chabrol preferi a sua sensualidade e o seu humanismo profundo, que não dispensava o humor e a ironia franceses, sem peias de qualquer espécie. Nunca houve nem haverá outro cineasta como ele. Nem John Ford? Nem ele. Nem Orson Welles? Nem ele. Nem Kenji Mizoguchi? Bem, aí talvez...

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