terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um lado e o outro

    Pier Paolo Pasolini começou como escritor - poeta, prosador e argumentista de cinema - e só no início dos anos 60 se estreou como realizador com "Accatone" e "Mamma Roma", quando se desenvolvia já um "cinema novo italiano".
    Por sua vez, Jean-Luc Godard iniciou-se no cinema nos anos 50 na crítica e na curta-metragem antes de realizar a sua primeira longa, "O Acossado"/"À bout de souffle" em 1960, e foi um dos fundadores e nomes de proa da "nouvelle vague" francesa.
    Ambos deixaram um rasto com os respectivos percursos na história do cinema, o que os tornou dos cineastas mais importantes e influentes desta. Enquanto Godard arrancava a todo o vapor com mais de um filme por ano, Pasolini estreava-se numa espécie de prolongamento cru e duro do "neo-realismo italiano".
    Mas o segundo, intelectual marxista dissidente do PCI, ia ter uma evolução rápida para a figura de Cristo, já simbolicamente presente nos seus filmes iniciais, com "O Evangelho segundo São Mateus"/"Il vangello secondo Matteo", que o levou decididamente para o rumo do sagrado e estabeleceu em novos termos o seu caso e a sua fama no cinema.
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     Escolhendo Anna Karina depois de Jean Seberg como sua actriz favorita, Godard explorou as relações sentimentais de uma nova geração, desde o início com implicações políticas, enquanto a seu lado se desenhavam percursos diferentes na "nouvelle vague", com Truffaut, Chabrol, Rohmer, Rivette, Demy, Varda, Resnais. Já Pasolini, depois de Anna Magnani em "Mamma Roma" vai escolher  para "O Evangelho..." Enrique Irazoquicom Franco Citti, Laura Betti e Ninetto Davoli como seus actores favoritos enquanto mantém um percurso próprio no "cinema novo italiano".
     Em meados dos anos 60 há um momento mágico em que ambos estão no seu melhor, à volta de 1966, em que um faz "Passarinhos e Passarões"/"Uccellacci e uccellini", o outro "Made in USA" depois de "Pedro, o Louco"/"Pierrot le fou" do ano anterior. O mesmo ano de 66 em que Ingmar Bergman fazia "Persona" e Michelangelo Antonioni "Blow Up", numa década em que ambos fazem também segmentos curtos de filmes em episódios que se tornaram marcantes - por exemplo "La ricotta" (o primeiro filme a cores de Pasolini) e "Il nuovo mondo" para "ROGOPAG"/"Ro.go.pa.g" (1963), em que coincidiram.
   Ainda nos anos 60 Pasolini faz "Teorema" e "Pocilga"/"Porcile", precedidos por "Rei Édipo"/"Edipo re" com Silvana Mangano e seguidos por "Medeia"/"Medea" com Maria Callas, enquanto Godard sai da fase de "cinema militante", em que tinha entrado antes do Maio de 1968, no início da década de 70 com "Tudo Vai bem"/"Tout va bien" e vai começar a trabalhar em vídeo a partir de "Número Dois"/"Numéro deux", "Six fois deux: Sur et sous la communication" e "Ici et ailleurs".
    Enquanto o primeiro faz a "trilogia da vida, que viria a renegar, e "Salò ou Os 120 Dias de Sodoma"/"Salò o le 120 giornate di Sodoma" antes de ser assassinado em 1975 (o seu suposto assassino morreu há pouco), Godard entra na fase mais estetizada da sua obra, em que sobre temas culturais célebres da política, da pintura, da música, do cinema e da história envereda por uma mistura audiovisual nova que o volta a impôr em novos termos. Então os seus filmes são interpretados por actores célebres e surge "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du cinéma" (1988-1998).
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      Os escritos teóricos mais importantes de Pasolini datam dos anos 60, nomeadamente sobre o plano-sequência único, a "subjectiva indirecta livre" e o "cinema de poesia", e foram publicados em livro sob o título "Empirismo herege", enquanto data de 1980 a primeira recolha em livro de um ciclo de conferências de Godard, em "Introduction à une véritable histoire du cinéma". E foram ambos sempre argumentistas dos seus próprios filmes.
      Um, Godard, terá manifestado uma consciência "tecnicista", com a proposta de um novo tipo antropológico, e concebido a sua obra de forma serial, o outro, Pasolini, uma consciência sacralizante, "mística" e mítica e construído os seus filmes de forma teoremática, segundo Gilles Deleuze, o que não impede que haja no primeiro uma ideia de colagem desde o início, que depois evoluiu para a já referida mistura audiovisual, enquanto o segundo tendeu para o plano-sequência, que teorizou. Sem embargo do que foram, um como o outro, das figuras mais importantes do cinema moderno com repercussões contemporâneas. 
     Dito isto, haverá que acrescentar que os filmes de um e do outro se percebem hoje melhor numa perspectiva histórica que os situe no tempo respectivo para melhor se entender que os respectivos talentos ultrapassaram sempre os estreitos limites espaciais de cada um.
    Testemunhas do seu tempo, um e o outro contribuíram decisivamente para uma mudança moderna no cinema, Pasolini com uma poética espacio-temporal, Godard com uma poética visual e sonora, audiovisual neste sentido. Ambos estetas, ambos políticos e ambos muito mais do que apenas isso.    

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