sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

A resposta de saber

    Considerado por muitos o mais importante filósofo da primeira metade do século XX, Martin Heidegger viu desde cedo pesar contra si a acusação de cumplicidade com o nazismo ao defendê-lo e ao defender o anti-semitismo.
    Mau grado isso, e apesar de a sua obra decisiva, "Ser e Tempo"/"Sein und Zeit", não estar disponível em português, ele tem sido alvo de interesse e estudo por parte de filósofos portugueses movidos pela importância da sua reflexão sobre o Ser.
     Saiu o ano passado em português "Estudos sobre Heidegger", de Mafalda Faria Blanc (Lisboa: Guerra &  Paz), professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, autora jde uma já extensa bibliografia filosófica. Aí o filósofo alemão encontra a reflexão que o que escreveu merece em termos de aprofundamento e de divulgação. Mesmo a ligação dele ao  nazismo é referida, embora brevemente.
     Também com data do ano passado acabou de sair na Palimage, de Coimbra, "Derrida lecteur de Heidegger (après les cahiers noirs)", de Cristina de Peretti, Michel Lisse, Jean-Luc Nancy e Fernanda Bernardo, que estabelece o diálogo entre Heiddegger e Jacques Derrida seu leitor. Ora nesta obra cada um dos participantes vai muito mais longe na revelação do filósofo alemão como filósofo do nazismo e do anti-semitismo, mas também rebate as acusações feitas contra o filósofo francês de aceitação das ideias dele.
                                     Derrida Lecteur de Heidegger (après les Cahiers noirs)
     Devo aqui salientar o importante papel de Fernanda Bernardo, professora de filosofia contemporânea da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na tradução e no estudo da filosofia francesa, num trabalho de grande fôlego e longo alcance. Aqui ela dedica um texto longo à crítica ética de Émmanuel Levinas do nazismo e do anti-semitismo em Heidegger-
        Por intermédio quanto mais não seja do diálogo que com ele mantiveram e mantêm filósofos europeus, a filosofia de Martin Heidegger - criticada em vida dele também por Hannah Arendt, sua discípula - permaneceu mesmo depois da sua morte. Os seus defensores foram, contudo, desastrados, como mostram os autores de "Derrida lecteur de Heidegger".
       Claro que os Cahiers noirs, publicados a partir de 2014, vieram relançar as questões de Heidegger, e a seu propósito se estabelece o diálogo neste livro no meio filosófico europeu - que se alarga ao meio filosófico americano, que tinha recebido a sua influência por intermédio do debate europeu e das visitas dos seus nomes mais importantes a universidades americanas.
      O que aqui me traz neste momento é a oportunidade deste debate e do conhecimento do filósofo do nazismo, numa altura em que como nacionalismos ou populismos ou explicitamente como neo-nazismo alguma das suas ideias ressurgem, quando se poderia pensar terem sido esquecidas.
                                      Estudos Sobre Heidegger
       Derrida esclarecia que falava dele subentendendo a sua própria rejeição do nazismo, o que esperava fosse também o caso dos seus leitores. Hoje não podemos saber quem e como os lê a um e ao outro e não podemos ter ilusões de que se tratará de um debate meramente filosófico.
       Por sua vez, os "Estudos sobre Heidegger" de Mafalda Faria Blanc ajudam a penetrar no universo temático e filosófico do autor de uma forma qualificada, escalpelizando a sua obra nos seus aspectos mais importante na reflexão sobre o Ser, de uma ontologia a uma escatologia, sempre a partir do pensamento grego antigo. Por isso aqui aconselho este livro aos eventuais interessados.
        Em "Derrida lecteur de Heidegger" sublinho a chamada de Jean-Luc Nancy para o sentimento na área filosófica e para ligação desta com a poesia. Na entrevista a António Guerreiro publicada no nº 4 da revista Electra, o escritor, cineasta e ensaista alemão Alexander Kluge, herdeiro da Escola de Frankfurt, faz a mesma chamada para a importância do sentimento na actualidade em qualquer área da criação e do pensamento.
      O filme "Luz Obscura" de Susana Sousa Dias (2017) constitui um excelente exemplo da convocação do sentimento no cinema, com os depoimentos de Álvaro, Isabel e Rui  Pato sobre os tempos do Estado Novo e sobre a sua família, perseguida, presa, torturada e morta pela PIDE, a polícia política de um regime que defendia a família.
                      Imagem do filme «Luz Obscura», de Susana Sousa Dias.
      Com recurso ao arquivo, a estética austera e rigorosa do filme permite que nos concentremos com comoção e perguntas deixadas para o futuro no que aí é dito e para o qual não há desculpa ou escapatória possível. 
     Longe de ter posto fim à filosofia, como ele pretendia, Martin Heidegger relançou-a a partir de novas propostas, entre as quais a superação da metafísica - o que não significa a rasura dos anteriores estudos sobre ela desde Aristóteles. 
      Em filosofia não se admitem exclusões e mesmo o actual pensamento crítico não se dispensa de conhecer e citar Heidegger, justamente porque o pensamento dele tem reflexões novas e audaciosas que é preciso conhecer. Foi o caso de Jacques Derrida que, para lá de qualquer simpatia pelas suas ideias, partiu da filosofia de Heidegger para a sua desconstrução. E Derrida é considerado o mais importante filósofo da segunda metade do século XX.
     Há uns anos tinha já sido publicado "Arte e Técnica em Heidegger", de Irene Borges-Duarte (Lisboa: Documenta, 2014), professora associada da Universidade de Évora, que de uma forma mais especializada dava conta do interesse actual pelo filósofo de Friburgo. Aí a resposta ao fim da filosofia com Heidegger era a criação. O que constitui uma proposta bem interessante para continuar.

Sem comentários:

Enviar um comentário